Definição de "definição" Desidério Murcho
O objectivo deste texto é ajudar estudantes e professores a compreender melhor os diferentes tipos de definições e o que as distinguem. As definições são importantes. São importantes em filosofia e nas ciências e são importantes no nosso dia-a-dia e na vida pública.
São importantes na vida pública porque temos necessidade de usar com rigor várias noções que a regem. Uma forma de obter algum rigor é definir rigorosamente algumas noções centrais. Por exemplo, para os advogados, juízes e polícias, um roubo não é bem o que nós entendemos por roubo. Em termos populares, um roubo acontece sempre que alguém subtrai ilegalmente os bens alheios. Mas um polícia distingue um roubo de um furto e em ambos os casos alguém subtraiu ilegalmente bens alheios. Mas para um polícia e para o nosso sistema judicial é importante saber se esse acto envolveu violência, ou não. Se não, então é apenas um furto. Se sim, é um roubo. Também na escola é muito importante definir claramente várias noções, mesmo que isso por vezes introduza arbitrariedades. Por exemplo, um estudante com 10 tem aproveitamento. Com 9, não. Isto é artificioso, mas qualquer outra alternativa seria também artificiosa. Tivemos de definir o que era "ter aproveitamento" e tínhamos de fazê-lo de forma rigorosa. Pagamos um certo preço por esse rigor, mas se deixássemos a noção por definir, se permitíssemos que a noção fosse vaga, o preço a pagar seria ainda maior.
Na ciência, as definições são também importantes. Todos nós aprendemos nos bancos do ensino secundário que em física os termos "massa", "velocidade" e muitos outros se definem de uma forma muito precisa e rigorosa. Sem estas definições a física não seria possível, porque nunca poderíamos isolar com suficiente precisão os fenómenos que queremos estudar. Enquanto continuarmos a olhar para um objecto que cai e não conseguirmos distinguir a massa da velocidade e estas do ímpeto, não poderemos fazer física.
Também na filosofia as definições são importantes. São importantes por duas razões: para que o nosso discurso seja mais claro e como meio para uma compreensão mais substancial dos nossos conceitos mais importantes. Mas as definições em filosofia tornam-se muitas vezes objecto de disputa filosófica, porque são surpreendentemente difíceis de obter. Isto não acontece porque os filósofos sejam particularmente menos inteligentes do que os físicos ou os legisladores. Acontece porque os conceitos que queremos definir em filosofia são por vezes tão centrais na nossa economia conceptual, que por isso mesmo são muito difíceis de traduzir. A física consegue definir "massa", mas como definir os conceitos com que se define a massa? Como definir "energia" e "corpo"? E como definir os conceitos que usamos para definir esses conceitos? Os legisladores conseguem definir "roubo" e "furto", mas como definir a noção mais básica de "justiça" ou "bem moral"? Na escola definimos perfeitamente bem o que é ter aproveitamento, mas como podemos definir o conhecimento? As definições que interessam na filosofia são difíceis porque são definições de conceitos tão básicos e centrais que é difícil encontrar outros conceitos mais básicos e mais simples que possamos usar para os definir.
Mas do facto de algo ser difícil de fazer não se pode concluir que não vale a pena fazer. Afinal, as definições da física também são difíceis e durante muitos séculos a física esteve num grande impasse. Só nos últimos séculos a física e as outras ciências conheceram desenvolvimentos extraordinários. Ao longo da história da filosofia, a tentativa para definir alguns dos conceitos centrais do nosso pensamento tem sido uma constante. As primeiras obras filosóficas articuladas que nos chegaram são os diálogos de Platão, que consistem em grande parte, precisamente, em tentativas de definir conceitos centrais do nosso pensamento, conceitos importantes para a filosofia. Entre os conceitos que Platão tentou definir, encontram-se os seguintes: bem, justiça e conhecimento. Estes conceitos são centrais no nosso pensamento acerca de muitas matérias, e é por isso que são importantes para a filosofia; mas é por serem igualmente conceitos muito básicos que são tão esquivos.
