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J.N.Reis
Filosofia

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The Problems
                           of Philosophy, de Bertrand Russell
Aparência e realidade
Bertrand Russell

Há algum conhecimento tão certo que nenhum homem razoável possa dele duvidar? Esta questão, que à primeira vista parece fácil, é na realidade uma das mais difíceis que se podem fazer. Quando tivermos compreendido as dificuldades com que se defronta uma resposta clara e segura, estaremos bem lançados no estudo da filosofia uma vez que a filosofia é apenas a tentativa de responder a estas questões fundamentais, não descuidadamente e dogmaticamente, como fazemos na vida quotidiana e mesmo nas ciências, mas criticamente, após termos explorado tudo o que torna estas questões embaraçosas e termos compreendido toda a vagueza e confusão que subjazem às nossas ideias vulgares.

Na vida quotidiana assumimos como certas muitas coisas que, se as examinarmos melhor, descobrimos serem tão contraditórias que só uma reflexão demorada permite que saibamos em que acreditar. Na busca da certeza é natural que comecemos pelas nossas experiências imediatas e, num certo sentido, sem dúvida que o conhecimento deriva delas. É, no entanto, possível que esteja errada qualquer afirmação acerca do que as nossas experiências imediatas nos permitem conhecer. Parece-me que estou agora sentado numa cadeira, diante duma mesa com determinada forma, sobre a qual vejo folhas de papel manuscritas ou impressas. Se virar a cabeça, vejo pela janela alguns edifícios, as nuvens e o Sol. Acredito que o Sol está a cerca de cento e cinquenta milhões de quilómetros da Terra; que é um globo quente muitas vezes maior do que esta; que, devido à rotação terrestre, nasce todas as manhãs, e continuará no futuro a fazê-lo por um tempo indeterminado. Acredito que, se outra pessoa normal entrar nos meus aposentos, verá as mesmas cadeiras, as mesmas mesas, livros e papéis que eu vejo, e que a mesa que vejo é a mesma cuja pressão sinto no meu braço. Tudo isto parece ser tão evidente que nem merece a pena referi-lo, excepto em resposta a quem duvide de que conheço alguma coisa. Apesar disso, tudo o que afirmei pode ser submetido a uma dúvida razoável e exige uma discussão cuidadosa antes que possamos estar absolutamente certos da sua verdade.

Para tornar óbvias estas dificuldades, concentremos a nossa atenção na mesa. Para a vista a mesa é oval, castanha e brilhante, enquanto para o tacto é lisa, fria e dura e, quando se lhe bate, emite um som a madeira. Qualquer pessoa que a veja, sinta e oiça estará de acordo com esta descrição e, por conseguinte, poderá parecer que não existe aqui a mais pequena dificuldade; no entanto, assim que tentemos ser mais precisos, os nossos problemas começarão. Embora eu acredite que toda a mesa é «realmente» da mesma cor, as partes que reflectem a luz parecem mais brilhantes que as outras e algumas, devido à luz reflectida, chegam a parecer brancas. Sei que se me mover, as partes que reflectirão a luz não serão as mesmas e que a distribuição aparente das cores na mesa mudará. Por conseguinte, se várias pessoas estiverem a olhar para a mesma mesa no mesmo momento, nenhuma delas verá exactamente a mesma distribuição de cores, porque nenhuma delas a poderá ver exactamente do mesmo ponto de vista e, qualquer mudança de ponto de vista, provoca mudanças na forma como a luz é reflectida.

Para a maior parte das nossas finalidades práticas estas diferenças não são importantes, embora o sejam para o pintor. O pintor tem de perder o hábito de pensar que as coisas parecem ter a cor que o senso comum diz que «realmente» têm e aprender a ver as coisas como aparecem. Eis aqui a origem duma das distinções que mais dificuldades causa em filosofia: a distinção entre «aparência» e «realidade», entre o que as coisas parecem ser e o que são. O pintor quer saber o que as coisas parecem ser, enquanto o homem prático e o filósofo desejam saber o que são. Contudo, o desejo do filósofo por este saber é mais forte que o do homem prático e igualmente mais afectado pelo conhecimento das dificuldades em responder à questão.

Voltemos à mesa. O que vimos torna claro que não existe nenhuma cor que apareça distintamente como sendo a cor da mesa, ou mesmo de uma qualquer parte da mesa. De pontos de vista diferentes a mesa parece ser de cores diferentes e não há qualquer razão para que consideremos uma delas como sendo realmente a sua cor. Sabemos também que mesmo dum dado ponto de vista, sob luz artificial, para uma pessoa daltónica, ou para uma pessoa que use óculos com lentes azuis, a cor parecerá diferente, enquanto no escuro não existirá de todo cor, embora a mesa se mantenha imutável ao tacto ou à audição. A cor, portanto, não é inerente à mesa, mas depende dela, do observador e da forma como a luz nela incide. Na vida quotidiana, quando falamos da cor da mesa, aludimos apenas à cor que parecerá ter a um observador normal, dum ponto de vista habitual e em condições de luz vulgares. No entanto, as cores que aparecem sob outras condições têm idêntico direito a serem consideradas reais e, por conseguinte, para evitar qualquer favoritismo, somos levados a negar que, em si mesma, a mesa tenha uma qualquer cor em particular.

O mesmo se passa com a textura da mesa. Podemos ver a olho nu os veios da madeira, mas com excepção disso, a mesa parece lisa e uniforme. Contudo, se a observássemos por intermédio de um microscópio veríamos rugosidades, altos e baixos, e todo o género de irregularidades imperceptíveis a olho nu. Qual destas é a mesa «real»? Temos, como é natural, a tentação de dizer que o que vemos através do microscópio é mais real, mas isso, por sua vez, seria alterado por um microscópio ainda mais poderoso. Se, portanto, não podemos confiar no que vemos a olho nu, porque deveremos confiar no que vemos por intermédio de um microscópio? Deste modo, uma vez mais, a confiança que tínhamos nos sentidos ao começar, abandona-nos.

Não estamos em melhor situação no que respeita à forma da mesa. Temos todos o hábito de fazer juízos acerca das formas «reais» das coisas, e fazêmo-los de forma tão irreflectida, que acabamos por pensar que vemos efectivamente as formas reais. Mas, de facto, como teremos todos de aprender se a tentarmos desenhar, uma mesma coisa parece ter, de pontos de vista diferentes, formas diferentes. Se a nossa mesa é «realmente» rectangular, irá parecer, de quase todos os pontos de vista, como se tivesse dois ângulos agudos e dois ângulos obtusos. Se os lados opostos são paralelos, irão parecer convergir num ponto afastado do observador; se são de extensão idêntica, o lado mais próximo irá parecer maior. Geralmente não nos apercebemos destas coisas quando olhamos para uma mesa porque a experiência ensinou-nos a construir a forma «real» a partir da forma aparente e, como homens práticos, o que nos interessa é a forma «real». Mas a forma «real» não é o que vemos, é algo inferido do que vemos. E o que vemos, à medida que nos movemos na sala muda constantemente de forma, pelo que, uma vez mais, parece que os sentidos não nos mostram a verdade sobre a própria mesa, mas apenas sobre a aparência da mesa.

Deparamo-nos com dificuldades análogas quando examinamos o sentido do tacto. Não há dúvida que a mesa produz sempre em nós uma sensação de dureza e que sentimos a sua resistência à pressão. No entanto, a sensação que temos depende da força e da parte do corpo com que pressionamos a mesa. Não se pode supor, portanto, que as sensações diferentes que resultam das pressões diferentes ou das partes do corpo diferentes, revelem directamente uma propriedade específica da mesa, mas que, na melhor das hipóteses, sejam sinais de alguma propriedade que talvez cause todas as sensações, embora não apareça efectivamente em nenhuma delas. E o mesmo se aplica de forma ainda mais óbvia aos sons produzidos percutindo a mesa.

Torna-se desta forma evidente que a mesa real, se existe, não é idêntica à de que temos experiência imediata pela visão, pelo tacto ou pela audição. Da mesa real, se existe, não temos qualquer conhecimento imediato, embora deva ser obtida por inferência a partir daquilo de que temos conhecimento imediato. Isto dá origem simultaneamente a duas questões bastante difíceis, a saber: 1) Existe uma mesa real? 2) Se sim, que espécie de objecto pode ser?

A posse de alguns termos simples, cujo significado seja definido e claro, ajudar-nos-á a examinar estas questões. Chamaremos «dados dos sentidos» às coisas de que temos conhecimento imediato na sensação: coisas como cores, sons, cheiros, durezas, rugosidades, etc. Chamaremos «sensação» à experiência de ter imediatamente consciência destas coisas. Assim, sempre que vemos uma cor, temos uma sensação da cor, mas a própria cor é um dado dos sentidos, não uma sensação. A cor é aquilo de que estamos imediatamente conscientes, e a própria consciência é a sensação. É evidente que se viermos a saber algo acerca da mesa, deve ser por intermédio dos dados dos sentidos a cor castanha, a forma oval, a lisura, etc. que associamos com a mesa; mas pelas razões já expostas, não podemos dizer que a mesa é os dados dos sentidos, ou mesmo que os dados dos sentidos são propriedades directas da mesa. Surge deste modo o problema da relação entre os dados dos sentidos e a mesa real, supondo que existe uma tal coisa.

Chamaremos à mesa real, se existe, «objecto físico». Por conseguinte, temos de examinar a relação entre os dados dos sentidos e os objectos físicos. À colecção de todos os objectos físicos chama-se «matéria». Assim, as nossas duas questões podem ser reafirmadas da seguinte forma: 1) Existe matéria? 2) Se sim, qual é a sua natureza?

O Bispo Berkeley (1685-1753) foi o primeiro filósofo a dar destaque às razões para que neguemos a existência independentemente dos objectos imediatos dos nossos sentidos. A sua obra Três Diálogos entre Hylas e Philonous, em Oposição aos Cépticos e Ateus procura provar que não existe matéria e que o mundo é constituído apenas pelas mentes e as suas ideias. Hylas tinha até esse momento acreditado na matéria, mas não é adversário para Philonous, que o leva inexoravelmente a cair em contradições e paradoxos, e faz a negação da matéria parecer, no fim, quase senso comum. Os argumentos usados são de valor muito desigual: alguns são importantes e correctos; outros são confusos ou cavilosos. Mas Berkeley possui o mérito de ter mostrado que se pode negar sem absurdo a existência da matéria, e que, se há coisas que existem independentemente de nós, não podem ser os objectos imediatos das nossas sensações.

O problema da existência da matéria envolve duas questões diferentes que é importante distinguir com clareza. Normalmente entendemos por «matéria» algo oposto a «mente», algo que ocupa espaço e é completamente incapaz de qualquer espécie de pensamento ou consciência. É principalmente neste sentido que Berkeley nega a matéria; isto é, ele não nega que os dados dos sentidos que normalmente consideramos como sinais da existência da mesa sejam realmente sinais da existência de algo independente de nós, mas nega que este algo seja não mental, que não seja a mente ou as ideias concebidas por uma mente. Ele admite que deve haver algo que continue a existir quando abandonamos o aposento ou fechamos os olhos, e que aquilo a que chamamos ver a mesa nos dá razões para crermos em algo que persiste mesmo quando não o estamos a ver. Mas pensa que este algo não pode ter uma natureza radicalmente diferente daquilo que vemos, e que não pode ser completamente independente da visão, embora deva ser independente da nossa visão. É assim levado a olhar a mesa «real» como uma ideia na mente de Deus. Esta ideia tem a permanência e a independência em relação a nós exigidas, sem ser como de outro modo a matéria seria algo totalmente incognoscível, no sentido em que a podemos apenas inferir mas nunca podemos ter directamente e imediatamente consciência dela.

Houve outros filósofos depois de Berkeley a afirmar também que, embora a existência da mesa não dependa dela ser vista por mim, depende de ser vista (ou de algum modo apreendida na sensação) por uma mente não necessariamente a mente de Deus, mas com maior frequência a mente colectiva do universo. Como Berkeley, defendem esta posição principalmente porque pensam que não pode existir nada real ou, em todo o caso, nada que se saiba sê-lo excepto as mentes com os seus pensamentos e sentimentos. Podemos formular o argumento com que sustentam a sua posição mais ou menos assim: «Tudo o que pode ser pensado é uma ideia na mente da pessoa que a pensa; portanto, só ideias nas mentes podem ser pensadas; portanto, qualquer outra coisa é inconcebível, e o que é inconcebível não pode existir.»

Em minha opinião este argumento é falacioso; e, obviamente, aqueles que o empregam não o expressam de forma tão concisa ou grosseira. Mas válido ou não, o argumento com uma ou outra forma tem sido amplamente usado, e muitos filósofos, talvez a maioria, sustentaram que só as mentes e as suas ideias são reais. A estes filósofos chama-se «idealistas». Quando explicam a matéria, ou dizem, como Berkeley, que a matéria é de facto apenas uma colecção de ideias, ou dizem, como Leibniz (1646-1716), que o que aparece como matéria é de facto uma colecção de mentes mais ou menos rudimentares.

Mas estes filósofos, embora neguem a matéria enquanto oposta à mente, admitem-na, contudo, noutro sentido. Recordemos as duas questões que fizemos: 1) Existe uma mesa real? 2) Se sim, que espécie de objecto pode ser? Ora, tanto Berkeley como Leibniz admitem que existe uma mesa real, mas Berkeley diz que ela consiste em certas ideias na mente de Deus e Leibniz diz que é uma colónia de almas. Portanto, ambos respondem pela afirmativa à primeira questão e divergem da visão das pessoas comuns apenas na resposta à segunda. Na verdade, quase todos os filósofos parecem concordar com a existência de uma mesa real; quase todos concordam que, por muito que os nossos dados dos sentidos a cor, a forma, a lisura, etc. possam depender de nós, a sua ocorrência é, todavia, um sinal de algo que existe independentemente de nós, algo que talvez difira completamente dos nossos dados dos sentidos e, apesar de tudo, seja olhado como a causa desses dados dos sentidos sempre que estamos numa relação apropriada com a mesa real.

