Reis19/Historial/Curriculum/Fotos

Home

Curriculum e Trabalhos realizados | Dados Acerca de Mim | Páginas Faavoritas | Contact Me
Páginas Faavoritas

Crítica Central de filosofia e cultura
  Filosofia Leitura Música


Crítica | Filosofia | Leitura | Música

http://www.reis19.tripod.com/jnr; http://www.nogueirareis.tripod.com/alijo; http://www.jose727.tripod.com;

Here's a link to the site of the company I work for:

www.trellix.com

intelectu
Intelectu no 1 - Fevereiro de 1999
artigos


Utilitarismo Moral & Utilitarismo Político
Sara Bizarro

O utilitarismo é normalmente avaliado enquanto teoria moral ou ética. Enquanto teoria moral, o utilitarismo depara-se com uma série de paradoxos que dificilmente podem ser ignorados. No entanto, estes paradoxos só se aplicam a uma versão clássica do utilitarismo. Se considerarmos uma versão moderna de utilitarismo do tipo da de Stuart Mill o utilitarismo torna-se uma doutrina coerente e defensável, senão na sua vertente moral, pelo menos enquanto concepção política.

Neste ensaio vou começar por apresentar a distinção entre utilitarismo clássico (Bentham & Sidgwick) e utilitarismo moderno (John Stuart Mill). Depois apontarei algumas das dificuldades com que o utilitarismo se depara. Em seguida tentarei mostrar como um utilitarismo moderno do estilo do proposto por Stuart Mill pode ser interpretado enquanto uma doutrina política evitando os paradoxos tradicionais. A tese de que o utilitarismo político é uma proposta coerente permite, entre outras coisas, manter a ideia de que uma das funções da política é promover o bem-estar humano.

 

I

O utilitarismo clássico é comummente apresentado como baseado num princípio deste tipo: "A melhor acção é a que produz a maior felicidade do maior número". Este princípio foi originalmente formulado por Francis Hutcheson (1) e mais tarde adoptado por Jeremy Bentham e Henry Sidgwick. Este princípio é inconsistente. O exemplo do anfiteatro romano, um entre muitos, mostra claramente esta inconsistência: Imaginem-se dez mil espectadores que se juntaram para ver como um ser humano se depara, contra a sua vontade, com um grupo de leões esfomeados. Como resultado deste espectáculo o actor sofrerá ferimentos graves, cujo valor negativo será 9.999 unidades de dor. Por outro lado, cada um dos espectadores adquire uma unidade de prazer sádico, tornando-se assim o valor positivo do espectáculo 10.000 unidades de prazer. Isto assumindo que, primeiro, o nível de prazer dos leões se mantém constante; segundo, que o valor de uma tarde sem este espectáculo seria zero; e, terceiro, que as consequências a longo praso não alteram o equilíbrio. Nesta situação o utilitarista clássico seria forçado a defender a apresentação do espectáculo (2). A inconsistência ilustrada pelo exemplo do anfiteatro romano mostra como o conceito de "cálculo da felicidade" é inútil e sem sentido.

Os princípios liberais propostos por John Stuart Mill são um primeiro passo em direcção a uma concepção de Utilitarismo que não gere incoerências do tipo acima descrito. Em On Liberty Mill impede a derivação de situações do tipo "anfiteatro romano" propondo um princípio segundo o qual o poder só pode ser exercido sobre um indivíduo, contra a sua vontade, quando este exercício tem como finalidade prevenir que sejam infligidos abusos sobre os outros membros da comunidade (3). Neste ponto seria possível dizer que o "Utilitarismo" de John Stuart Mill é de facto um Liberalismo. Esta interpretação da posição de Mill é proposta por Isaiah Berlin (4).

II

O utilitarismo depara-se com uma série de objecções. Uma das distinções tradicionais é a traçada entre "utilitarismo das acções" e "utilitarismo das regras". O utilitarismo das acções defende que cada acção deve ser ponderada de forma que maximize a felicidade do maior número. O utilitarismo das acções está aparentemente destinado ao fracasso visto que um cálculo deste tipo para cada acção moral de cada indivíduo excede em muito as capacidades humanas (para além de aconselhar acções que nós consideramos intuitivamente como moralmente erradas e da concepção de felicidade ser bastante vaga).