O mais brilhante aluno de Platão, Aristóteles, percebeu que as definições eram extremamente importantes para a filosofia. E procurou compreender melhor o que eram as definições; procurou, de alguma maneira, definir as definições. Felizmente, temos hoje uma compreensão muito mais clara do que são as definições do que tinha Aristóteles.
O primeiro aspecto a ter em conta é o seguinte. Em termos populares, definir uma coisa é dizer qual é a sua essência. Assim, por exemplo, podemos dizer que queremos definir o Homem, ou, numa linguagem não sexista, queremos definir o ser humano.
Em primeiro lugar, importa esclarecer que certos usos da linguagem, que no dia-a-dia não geram problemas, podem gerar problemas em filosofia. Ao dizer que queremos definir o ser humano, parece que estamos a dizer que queremos definir uma certa coisa, como definir um certo ser humano qual? Obviamente, não é disto que se trata. O que nós queremos é definir os seres humanos no seu todo, e usamos uma figura de estilo elementar que consiste em tomar a parte pelo todo, substantivando a nossa expressão e falando de "o ser humano". Claro que não queremos definir um certo ser humano; queremos defini-los a todos, queremos definir a categoria "Ser Humano". A este nível, esta liberdade linguística não ameaça grandes confusões. Mas se começarmos a falar do Ser, pensando que estamos a falar de uma coisa, e não de uma categoria de coisas a categoria mais geral, que abrange tudo o que há a confusão espreita-nos e será quase inevitável. O passo para começarmos a pensar que o Ser é uma espécie de Deus, ou outro tipo de entidade particular, não é muito grande. E isso será uma grande confusão, confusão a que uma das pessoas que mais a combateu, Heidegger, dá também origem dada a maneira como se exprime.
Em segundo lugar, pensar que definir algo é dizer a sua essência é o resultado de uma concepção natural e intuitiva, mas redutora, do que é uma definição. Definir algo através da sua essência é apenas uma forma particular de definição. Ter uma compreensão clara dos diferentes tipos de definição é o que nos vai ocupar nestas páginas.
Propriedades e objectos
Comecemos, precisamente, pelo tipo de definição que intuitivamente se tem em mente. Definir F é, segundo esta concepção, apresentar a essência de F. Mas o que é a essência de F? É isto que iremos começar por esclarecer.
Dizer que a essência do ser humano é a abertura às diferentes potencialidades, ou dizer que a essência do ser humano é a racionalidade, ou qualquer coisa deste género, é apenas uma forma pouco rigorosa de dizer que uma propriedade essencial individuadora de ser humano é a abertura às diferentes potencialidades ou a racionalidade. E enquanto não tivermos uma ideia clara do que é uma propriedade essencial e individuadora, não teremos uma compreensão clara do que estamos a dizer.
Comecemos pelo princípio. Podemos distinguir pelo menos duas categorias básicas de constituintes do universo (mas pode haver mais). Aquilo a que podemos chamar "particulares" e aquilo a que podemos chamar "propriedades". Esta distinção está inscrita na nossa linguagem. Usamos dispositivos diferentes para falar de particulares e para falar de propriedades. Tomemos a seguinte afirmação simples: "O João é alto". Nesta frase podemos distinguir o sujeito ("João") e o predicado ("é alto"). O que a frase afirma é que o João tem a propriedade de ser alto. Na nossa linguagem, dispositivos como os nomes próprios e os substantivos comuns, referem particulares; e os predicados exprimem propriedades. Os nomes próprios (e outros dispositivos linguísticos que não importa agora referir) são a contraparte linguística dos particulares. São dispositivos linguísticos que referem particulares. Os predicados são a contraparte linguística das propriedades. São dispositivos linguísticos que exprimem propriedades.