Obviamente, este ponto em que os filósofos concordam a posição de que existe uma mesa real, qualquer que seja a sua natureza é de importância vital, e vale a pena examinar que razões temos para aceitar esta posição antes de abordarmos a questão da natureza da mesa real. Por este motivo, o próximo capítulo tratará das razões para supormos que existe uma mesa real.

Antes de avançarmos será bom que examinemos brevemente o que descobrimos até agora. Vimos que, se investigarmos um objecto vulgar, do género que os sentidos conhecem, o que os sentidos imediatamente nos dizem não é a verdade acerca do objecto em si mesmo, mas apenas a verdade acerca de determinados dados dos sentidos que, tanto quanto podemos ver, dependem das relações entre nós e o objecto. Por consequência, o que vemos e sentimos directamente é apenas uma «aparência», que acreditamos ser o sinal de uma «realidade» escondida. Mas, se a realidade não é o que aparece, temos maneira de saber se existe uma realidade? E se sim, temos maneira de descobrir a que é que se assemelha?

Estas questões são desconcertantes e é difícil provar que não são verdadeiras mesmo as hipóteses mais estranhas. Assim, a mesa, que até agora só provocou em nós pensamentos triviais, tornou-se num problema com muitas e surpreendentes possibilidades. A única coisa que sabemos a seu respeito é que não é o que parece. Até agora, além deste modesto resultado, temos toda a liberdade para conjecturar. Leibniz diz-nos que é uma comunidade de almas; Berkeley uma ideia na mente de Deus; a ciência, não menos maravilhosa, uma vasta colecção de cargas eléctricas dotadas de movimento violento.

No meio destas possibilidades surpreendentes, a dúvida sugere que talvez não exista nenhuma mesa. Embora a filosofia não possa responder a tantas questões quanto desejaríamos, pode colocar questões que tornam o mundo mais interessante e mostram o estranho e maravilhoso que existe mesmo nas coisas mais vulgares da vida quotidiana.

Bertrand Russell
Tradução de Álvaro Nunes
Texto retirado de The Problems of Philosophy (Oxford University Press, 1912).


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Estética da Arte:
 
 
Crítica Central de filosofia e cultura
 Estética e Filosofia da Arte Filosofia Leitura Música

A estética no novo programa do Ministério
Aires Almeida

O novo programa de Introdução à Filosofia do Ministério não traz, em termos gerais, grandes novidades em relação ao programa que se encontra ainda em vigor. Em relação ao ponto 3.2. do 10º ano, A dimensão estética análise e compreensão da experiência estética", a grande diferença reside no facto de não constituir um tópico obrigatório, aparecendo como opção alternativa ao ponto 3.3. A dimensão religiosa análise e compreensão da experiência religiosa.

É meu objectivo mostrar que o novo programa do Ministério para a estética não é filosoficamente aceitável, destacando três razões principais que justificam a sua reformulação completa: a vagueza da proposta; a confusão entre posições substanciais e noções de base da estética; e a confusão entre filosofia da arte e outras disciplinas não filosóficas. Nesse sentido, e uma vez que existe como alternativa disponível a contraproposta do Centro para o Ensino da Filosofia, farei a comparação entre ambas e concluirei a favor da adopção desta última. Se está interessado em comparar por si o programa do Ministério e a proposta do Centro para o Ensino da Filosofia pode puxar os respectivos textos aqui. Apresento, em apêndice, duas tabelas com a versão de cada proposta para esta Unidade.

Mas vejamos ponto por ponto o que o Ministério apresenta, a começar pelo lugar que a estética  ocupa no programa:

A dimensão estética análise e compreensão da experiência estética

A dimensão estética aparece na proposta do Ministério como uma subdivisão de um tópico mais vasto intitulado Dimensões da acção humana e dos valores. Este tópico faz, por sua vez, parte da unidade A acção humana e os valores. Mais detalhes com sugestões relativas ao percurso de aprendizagens são incluídos numa tabela em que também são referidas as competências / actividades esperadas. Nada disto é novo.

A primeira ideia com que se fica é a de que mais uma vez a estética, talvez subjugada a uma distorcida ideia de unidade programática, é confusa e incorrectamente apresentada como um ramo específico da filosofia da acção, dificultando assim a identificação dos problemas que lhe são característicos e o cumprimento daquilo que é um dos objectivos do próprio projecto: permitir que os alunos identifiquem com clareza as principais áreas e problemas da Filosofia. Esconde-se dessa forma que a estética é geralmente encarada como uma disciplina tradicional da filosofia com problemas próprios e que como tal costuma ser incluída nos planos curriculares dos cursos de filosofia -- o que nem sempre acontece com a filosofia da acção. Neste aspecto, a contraproposta do Centro para o Ensino da Filosofia ganha em clareza ao propor a estética como um unidade autónoma, ao mesmo tempo que evita a terminologia vaga com que esta disciplina é referida no projecto do Ministério.

Além disso, ao considerar a estética como a análise e compreensão da experiência estética, também se está a cometer o erro de tomar o conceito de experiência estética como uma noção de base central para a estética e não, como deveria ser, como um conceito afecto a algumas posições substanciais. A diferença entre uma noção de base e uma posição substancial torna-se clara quando se pensa que a primeira é um conceito neutro e meramente instrumental, ao passo que a segunda corresponde a uma posição teórica susceptível de ser tomada como verdadeira ou como falsa. A noção de base não está sujeita a discussão, a posição substancial é objecto de disputa. Ora, há filósofos da arte que contestam quer a necessidade teórica do conceito de experiência estética, quer a própria existência de algo como uma experiência estética. É o caso dos defensores das teorias institucional e instrumental da arte. Numa forma de conceber a estética como esta do Ministério, tais filósofos não teriam qualquer palavra a dizer. Dizer da estética  que consiste na análise e compreensão da experiência estética equivale a dizer, acerca da filosofia da religião, que esta consiste na análise e compreensão da experiência religiosa. Quem nunca teve uma experiência religiosa ou não sabe o que ela é, como sucede com muitos ateus, não terá nada a compreender. A contraproposta do Centro para o Ensino da Filosofia não opta por complicações desnecessárias e apresenta a estética simplesmente como «filosofia da arte». Mas tem o cuidado de começar por esclarecer, logo no ponto introdutório, que a estética é uma disciplina heterogénea e que, entre as várias formas como tem sido entendida, se encara aí a estética como filosofia da arte. Evita também a desorientação de alunos e professores, decorrente da confusão entre teoria do belo, teoria do gosto e filosofia da arte.

1. A experiência e o juízo estéticos

Numa disciplina como a estética, tão heterogénea e diversificada nos seus problemas, a primeira coisa a fazer deveria ser a de delimitar o segmento teórico a estudar, apresentando razões para essa escolha. Mas tal não é feito no programa do Ministério, abrindo caminho à indefinição.

Sendo assim, o menor dos males talvez até nem seja o de começar com a experiência e o juízo estéticos, ponto 3.2.1. do programa, pois é relativamente fácil encontrar aí um problema que atravessa a estética nos seus diferentes domínios. Contudo, se consultarmos o percurso de aprendizagens proposto -- e ao contrário do que seria de esperar -- nada vemos acerca das duas principais teorias disponíveis acerca da natureza do juízo estético: objectivismo e subjectivismo. O que lá encontramos de pouco serve, a não ser como pretexto para o improviso de carácter psicológico e para o devaneio sentimental.

Já a proposta do Centro para o Ensino da Filosofia começa, como referi atrás, por introduzir os alunos directamente na filosofia da arte, não deixando de os esclarecer que a estética não tem sido apenas considerada nesse sentido. Seguidamente faculta aos alunos algumas das noções de base que é preciso dominar para discutir os problemas da arte, nomeadamente o problema central da definição de «obra de arte». E conclui com a transmissão de algumas noções elementares de arte, sem as quais os alunos ficariam desprevenidos de exemplos necessários para testar as definições com que terão de se confrontar.  As vantagens da proposta do Centro para o Ensino da Filosofia  neste ponto são as de tornar claro aquilo que os alunos irão discutir e de evitar a conversa sem rumo, colocando à sua disposição a informação e os instrumentos teóricos necessários a uma discussão consequente.

2. A criação artística e a obra de arte

No ponto 3.2.2. a criação artística e a obra de arte percebe-se vagamente que  o que está em causa é o problema da natureza da obra de arte na perspectiva do artista. Ideia que é reforçada pela consulta do percurso de aprendizagens. Nesse caso a teoria da arte como expressão deveria ser aqui claramente discutida, uma vez que se trata de uma teoria da definição da arte centrada nas intenções e emoções do artista no acto criativo. Só que pela simples leitura do percurso de aprendizagem isso não se torna evidente, dependendo em grande parte daquilo que cada professor lá quiser encontrar.

O percurso de aprendizagens acrescenta ainda, numa formulação infeliz, que se deve proceder à apresentação de alguns dos critérios ou parâmetros do conceito de arte ao longo dos tempos. Dá assim a entender que o ponto de vista do artista não constitui um critério para o conceito de arte. E ficamos de novo sem saber o que se pretende  com o significado da arte no ponto de vista do artista. Contudo, o mais criticável nesta indicação é o de sugerir um tratamento histórico e não filosófico do problema da definição de «arte». Na verdade não se chega sequer a colocar a definição de «arte», ou de «obra de arte» como problema filosófico. O que daí resulta na prática é, previsivelmente, qualquer coisa do género: o professor informa os alunos que o filósofo F1 acha que a arte é x; que o filósofo F2 acha, por sua vez, que a arte é y; que o artista A1 acha que é z e assim por diante, conforme as suas preferências estéticas. Nenhum argumento é apresentado e, portanto, nenhum é discutido.

Discutir um dos problemas centrais da filosofia da arte é o que o programa do Centro para o Ensino da Filosofia propõe. Esse problema é o da definição de «obra de arte», o único a ser discutido. Até porque esse é o problema que, de forma vaga e imprecisa, os alunos começam por colocar em relação à arte. O programa do Centro para o Ensino da Filosofia sugere, por isso, que se comece por formular correctamente o problema, tendo os alunos de se confrontar seguidamente com as principais teorias disponíveis e respectivos argumentos. Podem assim utilizar alguns conhecimentos de arte que já possuam ou que entretanto venham a adquirir nas aulas, de modo testarem criticamente cada uma das definições apresentadas. A distinção entre boa e má arte pode também ser discutida em relação a cada uma das teorias da arte avaliadas. Deste modo os alunos identificam facilmente o que está em causa, sabem o que se espera deles e têm a oportunidade de utilizar informação empírica no exercício de competências filosóficas. Também se torna muito mais fácil avaliar os alunos, além de facilitar o acordo entre os professores do grupo sobre o que deve ser perguntado na prova global. Deixa, finalmente, de haver lugar para os comentários soltos e inconsequentes em que «arte», «belo» e «gosto» aparecem confundidos e dos quais só podem resultar perguntas nos testes tão vagas como comente a frase x.

3. Arte: produção, comunicação, conhecimento

O terceiro e último ponto arte: produção, comunicação, conhecimento é de todos o mais vago. Poderíamos pensar que ao ler o percurso de aprendizagens tal vagueza desapareceria. Mas é precisamente o contrário que se verifica. Sugerindo que se faça uma reflexão sobre a multidimensionalidade da obra de arte o que lá vemos é um pouco de tudo, menos de filosofia. Desde a economia à sociologia da arte e à história; desde a sociologia cultural à semiótica, tudo lá cabe. É o valor no mercado dos objectos de arte; é a  manifestação da identidade cultural dos povos; é a polissemia e é a revelação de novos modos de conhecer o sujeito. Ou seja, espera-se que frequentar aulas de diferentes professores seja quase como viajar entre diferentes planetas. A ideia com que se fica é a de que se procura transmitir aos alunos uma espécie de cultura geral artística; isto se os alunos entretanto não estiverem já demasiado desorientados para quererem seja o que for. Quanto aos problemas genuinamente filosóficos, nada.

Mesmo assim, não deixa de ser espantoso que em relação às competências especialmente visadas, tudo o que podemos ler na respectiva coluna é o seguinte: dada a importância das artes da imagem, poderia ser aqui um momento oportuno para uma iniciação à leitura crítica da linguagem icónica. Será que com isto se pretende que os alunos consigam explicar o significado dos pontos, manchas e linhas dos quadros de Kandinsky? Ou das figuras de anjos e posições das mãos nas pinturas de El Greco? Ou ainda das cores e figuras geométricas das obras de Mondrian? Mas essa não é uma competência filosófica, nem os professores estão preparados para tal.

A confirmação de que a estética não é encarada como uma disciplina filosófica vem da leitura das actividades propostas pelo Ministério: visionamento e interpretação de slides, filmes ..., audição de obras musicais, visitas de estudo orientadas a museus, exposições ..., análise de testemunhos de artistas sobre a criação e o objecto artístico e elaboração de dossiers temáticos.  É claro que algumas destas actividades podem ter interesse, sobretudo a título de informação de que os alunos carecem para a discussão dos problemas de filosofia da arte.  Mas nenhuma delas é uma actividade filosófica.