O utilitarismo das regras tenta escapar à objecção sobre a eficácia propondo que não se trata de ponderar cada acção particular, mas antes de ponderar a construção das regras numa sociedade como aquelas que proporcionam a felicidade do maior número. No entanto o utilitarismo das regras também parece ser inconsistente. J.J.C. Smart apresenta um argumento bastante convincente contra o Utilitarismo das regras. O argumento é, resumidamente, o seguinte: no Utilitarismo das regras, as regras são escolhidas porque vão, em geral, maximizar a felicidade dos indivíduos. No entanto, podem existir casos particulares em que determinadas acções não maximizarão a felicidade se seguirem a regra geral. Aqui, o utilitarista encontra um impasse insuperável pois, manter a regra (cuja única finalidade são as suas consequências benéficas) é uma mera "veneração irracional das regras"; por outro lado, não manter a regra reduz o Utilitarismo das regras ao Utilitarismo dos actos (5). Se aceitarmos o argumento de Smart somos levados a admitir que, ou Utilitarismo se reduz ao Utilitarismo dos actos, ou não consegue evitar a "veneração das regras" e deixa de ser Utilitarismo.

Assim sendo, o utilitarismo depara-se-nos como uma concepção totalmente incoerente e podemos pensar que o melhor será abandonar de uma vez por todas qualquer proposta utilitarista, quer no campo da moral, quer no campo da política. No entanto, não parece ser desejável descartar a ideia de que uma das funções da política é promover o bem-estar humano e o utilitarismo é o tipo de posição política que suporta este tipo de ideia.

III

As discussões acerca do utilitarismo parecem dirigir-se essencialmente ao utilitarismo clássico e ignorar o utilitarismo moderno de Stuart Mill. Um utilitarista liberal pode propor uma solução às objecções apresentadas acima. Um utilitarista liberal pode considerar a parte liberal da sua doutrina como base para a construção de regras e a parte utilitária como base para a decisão acerca de acções públicas onde as regras liberais, ou não se aplicam, ou estão em conflito. As regras liberais rezumir-se-iam ao respeito por determinados direitos básicos e a "inviolabilidade" dos indivíduos.

Seguindo esta via ficamos com o utilitarismo dos actos considerado exclusivamente na sua vertente pública e começando onde acabam as regras liberais (os direitos invioláveis dos indivíduos). Esta versão do utilitarismo liberal, ou se preferirmos, do "liberalismo utilitário" (dependendo se aceitamos que os direitos podem ou não ser justificados de uma forma utilitária), permite ultrapassar a situação complicada com que nos deparávamos na secção anterior. A introdução de uma vertente liberal e de direitos básicos dos indivíduos bloqueia a maior parte das objecções tradicionais ao utilitarismo das acções e tratando-se de um utilitarismo dos actos a objecção de Smart não é relevante.

Mas, existe pelo menos uma objecção ao utilitarismo das acções que deve ser analisada agora. Segundo D.H. Hodgson o Utilitarismo dos actos é logicamente auto-refutante (6) porque existem características essenciais da vida social, como a comunicação, que dependem de expectativas que não podem ser criadas pelo utilitarismo das acções. De uma forma simplificada, a ideia de Hodgson é a de que as relações sociais dependem do respeito pelas promessas e a eficácia da comunicação depende do pressuposto de que, em geral, as pessoas dizem a verdade. O utilitarismo dos actos não garante, e principalmente, não incentiva, estas características, na medida em que as promessas só devem ser cumpridas se sua "utilidade" se manter, e a verdade também pode sofrer restrições baseadas em considerações do tipo utilitário. Esta objecção é, aparentemente, fatal pelo menos para o utilitarismo moral (7). No entanto, o seu peso como argumento contra o utilitarismo nas acções políticas pode ser questionado. De facto, na vida pública, não só promessas são quebradas e verdades omitidas com bastante frequência, como também existem justificações comummente aceites para este procedimento, se ele tiver como finalidade o benefício da comunidade. Assim, o facto do utilitarismo não incentivar o cumprimento indiscriminado de promessas e a expressão da verdade, embora fatal ao nível social, é pelo menos aceitável ao nível político público.