Com um certo abuso de linguagem, podemos dizer que a Joana tem belos predicados. Mas o que queremos dizer é que a Joana tem belas propriedades. Predicados são as entidades linguísticas que usamos para falar das propriedades, que não são entidades linguísticas. Mas é claro que se a Joana tem belas propriedades, tem também belos predicados porque ao falarmos nela iremos dizer que é bonita, boa pessoa, sincera, altruísta, etc. estaremos a usar vários predicados para falar das várias propriedades da Joana.
Algumas propriedades não são relacionais, pelo menos superficialmente, como ser verde. Mas muitas outras são relacionais; são propriedades que relacionam mais de um particular. Quando eu digo que o João é alto estou na verdade a dizer que, em relação à altura média das outras pessoas, o João é alto. Ser alto é uma propriedade relacional, apesar de por vezes parecer que o não é. Mas há propriedades relacionais óbvias, como estar entre Lisboa e Porto. Coimbra, por exemplo, tem, precisamente, esta propriedade relacional. Na lógica actual a diferença entre propriedades não relacionais e relacionais torna-se mais fácil de compreender porque usamos predicados monádicos no primeiro caso e predicados não monádicos no segundo. Assim, "Fx" é um predicado monádico como "ser branco". Mas "Fxy" é um predicado binário, como "amar". E "Fxyz" é um predicado triádico, como "estar entre dois sítios".
Há muita filosofia, e de grande interesse, sobre vários problemas associados às propriedades. Não podemos, obviamente, tratar de tal coisa aqui. Para os nossos propósitos basta ter uma visão clara do que é uma propriedade, e que as propriedades tanto podem ser relacionais como não. É tentador dizer que as propriedades não relacionais são intrínsecas e simples, mas isto é muito provavelmente um erro. Uma propriedade como "ser alto" é intrínseca sob vários pontos de vista importantes, e todavia é claramente relacional. E uma propriedade como "ser verde" parece simples, mas podemos analisá-la em várias propriedades mais simples, como ter um certo comprimento de onda (se estamos a pensar na própria luz) ou activar determinados centros do nosso sistema nervoso (se estamos a pensar na sensação visual e não na luz em si). Um convencionalista desejará dizer que as propriedades são simples ou complexas em função do ponto de vista em que nos colocamos (veja-se o caso de Goodman, com o "verdul"). Um realista dirá que há propriedades simples primitivas, a partir das quais se constroem as outras. Mas mesmo um realista terá de aceitar que nem todas as propriedades que na linguagem comum parecem simples são realmente simples. Em qualquer caso, estas discussões subtis não afectam a compreensão geral que precisamos para os propósitos deste ensaio; o que precisamos é de compreender algumas noções centrais que são cruciais para compreender melhor as definições.
Propriedades essenciais e essência
Se pensarmos no conjunto das propriedades de Sócrates, podemos fazer uma lista muito longa. Sócrates era um ser humano, era grego, era filósofo, foi condenado à morte, etc. Intuitivamente, algumas destas propriedades são contingentes, no sentido em que Sócrates tinha essas propriedades, mas poderia não as ter tido. Por exemplo, Sócrates era grego porque nasceu na Grécia. Mas poderia ter sido egípcio, se os seus pais tivessem emigrado para o Egipto. E se acharmos que mesmo assim ele seria grego, por ser filho de gregos, podemos imaginar que os avós de Sócrates poderiam ter emigrado para o Egipto. E assim, Sócrates poderia ter sido egípcio. Isto quer dizer que a propriedade de ser grego não é uma propriedade essencial de Sócrates.
Por outro lado, é pelo menos difícil pensar que, apesar de Sócrates ser efectivamente um ser humano, poderia não o ter sido. Intuitivamente, ser um ser humano é uma propriedade diferente de ser grego. Sócrates era grego, mas poderia não o ter sido. E era também um ser humano, mas não poderia deixar de o ser. Dizemos assim que, em relação a Sócrates, a propriedade de ser grego é acidental ou contingente, ao passo que a propriedade de ser um ser humano não é acidental ou contingente: é necessária ou essencial.