Conclusão:

As deficiências do programa do Ministério são várias e de graves consequências, das quais a menor não será o desinteresse dos alunos por conteúdos tão obscuros. Pede-se que esteja familiarizado com matérias demasiado vagas e difíceis, sem que tais matérias sejam filosoficamente relevantes. Talvez em nenhum outro tópico do programa os riscos de as aulas se tornarem numa caricatura filosófica são tão grandes como na estética. São riscos que a proposta do Centro para o Ensino da Filosofia não permite, apresentando um verdadeiro programa de filosofia da arte, embora outros bons programas de filosofia da arte pudessem ser apresentados. Mas esta parece ser, de momento, a melhor escolha.

Aires Almeida

APÊNDICE

Quem estiver interessado em comparar por si as propostas do Ministério e do Centro para o Ensino da Filosofia pode puxar os respectivos textos aqui. Em relação à estética, seguem-se duas tabelas em que cada uma delas é apresentada:

PROGRAMA DO MINISTÉRIO

Temas/Conteúdos A - percurso de aprendizagem B- competências / actividades Gestão
 

Momentos de um percurso possível para esta rubrica

Competências especialmente visadas

 

 

 

1. A experiência e o
 juízo estéticos

  

2.  A criação artística e a obra de arte

 

3. Arte: produção,
comunicação, 
conhecimento

 

1.    Reconhecimento da especificidade da experiência estética no triplo registo de experiência da natureza, da criação artística e da contemplação da obra de arte.

      Questionamento sobre a possibilidade de comunicação da experiência estética a natureza do juízo estético.

2.   Significado da arte e da criação artística o ponto de vista do artista.
Apresentação de alguns dos critérios ou parâmetros do conceito de arte ao longo dos tempos.

3.     Reflexão sobre a multidimensionalidade da obra de arte:
- objecto produzido valor no mercado;
- pluralidade de sentidos (polissemia);
- manifestação da identidade cultural dos povos;
- revelação de novos modos de conhecer  o sujeito e o mundo.

 

 CONCEITOS ESPECÍFICOS NUCLEARES estética, experiência estética, teoria estética, gosto, juízo de gosto, juízo estético, útil, agradável, belo, sublime, arte, obra de arte, artista, criação artística

 

Dada a importância das artes da imagem, poderia ser aqui um momento oportuno para uma iniciação à leitura crítica da linguagem icónica

Actividades

 Visionamento de slides, filmes ...

Audição de obras musicais

Visitas de estudo orientadas a museus, exposições ...

Análise de testemunhos de artistas sobre a criação e o objecto artístico

Elaboração de dossiers temáticos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  15 h

 


PROPOSTA DO CENTRO PARA O ENSINO DA FILOSOFIA

Temas

Conteúdo

Exposição analítica

1.
Introdução

 

(5 aulas)

 

O que é a filosofia da arte.


A distinção entre teoria do belo, teoria do gosto e filosofia da arte.


Definições explícitas e implícitas.

Definições e caracterizações.

Noções elementares de arte.

 

Neste ponto procura-se iniciar os estudantes à filosofia da arte. Isso pode ser feito apelando ao uso que eles costumam fazer do termo «estética», exemplificando dessa maneira a diversidade e a heterogeneidade dos problemas da estética. Devem assim, de forma breve, ficar a saber que, apesar de ser actualmente encarada como filosofia da arte, a estética também tem sido entendida quer como teoria do belo, quer como teoria do gosto, debatendo-se com problemas que são próprios de cada uma dessas formas de a entender.

            Aí chegados, os estudantes devem ser confrontados com alguns exemplos de problemas de filosofia da arte que lhes permitam, como nas unidades anteriores, perceber de forma clara e imediata o tipo de questões que vão tratar. Entre esses problemas deve ser destacado o problema da definição de «arte», apresentando o professor aquelas noções de base que permitam ao estudante orientar-se na sua discussão: saber em que consiste uma definição, que as definições tanto podem ser explícitas como implícitas e que as definições se distinguem das caracterizações.

Imprescindível, mesmo antes de enfrentar o problema fundamental da definição de «arte», é fornecer aos estudantes aqueles conhecimentos elementares acerca do mundo da arte sem os quais toda a discussão se tornaria árida, uma vez que ficariam desprovidos dos exemplos necessários para testar as definições a serem apresentadas posteriormente. Para isso sugere-se que o professor apresente algumas das noções fundamentais relativas às diferentes manifestações artísticas que, principalmente ao longo do século XX, contribuíram para a discussão dos problemas de filosofia da arte. (...)

 

2.
Filosofia da Arte

 

   (10 aulas)

 

Utilizações classificativa e valorativa da expressão «obra de arte».

 

O problema da definição de «obra de arte»:

Teorias essencialistas: arte e imitação; arte e expressão; arte e forma significante.

· A indefinibilidade da arte: a noção de semelhança de família.

· A teoria institucional da arte: a noção de «mundo da arte».

· A teoria instrumental da arte e a função simbólica da arte.

 

Uma vez adquiridas as noções de base necessárias no ponto anterior, enfrenta-se agora o problema da definição de «arte» e discutem-se as várias teorias disponíveis a esse respeito, assim como os argumentos que as sustentam. Antes, porém, há ainda que fazer a distinção entre as utilizações classificativa e valorativa de «obra de arte».

 

            Deve tornar-se claro para os estudantes o que distingue as teorias essencialistas das não essencialistas, nomeadamente o facto de as primeiras, ao contrário das segundas,  apresentarem definições explícitas de «arte». O professor pode aqui partir dos preconceitos dos estudantes acerca da arte, os quais frequentemente encontram afinidades com as teorias essencialistas, principalmente as teorias da arte como imitação e da arte como expressão. As teorias instrumental, institucional e da indefinibilidade da arte devem ser objecto de uma discussão mais desenvolvida do que as essencialistas, visto que o seu poder explicativo é maior do que as anteriores. A possibilidade de distinguir a boa da má arte deve também ficar clara a partir das teorias apresentadas. O professor deve sempre usar exemplos de obras de arte na apresentação e discussão da diversas teorias da arte.

 

 


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Oxford
                                             Companion to Philosophy, org. por Ted Honderich A ética da prática filosófica
R. W. Hepburn
Universidade de Edimburgo

A prática filosófica faz exigência morais extenuantes: honestidade e equidade para com os oponentes na argumentação; uma capacidade para tolerar uma incerteza prolongada quanto a questões sérias; a força de carácter para mudar as nossas ideias quanto a crenças básicas, e para seguir a argumentação e não as nossas inclinações emocionais; independência mental em vez da disposição para seguir as modas filosóficas.

O respeito moral pelos leitores e ouvintes exige que um filósofo evite a persuasão não racional, que não seja adulador, que não escarneça das outras pessoas e que não as procure manipular de outras formas de modo a concordarem com ele. A filosofia devia demonstrar que podemos discordar profundamente sobre questões fundamentais sem abandonarmos uma razoabilidade comum. O mesmo respeito exige que o filósofo exponha a estrutura do seu argumento tão claramente quanto possível, de modo a encorajar, e não impedir, a sua crítica.

A claridade e a simplicidade de estilo, o uso mínimo de expressões técnicas e o abandono do aparato técnico quando a linguagem comum pode ser adequada expressam também uma preocupação em ser entendido e em deixar ao argumento e à justificação, só por si, o papel de persuadir. Um estilo enfatuado e obscuro pode mascarar lacunas reais na argumentação. Um estilo pretensioso pode dissimuladamente trabalhar no sentido de desarmar a apreciação crítica, substituindo a autoridade do argumento bom com a pretensa autoridade pessoal do filósofo, apresentado como um sábio.

A filosofia tem uma responsabilidade séria pela linguagem. É um dos seus mais importantes guardiães obrigada a opor-se a terminologias que enleiam ou confundem o pensamento. Uma linguagem negligente e imprecisa perde sensibilidade às distinções entre o razoável e o irrazoável, entre o argumento bom e o mau em qualquer área, incluindo as áreas da moral pessoal e política. Empobrecer os recursos da linguagem pode também empobrecer a experiência humana, negando-nos as palavras de que precisamos para articular a sua variedade.

Será que sublinhar o estilo e o domínio da linguagem implica que a filosofia é um ramo da literatura? Em alguns aspectos importantes, a filosofia é literatura. Mas a aproximação é levada demasiado longe quando um filósofo deixa que a apresentação imaginativamente vívida de uma perspectiva sobre o mundo lhe dê uma aparência de auto-evidência, desviando a atenção crítica do facto de as categorias não terem sido deduzidas e de a justificação argumentativa ter sido subordinada à expressão da «visão» semi-poética.

Os filósofos precisam, pois, de um robusto sentido da sua falibilidade. É insensato que um filósofo aspire ao papel de especialista ou autoridade, pois isso é um passo mais no sentido do enfraquecimento da atenção crítica por parte de leitores e ouvintes de que o filósofo constantemente carece.

R. W. Hepburn
Tradução de Desidério Murcho

Bibliografia

  • Max Black (org.), The Morality of Scholarship (Ítaca, NY, 1967)
~~ In Oxford Companion to Philosophy (OUP, 1995, pp. 665-666)

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Filosofia e ciências da natureza: alguns elementos históricos
Aires Almeida

Este texto pretende oferecer ao aluno uma panorâmica geral e introdutória do modo como os filósofos têm encarado as ciências da natureza ao longo da história, e apresentar simultaneamente alguns elementos básicos da própria história do desenvolvimento científico. Nestas páginas encontram-se alguns elementos da história da ciência, mas, sobretudo, da história da filosofia da ciência, assim como elementos de história das ideias em geral e de história da filosofia em particular; isto é, trata-se em grande parte de uma panorâmica do modo como os filósofos têm encarado a ciência ao longo do tempo, e não tanto uma descrição, ainda que geral, do desenvolvimento da própria ciência. Os desenvolvimentos científicos surgem apenas como pano de fundo. Procurar ver como ao longo da história a pergunta filosófica «O que é a ciência da natureza?» seria respondida, pareceu-me uma boa maneira de orientar este texto. Estas páginas incluem, como ilustração das ideias aqui apresentadas, algumas passagens dos filósofos e cientistas referidos. Apesar de essas passagens serem escolhidas a pensar na facilidade de compreensão por parte dos alunos, todo o texto pode ser lido passando por cima delas sem que algo de essencial se perca.

Apesar de o termo "ciência" ser muito abrangente, neste texto iremos sobretudo centrar a nossa atenção nas ciências da natureza. Pelo facto de as ciências da natureza, e em particular a física e a astronomia, se terem desenvolvido mais cedo do que as ciências sociais, exerceram e continuam a exercer uma influência assinalável no modo como os filósofos encaram a ciência acontecendo até muitas vezes que eles usam o termo "ciência" como abreviatura de "física". Ao longo do texto irei muitas vezes usar o termo «ciência» para falar das ciências da natureza; quando falar das ciências formais como a geometria ou a matemática em geral, será suficientemente claro que já não estou a falar de ciências da natureza.

1. Os gregos

Mitos e deuses

Quando surgiu a ciência? Esta parece ser uma pergunta simples. Contudo, tem frequentemente dado origem a longas discussões. Discussões que acabam quase sempre por se deslocar para uma outra pergunta mais básica: o que é a ciência? Mais básica, pois a resposta para aquela depende da solução encontrada para esta.

Ora, o termo "ciência" nem sempre foi entendido da mesma maneira e ainda hoje as opiniões acerca do que deve ou não ser considerado como científico continuam divididas. Uma definição rigorosa e consensual de ciência é, pois, algo difícil de estabelecer.

Mas isso não nos deve impedir de avançar. Assim, a melhor maneira de começar talvez seja a de correr o risco de propor uma definição de ciência que, apesar de imprecisa, nos possa servir como ponto de partida, mesmo que venha depois a ser corrigida: a ciência da natureza é o estudo sistemático e racional, baseado em métodos adequados de prova, da natureza e do seu funcionamento.

Muitas das perguntas mais elementares que os seres humanos colocam a si próprios desde que são seres humanos são perguntas que podem dar origem a estudos científicos. Eis alguns exemplos dessas perguntas: Porque é que chove? O que é o trovão? De onde vem o relâmpago? Por que razão crescem as ervas? Por que razão existem os montes? Por que razão tenho fome? Por que razão morrem os meus semelhantes? Porque é que cai a noite e a seguir vem o dia de novo? O que são as estrelas? Por que razão voam os pássaros?...

Mas estas perguntas podem dar origem também a outro tipo de respostas que não as científicas; podem dar origem a respostas de carácter religioso e mítico. Essas respostas têm a característica de não se basearem nos métodos mais adequados e de não serem o produto de estudos sistemáticos. Uma resposta mítica ou religiosa apela à vontade de um Deus ou de deuses e conta uma história da origem do universo. Essa resposta não se baseia em estudos sistemáticos da natureza, mas antes na observação diária não sistemática; e não são estudos racionais dado que não encorajam a crítica, mas antes a aceitação religiosa. Isto não quer dizer que as respostas míticas e religiosas não tivessem qualquer valor. Por exemplo, é óbvio que numa altura em que a ciência, com os seus métodos racionais de prova, ainda não estava desenvolvida, as explicações míticas e religiosas eram pelo menos uma maneira de responder à curiosidade natural dos seres humanos. Além disso, as explicações míticas e religiosas de um dado povo dão a esse povo uma importância central na ordem das coisas. E têm ainda outra característica importante: essas explicações constituem muitas vezes códigos de conduta moral, determinando de uma forma integrada com a origem mítica do universo, o que se deve e o que não se deve fazer.

As explicações míticas e religiosas foram antepassados da ciência moderna, não por darem importância central aos seres humanos na ordem das coisas nem por determinarem códigos de conduta baseados na ordem cósmica, mas por ao mesmo tempo oferecerem explicações de alguns fenómenos naturais apesar de essas explicações não se basearem em métodos adequados de prova nem na observação sistemática da natureza.