A defesa de um utilitarismo liberal do tipo do proposto por Stuart-Mill permite apoiar a ideia do Utilitarismo como "filosofia pública". Aliás, esta ideia já pode ser vagamente encontrada em John Stuart Mill e versões deste tipo de Utilitarismo foram recentemente propostas por Goodin (8) e Häyry (9). A possibilidade do Utilitarismo ser assumido como uma filosofia pública é evidente na ideia central de que uma acção deve ser julgada pelas suas consequências e não pelos seus motivos. Esta característica torna o utilitarismo ideal como filosofia pública na medida em que permite que as acções públicas só possam ser julgadas pelas consequências benéficas que elas possam ter para a comunidade e incentiva uma política da justificação e da responsabilização pública.

Outro factor a favor do utilitarismo liberal é precisamente a sua concepção de "felicidade", "prazer", etc. A indeterminação deste tipo de conceitos é tradicionalmente considerada como um argumento contra o utilitarismo (ver Utilitarismo). No entanto, nas sociedades modernas pluralistas é uma vantangem ter como guia na avaliação das acções políticas um conceito deste tipo. Com a noção vaga de felicidade criamos espaço de negociação entre interesses diferentes e conflituantes, respeitando as tendências pluralistas das sociedades contemporâneas.

O utilitarismo liberal é também adequado às três ideias fundamentais das sociedades modernas. São elas a ideia de democracia, progresso e direito à escolha (note-se que são ideias profundamente radicadas na cultura americana). A democracia pode ser vista como uma espécie de Utilitarismo aplicado, na medida em que, sendo o governo da maioria, defenderá os interesses do maior número (10). Por outro lado, o utilitarismo liberal permite a justificação de algumas desigualdades em nome do progresso e do aumento futuro dos benefícios para a sociedade (sempre garantido os direitos e liberdades básicos). Por último, o utilitarismo permite uma justificação do direito à escolha na medida em que o papel da escolha na procura da felicidade é crucial. Aliás, a noção vaga de felicidade não impede que aceitemos que a variedade das escolhas aumenta a possibilidade da felicidade, principalmente numa sociedade pluralista.

Em suma, nas discussões acerca do utilitarismo muitas vezes ataca-se exclusivamente a sua versão clássica ignorando o utilitarismo liberal de John Stuart Mill. O utilitarismo liberal das acções escapa aos paradoxos propostos pelos críticos do utilitarismo. O utilitarismo das regras reduz-se de facto ao utilitarismo das acções, mas o utilitarismo liberal é um utilitarismo das acções. O utilitarismo das acções ao nível moral é ineficaz e tem resultados contra-intuitivos. O utilitarismo liberal é um utilitarismo político que pode (deve) ser eficaz e cujos resultados contra-intuitivos são bloqueados pela sua vertente liberal. O utilitarismo liberal beneficia ao usar uma concepção vaga de felicidade pois permite o pluralismo de fins na sociedade e deixa espaço para a negociação de conflitos mantendo assim a estabilidade social. Por fim, as ideias de democracia, progresso e de direito à escolha são três ideias enraizadas na cultura pública que podem ser explicadas em termos utilitaristas. Assim sendo, o utilitarismo liberal está longe de ser uma proposta inconsistente e a ideia de que uma das funções da política é promover o bem-estar humano encontra nele uma justificação teórica adequada.

 