Antes de prosseguirmos, é importante evitar desde já um erro comum. As propriedades não são, em si, essenciais ou contingentes. É o modo como são exemplificadas pelos objectos que muda, e não qualquer característica adicional das propriedades. "Ser par", por exemplo, é uma propriedade essencial do número 2, mas uma propriedade contingente do número de países da península ibérica. É importante compreender isto para que não se pense que quando procuramos as propriedades essenciais de um dado objecto estamos a procurar umas propriedades especiais, que são em si essenciais; não. O que procuramos são propriedades que sejam exemplificadas de uma determinada maneira pelo objecto ou objectos que temos em mente.
Pensemos outra vez no que temos em mente, intuitivamente, quando falamos da "essência" de algo. Se virmos com atenção, verificamos que não aceitamos que a essência de Sócrates, por exemplo, consista em ser um ser humano. O que temos intuitivamente em vista não são apenas as propriedades essenciais de Sócrates. Mesmo que seja verdade que ser um ser humano é uma propriedade essencial de Sócrates, isso não é ainda a sua "essência". Não vou dizer o que temos em mente com o uso intuitivo de "essência", porque não sei o que é e acho que ninguém sabe. O uso intuitivo de "essência" é demasiado vago. Mas uma aproximação é o seguinte: além de Sócrates ter determinadas propriedades essenciais, tem provavelmente outras propriedades que além de essenciais são individuadoras. A diferença é a seguinte: Sócrates é essencialmente um ser humano. Mas isso não distingue Sócrates dos outros seres humanos. O que queremos como "essência" é algo que distinga Sócrates dos outros seres humanos. O que queremos não é apenas uma propriedade ou conjunto de propriedades essenciais. Queremos uma propriedade ou conjunto de propriedades que além de essenciais sejam também individuadoras: que distingam Sócrates de outros objectos. Por outras palavras, queremos uma propriedade ou conjunto de propriedades que só Sócrates tenha. (Curiosamente, Aristóteles achava que só poderíamos definir categorias, como ser humano, mas não particulares, como Sócrates.)
Um exemplo pode ajudar-nos a ver o que pode ser isso de uma propriedade essencial individuadora. Pensemos no número 2. Este número tem uma propriedade essencial: ser par. Mas, claro, ser par não é uma propriedade que distinga este número de outros números, porque há muitos outros números que são pares. Pensemos agora na propriedade de ser um número par e primo. Só o número 2 tem esta propriedade. Claro que é uma propriedade que resulta da conjunção de duas outras propriedades. Mas isso é irrelevante. O ponto crucial é que essa propriedade, complexa ou não, além de essencial é individuadora: é uma propriedade que mais nenhum objecto exemplifica. Este exemplo mostra também outro aspecto importante para as definições. Se repararmos bem, ser par não é uma propriedade individuadora de 2. E ser primo também não. Isto quer dizer que as duas propriedades, separadamente, não são definidoras de 2. Mas conjuntamente são: não há nem poderia haver qualquer outro particular além do 2 que seja par e primo. Assim, esta conjunção de propriedades constitui um conjunto de propriedades essenciais individuadoras de 2.
Será que podemos encontrar alguma propriedade essencial individuadora de Sócrates? O código genético é uma boa pista, mas infelizmente não serve, pois Sócrates poderia ter tido um irmão gémeo, que partilharia com ele exactamente o mesmo código genético. Mas, mesmo que servisse, esta propriedade essencial individuadora não serviria de muito. Penso que quando procuramos intuitivamente a "essência" de Sócrates ou dos seres humanos, não estamos a pensar em Sócrates nem nos seres humanos como seres biológicos, mas como seres espirituais, seres mentais. Assim, qualquer propriedade individuadora que dermos será sempre vista como um "truque lógico" por quem procura as grandes essências e as definições profundas, porque essa pessoa está em pleno dualismo cartesiano, está a pensar que os seres humanos e Sócrates têm uma coisa -- a alma ou o espírito -- que é fundamental para a compreensão da sua essência, e não querem ouvir falar de propriedades individuadoras corriqueiras, propriedades biológicas ou físicas. Mas se é isso que procuramos, é melhor que o tornemos claro desde o início e é melhor estarmos preparados para defender o dualismo alma/corpo, do qual a nossa pergunta pela "essência" depende.