Os primeiros filósofos-cientistas

A ciência da natureza é diferente do mito e da religião. A ciência baseia-se em observações sistemáticas, é um estudo racional e usa métodos adequados de prova. Como é natural, os primeiros passos em direcção à ciência não revelam ainda todas as características da ciência revelam apenas algumas delas. O primeiro, e tímido, passo na direcção da ciência só foi dado no início do séc. VI a. C. na cidade grega de Mileto, por aquele que é apontado como o primeiro filósofo, Tales de Mileto.

Tales de Mileto acreditava em deuses. Só que a resposta que ele dá à pergunta acerca da origem ou princípio de tudo o que vemos no mundo já não é mítica; já não se baseia em entidades sobrenaturais.. Dizia Tales que o princípio de todas as coisas era algo que por todos podia ser directamente observado na natureza: a água. Tendo observado que a água tudo fazia crescer e viver, enquanto que a sua falta levava os seres a secar e morrer; tendo, talvez, reparado que na natureza há mais água do que terra e que grande parte do próprio corpo humano era formado por água; verificando que esse elemento se podia encontrar em diferentes estados, o líquido, o sólido e o gasoso, foi assim levado a concluir que tudo surgiu a partir da água. A explicação de Tales ainda não é científica; mas também já não é inteiramente mítica. Têm características da ciência e características do mito. Não é baseada na observação sistemática do mundo, mas também não se baseia em entidades míticas. Não recorre a métodos adequados de prova, mas também não recorre à autoridade religiosa e mítica.

Este último aspecto é muito importante. Consta que Tales desafiava aqueles que conheciam as suas ideias a demonstrar que não tinha razão. Esta é uma característica da ciência e da filosofia que se opõe ao mito e à religião. A vontade de discutir racionalmente ideias, ao invés de nos limitarmos a aceitá-las, é um elemento sem o qual a ciência não se poderia ter desenvolvido. Uma das vantagens da discussão aberta de ideias é que os defeitos das nossas ideias são criticamente examinados e trazidos à luz do dia por outras pessoas. Foi talvez por isso que outros pensadores da mesma região surgiram apresentando diferentes teorias e, deste modo, se iniciou uma tradição que se foi gradualmente afastando das concepções míticas anteriores. Assim apareceram na Grécia, entre outros, Anaximandro (séc. VI a. C.), Heraclito (séc. VI/V a. C.), Pitágoras (séc. VI a. C.), Parménides (séc. VI/V a. C.) e Demócrito (séc. V/IV a. C.). Este último viria mesmo a defender que tudo quanto existia era composto de pequeníssimas partículas indivisíveis (atomoi), unidas entre si de diferentes formas, e que na realidade nada mais havia do que átomos e o vazio onde eles se deslocavam. Foi o primeiro grande filósofo naturalista, que achava que não havia deuses e que a natureza tinha as suas próprias leis.

As ciências da natureza estavam num estado primitivo; pouco mais eram do que especulações baseadas na observação avulsa. Mas as ciências matemáticas começaram também desde cedo a desenvolver-se, e apresentaram desde o início muitos mais resultados do que as ciências da natureza. Pitágoras, por exemplo, descobriu vários resultados matemáticos importantes, e o nome dele ainda está associado ao teorema de Pitágoras da geometria (apesar de não se saber se terá sido realmente ele a descobrir este teorema, se um discípulo da sua escola). A escola pitagórica era profundamente mística; atribuía aos números e às suas relações um significado mítico e religioso. Mas os seus estudos matemáticos eram de valor, o que mostra mais uma vez como a ciência e a religião estavam misturadas nos primeiros tempos. Afinal, a sede de conhecimento que leva os seres humanos a fazer ciências, religiões, artes e filosofia é a mesma.

O maior desenvolvimento das ciências matemáticas teve repercussões importantíssimas para o desenvolvimento da ciência, para a filosofia da ciência e para a filosofia em geral. Os resultados matemáticos tinham uma característica muito diferente das especulações sobre a origem do universo e de todas as coisas. Ao passo que havia várias ideias diferentes quanto à origem das coisas, os resultados matemáticos eram consensuais. Eram consensuais porque os métodos de prova usados eram poderosos; dada a demonstração matemática de um resultado, era praticamente impossível recusá-lo.

A matemática tornou-se assim um modelo da certeza. Mas este modelo não é apropriado para o estudo da natureza, pois a natureza depende crucialmente da observação. Além disso, não se pode aplicar a matemática à natureza se não tivermos à nossa disposição instrumentos precisos de quantificação, como o termómetro ou o cronómetro. Assim, o sentimento de alguns filósofos era (e por vezes ainda é) o de que só o domínio da matemática era verdadeiramente «científico» e que só a matemática podia oferecer realmente a certeza. Só Galileu e Newton, já no século XVII, viriam a mostrar que a matemática se pode aplicar à natureza e que as ciências da natureza têm de se basear noutro tipo de observação diferente da observação que até aí se fazia.

Platão e Aristóteles

Uma das preocupações de Platão (428-348 a.C.) foi distinguir a verdadeira ciência e o verdadeiro conhecimento da mera opinião ou crença. Um dos problemas que atormentaram os filósofos gregos em geral e Platão em particular, foi o problema do fluxo da natureza. Na natureza verificamos que muitas coisas estão em mudança constante: as estações sucedem-se, as sementes transformam-se em árvores, os planetas e estrelas percorrem o céu nocturno. Mas como poderemos nós ter a esperança de conseguir explicar os fenómenos naturais, se eles estão em permanente mudança? Para os gregos, isto representava um problema por alguns dos motivos que já vimos: não tinham instrumentos para medir de forma exacta, por exemplo, a velocidade; e assim a matemática, que constituía o modelo básico de pensamento científico, era inútil para estudar a natureza. A matemática parecia aplicar-se apenas a domínios estáticos e eternos. Como o mundo estava em constante mudança, parecia a alguns filósofos que o mundo não poderia jamais ser objecto de conhecimento científico.

Era essa a ideia de Platão. Este filósofo recusava a realidade do mundo dos sentidos; toda a mudança que observamos diariamente era apenas ilusão, reflexos pálidos de uma realidade supra-sensível que poderia ser verdadeiramente conhecida. E a geometria, o ramo da matemática mais desenvolvida do seu tempo, era a ciência fundamental para conhecer o domínio supra-sensível. Para Platão, só podíamos ter conhecimento do domínio supra-sensível, a que ele chamou o domínio das Ideias ou Formas; do mundo sensível não podíamos senão ter opiniões, também elas em constante fluxo. O domínio do sensível era, para Platão, uma forma de opinião inferior e instável que nunca nos levaria à verdade universal, eterna e imutável, já que se a mesma coisa fosse verdadeira num momento e falsa no momento seguinte, então não poderia ser conhecida.

Podemos ver a distinção entre os dois mundos, que levaria à distinção entre ciência e opinião, na seguinte passagem de um dos seus diálogos:

Há que admitir que existe uma primeira realidade: o que tem uma forma imutável, o que de nenhuma maneira nasce nem perece, o que jamais admite em si qualquer elemento vindo de outra parte, o que nunca se transforma noutra coisa, o que não é perceptível nem pela vista, nem por outro sentido, o que só o entendimento pode contemplar. Há uma segunda realidade que tem o mesmo nome: é semelhante à primeira, mas é acessível à experiência dos sentidos, é engendrada, está sempre em movimento, nasce num lugar determinado para em seguida desaparecer; é acessível à opinião unida à sensação.

Platão, Timeu

Conhecer as ideias seria o mesmo que conhecer a verdade última, já que elas seriam os modelos ou causas dos objectos sensíveis. Como tal, só se poderia falar de ciência acerca das ideias, sendo que estas não residiam nas coisas. Procurar a razão de ser das coisas obrigava a ir para além delas; obrigava a ascender a uma outra realidade distinta e superior. A ciência, para Platão não era, pois, uma ciência acerca dos objectos que nos rodeiam e que podemos observar com os nossos sentidos. Neste aspecto fundamental é que o principal discípulo de Platão, Aristóteles (384-322 a.C.), viria a discordar do mestre.

Aristóteles não aceitou que a realidade captada pelos nossos sentidos fosse apenas um mar de aparências sobre as quais nenhum verdadeiro conhecimento se pudesse constituir. Bem pelo contrário, para ele não havia conhecimento sem a intervenção dos sentidos. A ciência, para ele, teria de ser o conhecimento dos objectos da natureza que nos rodeia.

É verdade que os sentidos só nos davam o particular e Aristóteles pensava que não há ciência senão do universal. Mas, para ele, e ao contrário do seu mestre, o universal inferia-se do particular. Aristóteles achava que, para se chegar ao conhecimento, nos devíamos virar para a única realidade existente, aquela que os sentidos nos apresentavam.

Sendo assim, o que tínhamos de fazer consistia em partir da observação dos casos particulares do mesmo tipo e, pondo de parte as características próprias de cada um (por um processo de abstracção), procurar o elemento que todos eles tinham em comum (o universal). Por exemplo, todas as árvores são diferentes umas das outras, mas, apesar das suas diferenças, todas parecem ter algo em comum. Só que não poderíamos saber o que elas têm em comum se não observássemos cada uma em particular, ou pelo menos um elevado número delas. Ao processo que permite chegar ao universal através do particular chama-se por vezes «indução». A indução é, pois, o método correcto para chegar à ciência, tal como escreveu Aristóteles:

É evidente também que a perda de um sentido acarreta necessariamente o desaparecimento de uma ciência, que se torna impossível de adquirir. Só aprendemos, com efeito, por indução ou por demonstração. Ora a demonstração faz-se a partir de princípios universais, e a indução a partir de casos particulares. Mas é impossível adquirir o conhecimento dos universais a não ser pela indução, visto que até os chamados resultados da abstracção não se podem tornar acessíveis a não ser pela indução. (...) Mas induzir é impossível para quem não tem a sensação: porque é nos casos particulares que se aplica a sensação; e para estes não pode haver ciência, visto que não se pode tirá-la de universais sem indução nem obtê-la por indução sem a sensação.»

Aristóteles, Segundos Analíticos

Aristóteles representa um avanço importante para a história da ciência. Além de ter fundado várias disciplinas científicas (como a taxionomia biológica, a cosmologia, a meteorologia, a dinâmica e a hidrostática), Aristóteles deu um passo mais na direcção da ciência tal como hoje a conhecemos: pela primeira vez encarou a observação da natureza de um ponto de vista mais sistemático. Ao passo que para Platão a verdadeira ciência se fazia na contemplação dos universais, descurando a observação da natureza que é fundamental na ciência, Aristóteles dava grande importância à observação.

Aristóteles desenvolveu teorias engenhosas sobre muitas áreas da ciência e da filosofia. A própria filosofia da ciência foi pela primeira vez estudada com algum rigor por ele. Aristóteles achava que havia vários tipos de explicações, que correspondiam a vários tipos de causas. Um desses tipos de causas e de explicações era fundamental, segundo Aristóteles: a explicação teleológica ou finalista. Para Aristóteles, todas as coisas tendiam naturalmente para um fim (a palavra portuguesa «teleologia» deriva da palavra grega para fim: telos), e era esta concepção teleológica da realidade que explicava a natureza de todos os seres. Esta concepção da ciência como algo que teria de ser fundamentalmente teleológica iria perdurar durante muitos séculos, e constituir até um obstáculo importante ao desenvolvimento da ciência. Ainda hoje muitas pessoas pensam que a ciência contemporânea descreve o modo como os fenómenos da natureza ocorrem, mas que não explica o porquê desses fenómenos; isto é uma ideia errada, que resulta ainda da ideia aristotélica de que só as explicações finalistas são verdadeiras explicações.

Devido a um conjunto de factores, a Grécia não voltou a ter pensadores com a dimensão de Platão e Aristóteles. Mesmo assim apareceram ainda, no séc. III a. C., alguns contributos para a ciência, tais como os Elementos de Geometria de Euclides, as descobertas de Arquimedes na Física e, já no séc. II, Ptolomeu na astronomia.

2. A idade média

Crer para compreender

Entretanto, o mundo grego desmoronou-se e o seu lugar cultural viria, em grande parte, a ser ocupado pelo império romano. Entretanto, surge uma nova religião, baseada na religião judaica e inspirada por Jesus Cristo, que a pouco e pouco foi ganhando mais adeptos. O próprio imperador romano, Constantino, converteu-se ao cristianismo no início do século IV, acabando o cristianismo por se tornar a religião oficial do Império Romano. Inicialmente pregada por Cristo e seus apóstolos, a sua doutrina veio também a ser difundida e explicada por muitos outros seguidores, estando entre os primeiros S. Paulo e os padres da igreja dos quais se destacou S. Agostinho (354-430).

Tratava-se de uma doutrina que apresentava uma mensagem apoiada na ideia de que este mundo era criado por um Deus único, omnipotente, omnisciente, livre e infinitamente bom, tendo sido nós criados à sua imagem e semelhança. Sendo assim, tanto os seres humanos como a própria natureza eram o resultado e manifestação do poder, da sabedoria, da vontade e da bondade divinas. Como prova disso, Deus teria enviado o seu filho, o próprio Cristo, e deixado a sua palavra, as Sagradas Escrituras. Por sua vez, os seres humanos, como criaturas divinas, só poderiam encontrar o sentido da sua existência através da fé nas palavras de Cristo e das Escrituras. Uma das diferenças fundamentais do cristianismo em relação ao judaísmo consistia na crença de que Jesus era um deus incarnado, coisa que o judaísmo sempre recusou e continua a recusar.