Bibliografia:
  • ALLISON, Linclon (ed), The Utilitarian Response, The Comtemporary Viability of Utilitarian Political Philosophy, Sage Publications, London, 1990
  • BENTHAM, Jeremy, Pinciples of Morals and Legislation, Prometeus Books, 1988
  • BERLIN, Isaiah, "John Stuart Mill and the ends of Life" in Four essays on Liberty, Oxford University Press, 1969.
  • G.E. MORE, "Criticism of Mill's "Proof"", in Principia Etica, chap.3, Cambridge, 1903, citado de GLOVER, Jonathan (ed.), Utilitarianism and his Critics, Macmillan Publishing Company, New York, 1990.
  • GLOVER, Jonathan (ed.), Utilitarianism and his Critics, Macmillan Publishing Company, New York, 1990.
  • GOODIN, Robert E., Utilitarianism as a Public Philosophy, Cambridge University Press, 1995
  • HÄYRY, Matti, Liberal Utilitarianism and Applied Ethics, Routledge, London and New York, 1994
  • HODGSON, D.H., "Is Act-Utilitarianism Self-Defeating?", in Consequences of Utilitarianism, Chapter 2, Oxford, 1967
  • J.J.C. SMART, "An Outline of a System of Utilitarian Ethics", in J.J.C. Smart and Bernard Williams, Utilitarianism For and Against, Cambridge, 1973. Citado de GLOVER, Jonathan (ed.), Utilitarianism and his Critics, Macmillan Publishing Company, New York, 1990.
  • MILL, John Stuart, Utilitarianism, on Liberty, Essay on Bentham, ed. by Mary Warnok, A meridian book, 1974
  • RAWLS, John, "Social Unity and Primary Goods", in Utilitarianism and Beyond, eds. Amartiya Sen and Bernard Williams, Cambridge University Press, 1982
  • RAWLS, John, Liberalismo Polítco, Editorial Presença, 1993
  • SINGER, Peter, "Is Act-Utilitarianism Self-Defeating?" in Consequences of Utilitarianism, Chapter 2, Oxford, 1967, pp. 211-219
  • TOCQUEVILLE, Alexis de, Democracy in America, (1835) ed. P. Bradley, vol.I, Vintage Books, New York, 1945

Notas
(1) Francis Hutchenson, Inquiry into the Original of our Ideas of Beauty and Virtue (John Derby, for Wlliam and John Smith et., 1725), Treatise II, cidado de ALLISON, Linclon (ed), The Utilitarian Response, The Comtemporary Viability of Utilitarian Political Philosophy, p.1
(2) HÄYRY, Matti, Liberal Utilitarianism and Applied Ethics, p.88
(3) "The only purpose for which power can be rightfully exercised over any member of a civilized community, against his will, is to prevent harm to others. His own good, either physical or moral, is not a sufficient warent" in On Liberty, Introdução (MILL, John Stuart, Utilitarianism, on Liberty, Essay on Bentham, ed. by Mary Warnok,p.135)
(4) BERLIN, Isaiah, "John Stuart Mill and the ends of Life" in Four essays on Liberty, Oxford University Press, 1969.
(5)"Briefly they [the arguments] boil down to the accusation of rule worship: the rule utilitarian presumably advocates his principle because he is ultimatly concerned with human happiness: why then should he advocate abiding by a rule when he knows that it will not in the present case be most beneficial to abide it? The reply that in most cases it is most beneficial to abide by the rule seems irrelevant. And si is the reply that it would be better that everybody should abide by the rule that nobody should. This is to suppose that the only alternative to "everybody does A" is "no one does A". But clearly we have the possibility "some people do A and some don't". Hence to refuse to break a generally beneficial rule in these cases in wi=hich it is not most beneficial to obey it seems irrational and to be a case of rule worship." J.J.C. SMART, "An Outline of a System of Utilitarian Ethics", in J.J.C. Smart and Bernard Williams, Utilitarianism For and Against, Cambridge, 1973. Citado de GLOVER, Jonathan (ed.), Utilitarianism and his Critics, Macmillan Publishing Company, New York, 1990., pag. 200
(6) D.H. HODGSON, "Is Act-Utilitarianism Self-Defeating?", in Consequences of Utilitarianism, Chapter 2, Oxford, 1967
(7) Peter Singer tenta responder a este argumento em, "Is Act-Utilitarianism Self-Defeating?" in Consequences of Utilitarianism, Chapter 2, Oxford, 1967, pp. 211-219
(8)GOODIN, Robert E., Utilitarianism as a Public Philosophy, Cambridge University Press, 1995
(9) HÄYRY, Matti, Liberal Utilitarianism and Applied Ethics, Routledge, London and New York, 1994
(10) Alexis de Tocqueville, no seu Democracy in America, diz: "Democratic laws generally tend to promote the welfare of the greatest possible number for they imanate from the majority of the citizens, who ar subject to error, but who cannot have an interest opposed to their own advantage...The advantage of democracy does not consist...in favoring the prosperity of all, but simply contributing to the well-being of the greatest number", Democracy in America, (1835) ed. P. Bradley, vol.I, Vintage Books, New York, 1945, pp.247-9.

Sara Bizarro
sarabizarro@yahoo.com

http://www.hipyreis.tripod.com