A religião cristã acabou por ser a herdeira da civilização grega e romana. Aquando da derrocada do império romano, foram os cristãos e os árabes , espalhados por diversos mosteiros, que preservaram o conhecimento antigo. Dada a sua formação essencialmente religiosa, tinham tendência para encarar o conhecimento, sobretudo o conhecimento da natureza, de uma maneira religiosa. O nosso destino estava nas mãos de Deus e até a natureza nos mostrava os sinais da grandeza divina. Restava-nos conhecer a vontade de Deus. Só que, para isso, de nada serve a especulação filosófica se ela não for iluminada pela fé. E o conhecimento científico não pode negar os dogmas religiosos, e deve até fundamentá-los. A ciência e a filosofia ficam assim submetidas à religião; a investigação livre deixa de ser possível. Esta atitude de totalitarismo religioso irá acabar por ter consequências trágicas para Galileu e para Giordano Bruno (1548-1600), tendo este último sido condenado pela Igreja em função das suas doutrinas científicas e filosóficas: foi queimado vivo.

As teorias dos antigos filósofos gregos deixaram de suscitar o interesse de outrora. A sabedoria encontrava-se fundamentalmente na Bíblia, pois esta era a palavra divina e Deus era o criador de todas as coisas. Quem quisesse compreender a natureza, teria, então, que procurar tal conhecimento não directamente na própria natureza, mas nas Sagradas Escrituras. Elas é que continham o sentido da vontade divina e, portanto, o sentido de toda a natureza criada. Era isso que merecia verdadeiramente o nome de «ciência».

Compreender a natureza consistia, no fundo, em interpretar a vontade de Deus patente na Bíblia e o problema fundamental da ciência consistia em enquadrar devidamente os fenómenos naturais com o que as Escrituras diziam. Assim se reduzia a ciência à teologia, tal como é ilustrado na seguinte passagem de S. Boaventura (1217-1274), tirada de um escrito cujo título é, a este respeito, elucidativo:

E assim fica manifesto como a "multiforme sabedoria de Deus", que aparece claramente na Sagrada Escritura, está oculta em todo o conhecimento e em toda a natureza. Fica, igualmente, manifesto como todas as ciências estão subordinadas à teologia, pelo que esta colhe os exemplos e utiliza a terminologia pertencente a todo o género de conhecimentos. Fica, além disso, manifesto como é grande a iluminação divina e de que modo no íntimo de tudo quanto se sente ou se conhece está latente o próprio Deus.

S. Boaventura, Redução das Ciências à Teologia

Investigações recentes revelaram que, apesar do que atrás se disse, houve mesmo assim algumas contribuições que iriam ter a sua importância no que posteriormente viria a pertencer ao domínio da ciência. Mas o mundo medieval é inequivocamente um mundo teocêntrico e a instituição que se encarregou de fazer perdurar durante séculos essa concepção foi a Igreja. A Igreja alargou a sua influência a todos os domínios da vida. Não foi apenas o domínio religioso, foi também o social, o económico, o artístico e cultural, e até o político. Com o poder adquirido, uma das principais preocupações da Igreja passou a ser o de conservar tal poder, decretando que as suas verdades não estavam sujeitas à crítica e quem se atrevesse sequer a discuti-las teria de se confrontar com os guardiães em terra da verdade divina.

Compreender para crer

Todavia, começou a surgir, por parte de certos pensadores, a necessidade de dar um fundamento teórico, ou racional, à fé cristã. Era preciso demonstrar as verdades da fé; demonstrar que a fé não contradiz a razão e vice-versa. Se antes se dizia que era preciso «crer para compreender», deveria então juntar-se «compreender para crer». A fé revela-nos a verdade, a razão demonstra-a. Assim, fé e razão conduzem uma à outra.

Foi esta a posição do mais destacado de todos os filósofos cristãos, S. Tomás de Aquino (1224-1274). S. Tomás veio dar ao cristianismo todo um suporte filosófico, socorrendo-se para tal dos conceitos da filosofia aristotélica que se vê, deste modo, cristianizada. Tanto os conceitos metafísicos de Aristóteles ¾ nomeadamente que tudo quanto existe tem uma causa primeira e um fim último ¾ como a sua cosmologia (geocentrismo reformulado por Ptolomeu: o universo é formado por esferas concêntricas, no meio do qual está a Terra imóvel) foram utilizados e adaptados à doutrina cristã da Igreja por S. Tomás. Aristóteles passou a ser estudado e comentado nas escolas (que pertenciam à Igreja, funcionando nos seus mosteiros) e tornou-se, a par das Escrituras, uma autoridade no que diz respeito ao conhecimento da natureza.

A alquimia

Além do que ficou dito, há um aspecto que não pode ser desprezado quando se fala da ciência na Idade Média e que é a alquimia. As práticas alquímicas, apesar do manto de segredo com que se cobriam, eram muito frequentes na Idade Média. O alquimista encarava a natureza como algo de misterioso e fantástico, o que não era estranho ao espírito medieval, em que tudo estava impregnado de simbolismo. Cabia-lhe decifrar e utilizar esses símbolos para descobrir as maravilhas da natureza. Desse modo ele poderia não só penetrar nos seus segredos como também manipulá-la e, por exemplo, transformar os metais vis em metais preciosos. Por tudo isso, os alquimistas foram vistos, por muitos, como verdadeiros agentes do demónio. O anonimato seria a melhor forma de prosseguir nas suas práticas, as quais eram consideradas como ilícitas em relação aos programas oficiais das escolas da época. Daí a existência das chamadas sociedades secretas, do ocultismo e do esoterismo, onde a própria situação de anonimato ia a par do mistério que cobre todas as coisas.

Há quem defenda que tudo isso, ao explorar certos aspectos da natureza proibidos pelas autoridades religiosas deu também o seu contributo à ciência, nomeadamente à química, que, na altura, ainda não tinha surgido. Mas esta tese tem poucos exemplos em que se apoiar e parece até que o verdadeiro espírito científico moderno teve de se debater com a resistência dos fantasmas irracionais associados à alquimia e outras práticas do género pouco dadas à compreensão racional dos fenómenos naturais. A alquimia continuou a praticar-se e chegou mesmo a despertar o interesse de algumas das mais importantes figuras da história da ciência, como foi o caso de Newton. O mais conhecido praticante da alquimia foi Paracelso (1493-1541), em pleno período renascentista.

3. A ciência moderna

Os precursores

Não é possível dizer exactamente quando terminou a Idade Média e começou o período que se lhe seguiu. Há, todavia, uma data que é frequentemente apontada como referência simbólica da passagem de uma época à outra. Essa data é 1453, data que marca a queda do Império Romano do Oriente.

O início do Renascimento trouxe consigo uma longa série de transformações que seria impossível referir aqui na sua totalidade. Algumas dessas transformações mostraram os seus primeiros indícios ainda no período medieval e tiveram muito que ver com, entre outros factos, o aparecimento de novas classes que já não estavam inseridas na rígida estrutura feudal, própria do mundo rural medieval. Essas classes são as dos mercadores e artífices, as quais dependem essencialmente do comércio marítimo. Fora da tradicional hierarquia feudal, muitas pessoas prosperam nas cidades. Cidades que se desenvolvem e onde começa a surgir também uma indústria, sobretudo ligada à manufactura de produtos ¾ com a valorização dos artesãos ¾ e à construção naval. Isso trouxe consigo um inevitável progresso técnico que viria a colocar novos problemas no domínio da ciência. Para tal contribuíram, além do comércio naval atrás referido, também os descobrimentos marítimos. Descobrimentos em que Portugal ocupa um lugar de relevo. O mundo fechado do tempo das catedrais começa, assim, a abrir-se, com as velhas certezas a ruir e os horizontes de um «novo universo» a alargar-se.

O homem renascentista começou a virar-se mais para si do que para os dogmas bíblicos e a interessar-se cada vez mais pelas ideias, durante tantos séculos esquecidas, dos grandes filósofos gregos, de modo a fazer renascer os ideais da cultura clássica ¾ daí o nome de Renascimento. Esta é uma nova atitude a que se chamou «humanismo». O protótipo do homem renascentista é Leonardo da Vinci, pintor, escultor, arquitecto, engenheiro, escritor, etc., a quem tudo interessa. Muitas verdades intocáveis são revistas e caem do seu pedestal. O que leva, inclusivamente, à contestação da autoridade religiosa do Papa, como acontece com Lutero (1483-1546), dando origem ao protestantismo e à reforma da Igreja.

As mudanças acima apontadas irão estar na base de um acontecimento de importância capital na história da ciência: a criação, por Galileu (1564-1642), da ciência moderna. Com a criação da ciência moderna foi toda uma concepção da natureza que se alterou, de tal modo que se pode dizer que Galileu rompeu radicalmente com a tradicional concepção do mundo incontestada durante tantos séculos.

É claro que Galileu não esteve sozinho e podemos apontar pelo menos dois nomes que em muito ajudaram a romper com essa tradição e contribuíram de forma evidente para a criação da ciência moderna: Copérnico (1473-1543) e Francis Bacon (1561-1626).

Por um lado, Copérnico com a publicação do seu livro A Revolução das Órbitas Celestes veio defender uma teoria que não só se opunha à doutrina da Igreja, como também ao mais elementar senso comum, enquadrados pela autoridade da filosofia aristotélica largamente ensinada nas universidades da época: essa teoria era o heliocentrismo.

O heliocentrismo, ao contrário do geocentrismo até então reinante, veio defender que a Terra não se encontrava imóvel no centro do universo com os planetas e o Sol girando à sua volta, mas que era ela que se movia em torno do Sol. Ao defender esta teoria, Copérnico baseava-se na convicção de que a natureza não devia ser tão complicada quanto o esforço que era necessário para, à luz do geocentrismo aristotélico, compreender o movimento dos planetas, as fases da Lua e as estações do ano.

Seriam Galileu, graças às observações com o seu telescópio, e o astrónomo alemão Kepler (1571-1630), ao descobrir as célebres leis do movimento dos planetas, a completar aquilo que Copérnico não chegou a fazer: apresentar as provas que davam definitivamente razão à teoria heliocêntrica, condenando a teoria geocêntrica como falsa. Nada disto, porém, aconteceu sem uma grande resistência por parte dos «sábios» da altura e da Igreja, tendo esta ameaçado e mesmo julgado Galileu por tal heresia.

Por outro lado, Bacon propôs na sua obra Novum Organum um novo método para o estudo da natureza que viria a tornar-se uma marca distintiva da ciência moderna. Bacon defende a experimentação seguida da indução.

Mas não vimos atrás que também Aristóteles defendia a indução? É verdade que já há cerca de dois mil anos antes Aristóteles propunha a indução como método de conhecimento. Só que, para este, a indução não utilizava a experimentação. Se Aristóteles tivesse recorrido à experimentação, facilmente poderia concluir que, ao contrário do que estava convencido, a velocidade da queda dos corpos não depende do seu peso. Para Aristóteles, a indução partia da simples enumeração de casos particulares observados, enquanto que Bacon falava de uma observação que não era meramente passiva, até porque o homem de ciência deveria estar atento aos obstáculos que se interpõem entre o espírito humano e a natureza. Assim, seria necessário eliminar da observação vulgar as falsas imagens ¾ que tinham diferentes origens e a que Bacon dava o nome de idola ¾ e pôr essa observação à prova através da experimentação.

A par do que ficou dito, Bacon falava de uma ciência já não contemplativa como a anterior, mas uma ciência «activa e operativa» que visava possibilitar aos seres humanos os meios de intervir na natureza e a dominar. Esta ciência dos efeitos traz consigo o germe da interdependência entre ciência e tecnologia.

O nascimento da ciência moderna: Galileu

O que acaba de se referir contribuiu para o aparecimento de uma nova ciência, mas o seu fundador, como começou por se assinalar, foi Galileu.

Há três tipos de razões que fizeram de Galileu o pai de uma nova forma de encarar a natureza: em primeiro lugar, deu autonomia à ciência, fazendo-a sair da sombra da teologia e da autoridade livresca da tradição aristotélica; em segundo lugar, aplicou pela primeira vez o novo método, o método experimental, defendendo-o como o meio adequado para chegar ao conhecimento; finalmente, deu à ciência uma nova linguagem, que é a linguagem do rigor, a linguagem matemática.

Ao dar autonomia à ciência, Galileu fê-la verdadeiramente nascer. Embora na altura se lhe chamasse «filosofia da natureza», era a ciência moderna que estava a dar os seus primeiros passos. Antes disso, a ciência ainda não era ciência, mas sim teologia ou até metafísica. A verdade acerca das coisas naturais ainda se ia buscar às Escrituras e aos livros de Aristóteles.

E não foi fácil a Galileu quebrar essa dependência, tendo que se defender, após a publicação do seu livro Diálogo dos Grandes Sistemas, das acusações de pôr em causa o que a Bíblia dizia. Esta carta de Galileu é bem disso exemplo:

Posto isto, parece-me que nas discussões respeitantes aos problemas da natureza, não se deve começar por invocar a autoridade de passagens das Escrituras; é preciso, em primeiro lugar, recorrer à experiência dos sentidos e a demonstrações necessárias. Com efeito, a Sagrada Escritura e a natureza procedem igualmente do Verbo divino, sendo aquela ditada pelo Espírito Santo, e esta, uma executora perfeitamente fiel das ordens de Deus. Ora, para se adaptarem às possibilidades de compreensão do maior número possível de homens, as Escrituras dizem coisas que diferem da verdade absoluta, quer na sua expressão, quer no sentido literal dos termos; a natureza, pelo contrário, conforma-se inexorável e imutavelmente às leis que lhe foram impostas, sem nunca ultrapassar os seus limites e sem se preocupar em saber se as suas razões ocultas e modos de operar estão dentro das capacidades de compreensão humana. Daqui resulta que os efeitos naturais e a experiência sensível que se oferece aos nossos olhos, bem como as demonstrações necessárias que daí retiramos não devem, de maneira nenhuma, ser postas em dúvida, nem condenadas em nome de passagens da Escritura, mesmo quando o sentido literal parece contradizê-las.

Galileu, Carta a Cristina de Lorena

Foi também Galileu quem, na linha de Bacon, utilizou pela primeira vez o método experimental, o que lhe permitiu chegar a resultados completamente diferentes daqueles que se podiam encontrar na ciência tradicional. Um exemplo do pioneirismo de Galileu na utilização do método experimental é o da utilização do famoso plano inclinado, por si construído para observar em condições ideais (ultrapassando os obstáculos da observação directa) o movimento da queda dos corpos. Pôde, desse modo, repetir as experiências tantas vezes quantas as necessárias e registar meticulosamente os resultados alcançados. Tais resultados devem-se, ainda, a uma novidade que Galileu acrescentou em relação ao método indutivo de Bacon: o raciocínio matemático. A ciência não poderia mais construir-se e desenvolver-se tendo por base a interpretação dos textos sagrados; mas também não o poderia fazer por simples dedução lógica a partir de dogmas teológicos:

Ao cientista só se deve exigir que prove o que afirma. (...) Nas disputas dos problemas das ciências naturais, não se deve começar pela autoridade dos textos bíblicos, mas sim pelas experiências sensatas e pelas demonstrações indispensáveis.

Galileu, Audiência com o Papa Urbano VIII

Tratava-se de uma ciência cujas verdades deveriam ter um conteúdo empírico e que podiam ser não só expressas, mas também demonstradas numa linguagem já não qualitativa mas quantitativa: a linguagem matemática. Foi o que aconteceu quando Galileu, graças ao referido plano inclinado, pôs em prática o novo método e começou a investigar o movimento natural dos corpos. O resultado foi formular uma lei universal expressa matematicamente, o que tornava também possível fazer previsões. Diz ele:

Não há, talvez, na natureza nada mais velho que o movimento, e não faltam volumosos livros sobre tal assunto, escritos por filósofos. Apesar disso, muitas das suas propriedades (...) não foram observadas nem demonstradas até ao momento. (...) Com efeito, que eu saiba, ninguém demonstrou que o corpo que cai, partindo de uma situação de repouso, percorre em tempos iguais, espaços que mantêm entre si uma proporção idêntica à que se verifica entre os números ímpares sucessivos começando pela unidade.

Galileu, As Duas Novas Ciências

A velocidade da queda dos corpos (queda livre), é de tal modo apresentada que pode ser rigorosamente descrita numa fórmula matemática. Não seria possível fazer ciência sem se dominar a linguagem matemática. Metaforicamente, é através da matemática que a natureza se exprime:

A filosofia está escrita neste grande livro que está sempre aberto diante de nós: refiro-me ao universo; mas não pode ser lido antes de termos aprendido a sua linguagem e de nos termos familiarizado com os caracteres em que está escrito. Está escrito em linguagem matemática e as letras são triângulos, círculos e outras figuras geométricas, sem as quais é humanamente impossível entender uma só palavra.

Galileu, Il Saggiatore

A descrição matemática da realidade, característica da ciência moderna, trouxe consigo uma ideia importante: conhecer é medir ou quantificar. Nesse caso, os aspectos qualitativos não poderiam ser conhecidos. Também as causas primeiras e os fins últimos aristotélicos, pelos quais todas as coisas se explicavam, deixaram de pertencer ao domínio da ciência. Com Galileu a ciência aprende a avançar em pequenos passos, explicando coisas simples e avançando do mais simples para o mais complexo. Em lugar de procurar explicações muito abrangentes, procurava explicar fenómenos simples. Em vez de tentar explicar de forma muito geral o movimento dos corpos, procurava estudar-lhe as suas propriedades mais modestas. E foi assim, com pequenos passos, que a ciência alcançou o tipo de explicações extremamente abrangentes que temos hoje. Inicialmente, parecia que a ciência estava mais interessada em explicar o «como» das coisas do que o seu «porquê»; por exemplo, parecia que os resultados de Galileu quanto ao movimento dos corpos se limitava a explicar o modo como os corpos caem e não a razão pela qual caem; mas, com a continuação da investigação, este tipo de explicações parcelares acabaram por se revelar fundamentais para se alcançar explicações abrangentes e gerais do porquê das coisas só que agora estas explicações gerais estão solidamente ancoradas na observação e na medição paciente, assim como na descrição pormenorizada de fenómenos mais simples.

O mecanicismo: Descartes e Newton

A ciência galilaica lançou as bases para uma nova concepção da natureza que iria ser largamente aceite e desenvolvida: o mecanicismo.

O mecanicismo, contrariamente ao organicismo anteriormente reinante que concebia o mundo como um organismo vivo orientado para um fim, via a natureza como um mecanismo cujo funcionamento se regia por leis precisas e rigorosas. À maneira de uma máquina, o mundo era composto de peças ligadas entre si que funcionavam de forma regular e poderiam ser reduzidas às leis da mecânica. Uma vez conhecido o funcionamento das suas peças, tal conhecimento é absolutamente perfeito, embora limitado. Um ser persistente e inteligente pode conhecer o funcionamento de uma máquina tão bem como o seu próprio construtor e sem ter que o consultar a esse respeito.

Um dos grandes defensores do mecanicismo foi o filósofo francês Descartes (1596-1656), que chegou mesmo a escrever o seguinte:

Eu não sei de nenhuma diferença entre as máquinas que os artesãos fazem e os diversos corpos que a natureza por si só compõe, a não ser esta: que os efeitos das máquinas não dependem de mais nada a não ser da disposição de certos tubos, que devendo ter alguma relação com as mãos daqueles que os fazem, são sempre tão grandes que as suas figuras e movimentos se podem ver, ao passo que os tubos ou molas que causam os efeitos dos corpos naturais são ordinariamente demasiado pequenos para poderem ser percepcionados pelos nossos sentidos. Por exemplo, quando um relógio marca as horas por meio das rodas de que está feito, isso não lhe é menos natural do que uma árvore a produzir os seus frutos.

Descartes, Princípios da Filosofia

O mecanicismo é o antecessor do fisicalismo, uma doutrina que hoje em dia está no centro de grande parte da investigação dos filósofos contemporâneos. Tanto o mecanicismo como o fisicalismo são diferentes formas de reducionismo.

O que é o reducionismo? O reducionismo é a ideia, central no desenvolvimento da ciência e da filosofia, de que podemos reduzir alguns fenómenos de um certo tipo a fenómenos de outro tipo. Do ponto de vista psicológico e até filosófico, o reducionismo pode ser encarado como uma vontade de diminuir drasticamente o domínio de fenómenos primitivos existentes na natureza. Por exemplo, hoje em dia sabemos que todos os fenómenos químicos são no fundo agregados de fenómenos físicos; isto é, os fenómenos químicos são fenómenos que derivam dos físicos daí dizer-se que os fenómenos físicos são primitivos e que os químicos são derivados. Mas o reducionismo é mais do que uma vontade de diminuir o domínio de fenómenos primitivos: é um aspecto da tentativa de compreender a natureza última da realidade; é um aspecto importante da tentativa de saber o que explica os fenómenos. Assim, se os fenómenos químicos são no fundo fenómenos físicos, e se tivermos uma boa explicação e uma boa compreensão do que são os fenómenos físicos, então teremos também uma boa explicação e uma boa compreensão dos fenómenos químicos, desde que saibamos reduzir a química à física. O mecanicismo foi refutado no século XIX por Maxwell (1831-79), que mostrou que a radiação electromagnética e os campos electromagnéticos não tinham uma natureza mecânica. O mecanicismo é a ideia segundo a qual tudo o que acontece se pode explicar em termos de contactos físicos que produzem «empurrões» e «puxões».

Dado que o mecanicismo é uma forma de reducionismo, não é de admirar que o principal objectivo de Descartes tenha sido o de unificar as diferentes ciências como se de uma só se tratasse, de modo a constituir um saber universal. Não via mesmo qualquer motivo para que se estudasse cada uma das ciências em separado, visto que a razão em que se apoia o estudo de uma ciência é a mesma que está presente no estudo de qualquer outra:

Todas as ciências não são mais do que sabedoria humana, que permanece sempre una e sempre a mesma, por mais diferentes que sejam os objectos aos quais ela se aplica, e que não sofre nenhumas alterações por parte desses objectos, da mesma forma que a luz do Sol não sofre nenhumas modificações por parte das variadíssimas coisas que ilumina.

Descartes, Regras para a Direcção do Espírito

Para atingir tal objectivo seria necessário satisfazer três condições: dar a todas as ciências o mesmo método; partir do mesmo princípio; assentar no mesmo fundamento. Só assim se poderiam unificar as ciências.

Quanto ao método, Descartes achava também que só o rigor matemático poderia fazer as ciências dar frutos. Daí que tivesse dado o nome de mathesis universalis ao seu projecto de unificação das ciências. A matemática deveria, portanto, servir todas as ciências:

Deve haver uma ciência geral que explica tudo o que se pode investigar respeitante à ordem e à medida, sem as aplicar a uma matéria especial: esta ciência designa-se (...) pelo vocábulo já antigo e aceite pelo uso de mathesis universalis, porque encerra tudo o que fez dar a outras ciências a denominação de partes das matemáticas.

Descartes, Regras para a Direcção do Espírito

Relativamente à segunda condição, o princípio de que todo o conhecimento deveria partir, só poderia ser o pensamento ou razão. Descartes queria tomar como princípio do conhecimento alguma verdade que fosse de tal forma segura, que dela não pudéssemos sequer duvidar. E a única certeza inabalável que, segundo ele, resistia a qualquer dúvida só podia ser a evidência do próprio acto de pensar.

Finalmente, em relação ao fundamento do conhecimento, este deveria ser encontrado, segundo Descartes, em Deus. Deus era a única garantia da veracidade dos dados ¾ racionais e não sensíveis ¾ e, consequentemente, da verdade do conhecimento. Sem Deus não poderíamos ter a certeza de nada. Ele foi o responsável pelas ideias inatas que há em nós, tornando-se por isso o fundamento metafísico do conhecimento.

Temos, assim, as diversas ciências da época concebidas como os diferentes ramos de uma mesma árvore, ligados a um tronco comum e alimentados pelas mesmas raízes. As raízes de que se alimenta a ciência são, como vimos, as ideias inatas colocadas em nós por Deus. Estamos, neste caso, no domínio da metafísica:

Assim toda a filosofia é como uma árvore, cujas raízes são a metafísica, o tronco é a física, e os ramos que saem deste tronco são todas as outras ciências, que se reduzem a três principais, a saber, a medicina, a mecânica e a moral.

Descartes, Princípios da Filosofia

Vale a pena salientar duas importantes diferenças em relação a Galileu.

A primeira é a do papel que Descartes atribuiu à experiência. Se o método experimental de Galileu parte da observação sensível, o mesmo já não acontece com Descartes, cujo ponto de partida é o pensamento, acarretando com isso uma diferença de método. Não é que, para Descartes, a experiência não tenha qualquer papel, mas este é apenas complementar em relação à razão. Reforça-se, todavia, a importância da matemática.

A segunda diferença diz respeito ao lugar da metafísica. Enquanto Galileu se demarcou claramente de qualquer pressuposto metafísico, Descartes achava que a metafísica era o fundamento de todo o conhecimento verdadeiro. Mas se Descartes via em Deus o fundamento do conhecimento, não achava necessário, todavia, fazer intervir a metafísica na investigação e descrição dos fenómenos naturais.

Entretanto, a ciência moderna ia dando os seus frutos e a nova concepção do mundo, o mecanicismo, ganhando cada vez mais adeptos. Novas ciências surgiram, como é o caso da biologia, cuja paternidade se atribuiu a Harvey (1578-1657), com a descoberta da circulação do sangue. E assim se chegou àquele que é uma das maiores figuras da história da ciência, que nasceu precisamente no ano em que Galileu morreu: o inglês Isaac Newton (1642-1727).

Ao publicar o seu livro Princípios Matemáticos de Filosofia da Natureza, Newton foi responsável pela grande síntese mecanicista. Este livro tornou-se numa espécie de Bíblia da ciência moderna. Aí completou o que restava por fazer aos seus antecessores e unificou as anteriores descobertas sob uma única teoria que servia de explicação a todos os fenómenos físicos, quer ocorressem na Terra ou nos céus. Teoria que tem como princípio fundamental a lei da gravitação universal, na qual se afirmava que «cada corpo, cada partícula de matéria do universo, exerce sobre qualquer outro corpo ou partícula uma força atractiva proporcional às respectivas massas e ao inverso do quadrado da distância entre ambos».

Partindo deste princípio de aplicação geral, todos os fenómenos naturais poderiam, recorrendo ao cálculo matemático ¾ o cálculo infinitesimal, também inventado por Newton ¾ , ser derivados. Vejamos o que, a esse propósito, escreveu:

Proponho este trabalho como princípios matemáticos da filosofia, já que o principal problema da filosofia parece ser este: investigar as forças da natureza a partir dos fenómenos do movimento, e depois, a partir dessas forças, demonstrar os outros fenómenos; (...) Gostaria que pudéssemos derivar o resto dos fenómenos da natureza pela mesma espécie de raciocínio a partir de princípios mecânicos, pois sou levado por muitas razões a suspeitar que todos eles podem depender de certas forças pelas quais as partículas dos corpos, por causas até aqui desconhecidas, são ou mutuamente impelidas umas para as outras, e convergem em figuras regulares, ou são repelidas, e afastam-se umas das outras.

Newton, Princípios Matemáticos de Filosofia da Natureza

O universo era, portanto, um conjunto de corpos ligados entre si e regidos por leis rígidas. Massa, posição e extensão, eis os únicos atributos da matéria. No funcionamento da grande máquina do universo não havia, pois, lugar para qualquer outra força exterior ou divina. E, como qualquer máquina, o movimento é o seu estado natural. Por isso o mecanicismo apresentava uma concepção dinâmica do universo e não estática como pensavam os antigos.

Os fundamentos da ciência: Hume e Kant

Entretanto, os resultados proporcionados pela física newtoniana iam fazendo desaparecer as dúvidas que ainda poderiam subsistir em relação ao ponto de vista mecanicista e determinista da natureza. Os progressos foram imensos, o que parecia confirmar a justeza de tal ponto de vista.

A velha questão acerca do que deveria ser a ciência estava, portanto, ultrapassada. Interessava, sim, explicar a íntima articulação entre matemática e ciência, bem como os fundamentos do método experimental. Mas tais problemas imediatamente iriam dar origem a outro mais profundo: se o que caracteriza o conhecimento científico é o facto de produzir verdades universais e necessárias, então em que se baseiam a universalidade e necessidade de tais conhecimentos?

Este problema compreende-se melhor se pensarmos que a inferência válida que se usa na matemática e na lógica tem uma característica fundamental que a diferencia da inferência que se usa na ciência e a que geralmente se chama "indução", apesar de este nome referir muitos tipos diferentes de inferências. Na inferência válida da matemática e da lógica, é logicamente impossível que a conclusão seja falsa e as premissas sejam verdadeiras. Mas o mesmo não acontece na inferência indutiva: neste caso, podemos ter uma boa inferência com premissas verdadeiras, mas a sua conclusão pode ser falsa. Isto levanta um problema de justificação: como podemos justificar que as conclusões das inferências são realmente verdadeiras? Na inferência válida, é logicamente impossível que as premissas sejam verdadeiras e a conclusão falsa; mas como podemos justificar que, na boa inferência indutiva seja impossível que as conclusões sejam falsas se as premissas forem verdadeiras? É que essa impossibilidade não é fácil de compreender, dado que não é uma impossibilidade lógica. E apesar de as ciências da natureza usarem também muitas inferências válidas, não podem avançar sem inferências indutivas.

O filósofo empirista escocês David Hume (1711-1776) no seu Ensaio sobre o Entendimento Humano defendia que tudo o que sabemos procede da experiência, mas que esta só nos mostra como as coisas acontecem e não que é impossível que acontecem de outra maneira. É um facto que hoje o Sol nasceu, o que também sucedeu ontem, anteontem e nos outros dias anteriores. Mas isso é tudo o que os sentidos nos autorizam a afirmar e não podemos concluir daí que é impossível o Sol não nascer amanhã. Ao fazê-lo estaríamos a ir além do que nos é dado pelos sentidos. Os sentidos também não nos permitem formular juízos universais, mas apenas particulares. Ainda que um aluno só tenha tido até agora professores de filosofia excêntricos, ele não pode, mesmo assim, afirmar que todos os professores de filosofia são excêntricos. Nem a mais completa colecção de casos idênticos observados nos permite tirar alguma conclusão que possa tomar-se como universal e necessária. O facto de termos visto muitas folhas cair em nada nos autoriza a concluir que todas as folhas caem necessariamente, assim como o termos visto o Sol nascer muitas vezes não nos garante que ele nasça no dia seguinte, pois isso não constitui um facto empírico. Mas não é precisamente isso que fazemos quando raciocinamos por indução? E as leis científicas não se apoiam nesse tipo de raciocínio ou inferência? Logo, se algo de errado se passa com a indução, algo de errado se passa com a ciência.

Mas se as coisas na natureza sempre aconteceram de uma determinada maneira (se o Sol tem nascido todos os dias), não será de esperar que aconteçam do mesmo modo no futuro (que o Sol nasça amanhã)? Para Hume só é possível defender tal coisa se introduzirmos uma premissa adicional, isto é, se admitirmos que a natureza se comporta de maneira uniforme. A crença de que a natureza funciona sempre da mesma maneira é conhecida como o «princípio da uniformidade da natureza». Mas, interroga-se Hume, em que se fundamenta por sua vez o princípio da uniformidade da natureza? A resposta é que tal princípio se apoia na observação repetida dos mesmos fenómenos, o que nos leva a acreditar que a natureza se irá comportar amanhã como se comportou hoje, ontem e em todos os dias anteriores. Mas assim estamos a cair num raciocínio circular que é o seguinte: a indução só pode funcionar se tivermos antes estabelecido o princípio da uniformidade da natureza; mas estabelecemos o princípio da uniformidade da natureza por meio do raciocínio indutivo.

Por que razão insistimos, então, em fazer induções? A razão ou melhor, o motivo é inesperadamente simples: porque somos impelidos pelo hábito de observarmos muitas vezes a mesma coisa acontecer. Ora, isso não é do domínio lógico, mas antes do psicológico.

O que Hume fez foi uma crítica da lógica da indução. Esta apoia-se mais na crença do que na lógica do raciocínio. O mesmo tipo de crítica levou também Hume a questionar a relação de causa-efeito entre diferentes fenómenos. Como tal, para Hume, o conhecimento científico, enquanto conhecimento que produz verdades universais e necessárias, não é logicamente possível, assumindo, por isso, uma posição céptica.

Seria o cepticismo de Hume que iria levar Kant (1724-1804) a tentar encontrar uma resposta para tal problema.

Depois de uma crítica completa, na sua obra Crítica da Razão Pura, à forma como, em nós, se constituía o conhecimento, Kant concluiu que aquilo que conferia necessidade e universalidade ao conhecimento residia no próprio sujeito que conhece. Para Kant, o entendimento humano não se limitava a receber o que os sentidos captavam do exterior; ele era activo e continha em si as formas a priori ¾ que não dependem da experiência ¾ às quais todos os dados empíricos se teriam que submeter.

Era, pois, nessas formas a priori do entendimento que se devia encontrar a necessidade e universalidade do conhecimento:

Necessitamos agora de um critério pelo qual possamos distinguir seguramente um conhecimento puro de um conhecimento empírico. É verdade que a experiência nos ensina que algo é constituído desta ou daquela maneira, mas não que não possa sê-lo diferentemente. Em primeiro lugar, se encontrarmos uma proposição que apenas se possa pensar como necessária, estamos em presença de um juízo a priori (...). Em segundo lugar, a experiência não concede nunca aos seus juízos uma universalidade verdadeira e rigorosa, apenas universalidade suposta e comparativa (por indução), de tal modo que, em verdade, antes se deveria dizer: tanto quanto até agora nos foi dado verificar, não se encontram excepções a esta ou àquela regra. Portanto, se um juízo é pensado com rigorosa universalidade, quer dizer, de tal modo que nenhuma excepção se admite como possível, não é derivado da experiência, mas é absolutamente válido a priori. (...)

(...) Pois onde iria a própria experiência buscar a certeza se todas as regras, segundo as quais progride, fossem continuamente empíricas e, portanto, contingentes?

Kant, Crítica da Razão Pura

Verificando que os conhecimentos científicos se referiam a factos observáveis, mas que se apresentavam de uma forma universal e necessária, Kant caracterizou as verdades científicas como juízos sintéticos a priori. Sintéticos porque não dependiam unicamente da análise de conceitos; a priori porque se fundamentavam, não na experiência empírica, mas nas formas a priori do entendimento, as quais lhes conferiam necessidade e universalidade.

Restava, para este filósofo, uma questão: saber se a metafísica poderia ser considerada uma ciência. Mas a resposta foi negativa porque, em metafísica, não era possível formular juízos sintéticos a priori. As questões metafísicas ¾ a existência de Deus e a imortalidade da alma ¾ caíam fora do âmbito da ciência, ao contrário da ciência medieval em que o estatuto de cada ciência dependia, sobretudo, da dignidade do seu objecto, sendo a teologia e a metafísica as mais importantes das ciências.

A «solução» de Kant dificilmente é satisfatória. Ao explicar o carácter necessário e universal das leis científicas, Kant tornou-as inter-subjectivas: algo que resulta da nossa capacidade de conhecer e não do mundo em si. Quando um cientista afirma que nenhum objecto pode viajar mais depressa do que a luz, está para Kant a formular uma proposição necessária e universal, mas que se refere não à natureza íntima do mundo, mas antes ao modo como nós, seres humanos, conhecemos o mundo. Estavam abertas as portas ao idealismo alemão, que teria efeitos terríveis na história da filosofia. Nos anos 70 do século XX, o filósofo americano Saul Kripke (1940- ) iria apresentar uma solução parcial ao problema levantado por Hume que é muito mais satisfatória do que a de Kant. Kripke mostrou, efectivamente, como podemos inferir conclusões necessárias a partir de premissas empíricas, de modo que a necessidade das leis científicas não deriva do seu carácter sintético a priori, como Kant dizia, mas antes do seu carácter necessário a posteriori.

4. O positivismo do século xix

Comte

No século XIX, o ritmo do desenvolvimento científico e tecnológico cresceu imenso. Em consequência disso, a vida das pessoas sofreu alterações substanciais. Era a ciência que dava origem a novas invenções, as quais impulsionavam uma série de transformações na sociedade. Com efeito, estabeleceu-se uma relação entre os seres humanos e a ciência, de tal maneira que esta passou a fazer parte das suas próprias vidas.

Apareceram muitas outras ciências ao longo do século XIX, onde se contavam, por exemplo, a psicologia. O clima era de confiança em relação à ciência, na medida em que ela explicava e solucionava cada vez mais problemas. A física era o exemplo de uma ciência que apresentava imensos resultados e que nos ajudava a compreender o mundo como nunca antes tinha sido possível. A religião ia, assim, perdendo terreno no domínio do conhecimento e até a própria filosofia era frequentemente acusada de se perder em estéreis discussões metafísicas. A ciência não tinha, pois, rival.

É neste contexto que surge uma nova filosofia, apresentada no livro Curso de Filosofia Positiva, com o francês Auguste Comte (1798-1857): o positivismo.

O positivismo considera a ciência como o estado de desenvolvimento do conhecimento humano que superou, quer o estado das primitivas concepções mítico-religiosas, as quais apelavam à intervenção de seres sobrenaturais, quer o da substituição desses seres por forças abstractas. Comte pensa mesmo ter descoberto uma lei fundamental acerca do desenvolvimento do conhecimento, seja em que domínio for. Essa lei é a de que as nossas principais concepções passam sempre por três estados sucessivos: «o estado teológico ou fictício, o estado metafísico ou abstracto e o estado científico ou positivo». A cada estado corresponde um método de filosofar próprio. Trata-se, respectivamente, do método teológico, do método metafísico e do método positivo. Assim, a ciência corresponde ao estado positivo do conhecimento, que é, para Comte, o seu estado definitivo:

Estudando assim o desenvolvimento total da inteligência humana nas suas diversas esferas de actividade, desde o seu primeiro e mais simples desenvolvimento até aos nossos dias, penso ter descoberto uma grande lei fundamental, à qual ele se encontra submetido por uma necessidade invariável, e que me parece poder estabelecer-se solidamente, quer pelas provas racionais que o conhecimento da nossa organização nos fornece, quer pelas verificações históricas que resultam de um atento exame do passado. Esta lei consiste em que cada uma das nossas principais concepções, cada ramo dos nossos conhecimentos, passa sucessivamente por três estados teóricos diferentes: o estado teológico ou fictício, o estado metafísico ou abstracto, o estado científico ou positivo. Noutros termos, o espírito humano, dada a sua natureza, emprega sucessivamente, em cada uma das suas pesquisas, três métodos de filosofar, de características essencialmente diferentes e mesmo radicalmente opostos: primeiro o método teológico, depois o método metafísico e, por fim, o método positivo. Donde decorre a existência de três tipos de filosofia ou de sistemas gerais de concepções sobre o conjunto dos fenómenos que mutuamente se excluem: a primeira é o ponto de partida necessário da inteligência humana; a terceira o seu estado fixo e definitivo; a segunda destina-se unicamente a servir de transição.

Comte, Curso de Filosofia Positiva

Comte prossegue, caracterizando cada um dos estados, de modo a concluir que os primeiros dois estados foram necessários apenas como degraus para chegar ao seu estado perfeito, o estado positivo:

No estado teológico, o espírito humano, dirigindo essencialmente as suas pesquisas para a natureza íntima dos seres, as causas primeiras e finais de todos os fenómenos que o atingem, numa palavra, para os conhecimentos absolutos, concebe os fenómenos como produzidos pela acção directa e contínua de agentes sobrenaturais mais ou menos numerosos, cuja arbitrária intervenção explicaria todas as aparentes anomalias do universo.

No estado metafísico, que no fundo não é mais que uma modificação geral do primeiro, os agentes sobrenaturais são substituídos por forças abstractas, verdadeiras entidades (abstracções personificadas) inerentes aos diversos seres do mundo, e concebidas como capazes de engendrar por si mesmas todos os fenómenos observados, cuja explicação consiste então em referir para cada um a entidade correspondente.

Por último, no estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do universo e a conhecer as causas íntimas dos fenómenos, para se dedicar apenas à descoberta, pelo uso bem combinado do raciocínio e da observação, das suas leis efectivas, isto é, das suas relações invariáveis de sucessão e similitude. A explicação dos factos, reduzida então aos seus termos reais, não é mais, a partir daqui, do que a ligação que se estabelece entre os diversos fenómenos particulares e alguns factos gerais cujo número tende, com os progressos da ciência, a diminuir cada vez mais. (...)

Assim se vê, por este conjunto de considerações, que, se a filosofia positiva é o verdadeiro estado definitivo da inteligência humana, aquele para o qual ela sempre, e cada vez mais, tendeu, nem por isso ela deixou de utilizar necessariamente, no começo e durante muitos séculos, a filosofia teológica, quer como método, quer como doutrina provisórios; filosofia cujo carácter é ela ser espontânea e, por isso mesmo, a única que era possível no princípio, assim como a única que podia satisfazer os interesses do nosso espírito nos seus primeiros tempos. É agora muito fácil ver que, para passar desta filosofia provisória à filosofia definitiva, o espírito humano teve, naturalmente, que adoptar, como filosofia transitória, os métodos e as doutrinas metafísicas. Esta última consideração é indispensável para completar a visão geral da grande lei que indiquei.

Com efeito, concebe-se facilmente que o nosso entendimento, obrigado a percorrer degraus quase insensíveis, não podia passar bruscamente, e sem intermediários, da filosofia teológica para a filosofia positiva. A teologia e a física são profundamente incompatíveis, as suas concepções têm características tão radicalmente opostas que, antes de renunciar a umas para utilizar exclusivamente as outras, a inteligência humana teve de se servir de concepções intermédias, de características mistas, e por isso mesmo próprias para realizar, gradualmente, a transição. É este o destino natural das concepções metafísicas que não têm outra utilidade real.»

Comte, Curso de Filosofia Positiva

O pensamento de Comte, mais do que uma filosofia original, era uma filosofia que captou um certo espírito do século XIX e lhe deu uma espécie de justificação. Este tipo de espírito positivista viria a conhecer uma reacção extrema, anti-positivista: o romantismo e o irracionalismo, que acabariam por dar o perfil definitivo à filosofia do continente europeu do século XX. Ao passo que o positivismo exaltava a ciência, o romantismo e o irracionalismo deploravam a ciência. Ambas as ideias parecem falsas e exageradas. As ideias de Comte são vagas e os argumentos que ele usa para as sustentar são pouco mais do que sugestões. A própria ideia de ciência que Comte apresenta está errada; não é verdade que a ciência tenha renunciado a explicar as causas mais profundas dos fenómenos, nem é verdade que na história do pensamento tenhamos assistido a uma passagem de uma fase mais abstracta para uma fase mais concreta ou positiva. Pelo contrário, a ciência apresenta um grau de abstracção cada vez maior, e a própria filosofia, com as suas teorias e argumentos extremamente abstractos, conheceu no século XX um desenvolvimento como nunca antes tinha acontecido.

O positivismo defende que só a ciência pode satisfazer a nossa necessidade de conhecimento, visto que só ela parte dos factos e aos factos se submete para confirmar as suas verdades, tornando possível a obtenção de «noções absolutas».

Do que dissemos decorre que o traço fundamental da filosofia positiva é considerar todos os fenómenos como sujeitos a leis naturais invariáveis, sendo o fim de todos os nossos esforços a sua descoberta precisa e a sua redução ao menor número possível, e considerando como absolutamente inacessível e vazio de sentido a procura daquilo a que se chama as causas, sejam primeiras ou finais. É inútil insistir muito num princípio que se tornou tão familiar a todos os que estudaram, com alguma profundidade, as ciências de observação. Com efeito, todos nós sabemos que, nas nossas explicações positivas, mesmo nas mais perfeitas, não temos a pretensão de expor as causas geradoras dos fenómenos, dado que nesse caso não faríamos senão adiar a dificuldade, mas apenas de analisar com exactidão as circunstâncias da sua produção e de as ligar umas às outras por normais relações de sucessão e similitude. (...)

Comte, Curso de Filosofia Positiva

O pressuposto fundamental é, pois, o de que há uma regularidade no funcionamento da natureza, cabendo ao homem descobrir com exactidão as «leis naturais invariáveis» a que todos os fenómenos estão submetidos. Essas leis devem traduzir com todo o rigor as condições em que determinados factos são produzidos. Para isso tem de se partir da observação dos próprios factos e das relações que entre eles se estabelecem de modo a chegar a resultados universais e objectivos. Qualquer facto observado é o resultado necessário de causas bem precisas que é importante investigar. Até porque as mesmas causas produzem sempre os mesmos efeitos, não havendo na natureza lugar para a fantasia e o improviso, tal como, de resto, acontece com uma máquina que se comporta sempre como previsto. A isto se chama determinismo. O determinismo é, então, uma consequência do mecanicismo moderno e teve inúmeros defensores, entre os quais se tornou famoso Laplace (1749-1827). Escreve ele:

Devemos considerar o estado presente do universo como um efeito do seu estado anterior e como causa daquele que se há-de seguir. Uma inteligência que pudesse compreender todas as forças que animam a natureza e a situação respectiva dos seres que a compõem ¾ uma inteligência suficientemente vasta para submeter todos esses dados a uma análise ¾ englobaria na mesma fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e os do mais pequeno átomo; para ela, nada seria incerto e o futuro, tal como o passado, seriam presente aos seus olhos.

LAPLACE, Ensaio Filosófico sobre as Probabilidades

Com efeito, a natureza ainda apresenta muitos mistérios, mas apenas porque não temos a capacidade de conhecer integralmente as circunstâncias que a cada momento se conjugam para o desencadear de todos os fenómenos observados. É, contudo, possível prever muitos deles.

Esta é uma perspectiva que, no fundo, acaba por desenvolver e sistematizar em termos teóricos a concepção mecanicista própria da ciência moderna. Concepção essa que, por sua vez, assenta numa determinada filosofia acerca da natureza do conhecimento: o realismo crítico. Realismo porque defende a existência de uma realidade objectiva exterior ao sujeito, e crítico porque nem tudo o que é percepcionado nos fenómenos naturais tem valor objectivo. É por isso que o cientista precisa de um método de investigação que lhe permita eliminar todos os aspectos subjectivos acerca dos fenómenos estudados e encontrar, por entre as aparências, as propriedades verdadeiramente objectivas. Tal método continua a ser o método experimental.

Os grandes princípios nos quais se apoiava a ciência pareciam, então, definitivamente assentes. As discussões sobre o estatuto ou os fundamentos do conhecimento científico consideravam-se arrumadas e a linguagem utilizada, a matemática, estava também ela assente em princípios sólidos. Restava prosseguir com cada vez mais descobertas, de modo a acrescentar ao que já se sabia novos conhecimentos.

Que a ciência desse respostas definitivas às nossas perguntas, de modo a ampliar cada vez mais o conhecimento humano, e que tal conhecimento pudesse ser aplicado na satisfação de necessidades concretas do homem, era o que cada vez mais pessoas esperavam. Assim, a ciência foi conquistando cada vez mais adeptos, tornando-se objecto de uma confiança ilimitada. Isto é, surge um verdadeiro culto da ciência, o cientismo. O cientismo é, pois, a ciência transformada em ideologia. Ele assenta, afinal, numa atitude dogmática perante a ciência, esperando que esta consiga responder a todas as perguntas e resolver todos os nossos problemas. Em grande medida, o cientismo resulta de uma compreensão errada da própria ciência. A ciência não é a caricatura que Comte apresentou e que o cientismo de alguma forma adoptou.

O sucessor moderno do mecanicismo, como vimos, é o fisicalismo. A ideia geral é a de que podemos reduzir todos os fenómenos a fenómenos físicos. Hoje em dia, uma parte substancial da investigação em filosofia e em algumas ciências, procura reduzir fenómenos que à primeira vista não parecem susceptíveis de serem reduzidos: é o caso, por exemplo, dos fenómenos mentais (de que se ocupa a filosofia da mente e as ciências cognitivas) e dos fenómenos semânticos (de que se ocupa a filosofia da linguagem e a linguística). Esta ideia não é nova; já Comte tinha apresentado uma classificação das ciências em que, de maneiras diferentes, todas as ciências acabavam por se reduzir à física. Até à mais recente das ciências, a sociologia, Comte dava o nome de física social. Havia, assim, a física celeste, a física terrestre, a física orgânica e a física social nas quais se incluíam as cinco grandes categorias de fenómenos, os fenómenos astronómicos, físicos, químicos, fisiológicos e sociais.

Assim, é preciso começar por considerar que os diferentes ramos dos nossos conhecimentos não puderam percorrer com igual velocidade as três grandes fases do seu desenvolvimento atrás referidas nem, portanto, chegar simultaneamente ao estado positivo. (...)

É impossível determinar com rigor a origem desta revolução (...). Contudo, dado que é conveniente fixar uma época para impedir a divagação de ideias, indicarei a do grande movimento imprimido há dois séculos ao espírito humano pela acção combinada dos preceitos de Bacon, das concepções de Descartes e das descobertas de Galileu, como o momento em que o espírito da filosofia positiva começou a pronunciar-se no mundo, em clara oposição aos espíritos teológico e metafísico. (...)

Eis então a grande mas evidentemente única lacuna que é preciso colmatar para se concluir a constituição da filosofia positiva. Agora que o espírito humano fundou a física celeste, a física terrestre quer mecânica quer química , a física orgânica quer vegetal quer animal , falta-lhe terminar o sistema das ciências de observação fundando a física social. (...)

Uma vez preenchida esta condição, encontrar-se-á finalmente fundado, no seu conjunto, o sistema filosófico dos modernos, pois todos os fenómenos observáveis integrarão uma das cinco grandes categorias desde então estabelecidas: fenómenos astronómicos, físicos, químicos, fisiológicos e sociais. Tornando-se homogéneas todas as nossas concepções fundamentais, a filosofia constituir-se-á definitivamente no estado positivo; não podendo nunca mudar de carácter, resta-lhe desenvolver-se indefinidamente através das aquisições sempre crescentes que inevitavelmente resultarão de novas observações ou de meditações mais profundas. (...)

Com efeito, completando enfim, com a fundação da física social, o sistema das ciências naturais, torna-se possível, e mesmo necessário, resumir os diversos conhecimentos adquiridos, então chegados a um estado fixo e homogéneo, para os coordenar, apresentando-os como outros tantos ramos de um único tronco, em vez de continuar a concebê-los apenas como outros tantos corpos isolados.»

Comte, Curso de Filosofia Positiva

Mas não é com classificações vagas que se conseguem realmente reduzir as ciências à física esta é a forma errada de colocar o problema. Trata-se, antes, de mostrar que os fenómenos estudados pela química ou pela sociologia ou pela psicologia são, no fundo, fenómenos físicos. Mas isto é um projecto que, apesar de alimentar hoje em dia grande parte da investigação científica e filosófica, está longe de ter alcançado bons resultados. E alguns filósofos contemporâneos duvidam que tal reducionismo seja possível.

A distinção entre ciências da natureza e ciências sociais ou humanas tornou-se, progressivamente, mais importante. Apesar dos devaneios de Comte, não era fácil ver como se poderiam reduzir os fenómenos sociais, por exemplo, a fenómenos físicos. A reacção contrária a Comte resultou em doutrinas que traçam uma distinção entre os dois tipos de ciências, alegando que os fenómenos sociais não podem ser reduzidos a fenómenos físicos. Dilthey (1833-1911) dividia as ciências em ciências do homem, ou do espírito, entre as quais se encontravam a história, a psicologia, etc., e as ciências da natureza, como a física, a química, a biologia, etc. Aquelas tinham como finalidade compreender os fenómenos que lhes diziam respeito, enquanto que estas procuravam explicar os seus. Esta forma de encarar a diferença entre as ciências humanas e as ciências da natureza é de algum modo simplista. Mas os grandes filósofos das ciências sociais actuais, como Alan Ryan e outros, procuram ainda encontrar modelos de explicação satisfatórios para as ciências humanas. Apesar de admitirem que o tipo de explicação das ciências da natureza é diferente do tipo de explicação das ciências humanas, o verdadeiro problema é saber que tipo de explicação é a explicação fornecido pelas ciências humanas.

As ciências da natureza e as ciências formais do século XIX e XX conheceram desenvolvimentos sem precedentes. Mas porque o espírito científico é um espírito crítico e não dogmático, apesar do enorme desenvolvimento alcançado pela ciência no século XIX, os cientistas continuavam a procurar responder a mais e mais perguntas, perguntas cada vez mais gerais, fundamentais e exactas. E a resposta a essas perguntas conduziu a desenvolvimentos científicos que mostraram os limites de algumas leis e princípios antes tomados como verdadeiros. A geometria, durante séculos considerada uma ciência acabada e perfeita, foi revista. Apesar de a geometria euclidiana ser a geometria correcta para descrever o espaço não curvo, levantou-se a questão de saber se não poderíamos construir outras geometrias, que dessem conta das relações geométricas em espaços não curvos: nasciam as geometrias não euclidianas. A existência de geometrias não euclidianas conduz à questão de saber se o nosso universo será euclidiano ou não. E a teoria da relatividade mostra que o espaço é afinal curvo e não plano, como antes se pensava.

O desenvolvimento alucinante das ciências dos séculos XIX e XX, juntamente com o cientismo provinciano defendido por Comte, conduziu ao clima anti-científico que caracteriza algumas correntes da filosofia do final do século XX. Mas isso fica para depois.

Aires Almeida

Nota
Agradeço a Desidério Murcho a revisão do texto, assim como as variadíssimas imprecisões que me ajudou a eliminar. Sem ele, este texto seria muito diferente.


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