Essências e definições
Estivemos a ver o que são propriedades, e como podemos distinguir 2 tipos de propriedades: as essenciais ou necessárias e as contingentes ou acidentais. Quanto às propriedades essenciais, podemos distinguir as meramente essenciais, das individuadoras. Estas últimas constituem o que por vezes procuramos quando procuramos a "essência" de algo (mas nem sempre, como vimos; e voltaremos a este tema).
Podemos introduzir uma distinção entre propriedades essenciais e necessárias, ou podemos usar estes termos como equivalentes. Se introduzirmos a distinção, será a seguinte: uma propriedade essencial de um objecto é aquela propriedade tal que não há qualquer circunstância possível em que esse objecto exista e não tenha essa propriedade. Mas há circunstâncias em que esse objecto não tem essa propriedade: são circunstâncias em que o próprio objecto não existe, e portanto também não tem essa propriedade. Por exemplo, se achamos que Sócrates era essencialmente um ser humano, é porque não há circunstâncias em que ele exista e não seja um ser humano. Mas há circunstâncias em que Sócrates não é um ser humano: são circunstâncias em que Sócrates não existe. Imagine-se que os pais de Sócrates nunca se tinham conhecido; ou que a mãe dele tinha morrido na infância. Essas são circunstâncias em que Sócrates não seria um ser humano, porque Sócrates não existiria nessas circunstâncias. Assim, podemos dizer que ser um ser humano é uma propriedade essencial de Sócrates (porque ele é um ser humano em todos os mundos em que existe), mas não necessária (porque ele não existe em todos os mundos possíveis).
Uma propriedade necessária de um objecto é aquela propriedade tal que esse objecto tem essa propriedade em todas as circunstâncias possíveis. Claro que só os objectos que existem em todas as circunstâncias possíveis podem ter propriedades necessárias. Aos objectos que existem em todas as circunstâncias possíveis chama-se "existentes necessários". Nem todos os objectos são existentes necessários. Os planetas, as pessoas e as cidades que existem poderiam não ter existido. Mas os números, e Deus (se existe), são tradicionalmente encarados como existentes necessários: existem em todas as circunstâncias possíveis. Assim, a propriedade de ser par é uma propriedade não apenas essencial mas também necessária do número 2. O conhecido argumento ontológico a favor da existência de Deus procura mostrar que Deus é um existente necessário (um objecto que existe em todas as circunstâncias possíveis) e que se tentarmos pensar o contrário, somos conduzidos a uma contradição.
Mas o nosso tema é as definições. Perdemos tanto tempo com propriedades porque sem compreender estas distinções não podemos compreender alguns tipos fundamentais de definições. Não podemos compreender a diferença entre definições essencialistas e definições não essencialistas.
Imaginemos que eu defino assim o conceito de criatura com rins: "Criatura com rins é toda aquela criatura que tem coração". Esta definição funciona bem, dentro de certos limites. Funciona extensionalmente bem, no sentido em que não há quaisquer contra-exemplos de criaturas que tenham rins e não tenham coração. Mas esta definição não é essencialista. Porquê? Porque apesar de ser verdade que todas as criaturas que têm rins têm coração, não há qualquer razão para pensar que uma propriedade essencial das criaturas que têm rins é terem coração. Isto é um facto da natureza, mas talvez seja uma contingência evolutiva. Talvez noutros planetas outras criaturas com rins não tenham coração; ou talvez tivesse havido na Terra criaturas com rins e sem coração, se a história evolutiva tivesse sido diferente.
Podemos, por isso, distinguir definições essencialistas de definições extensionais. A diferença é esta: numa definição essencialista, apresentamos propriedades essenciais e individuadoras, do que queremos definir. Numa definição extensional limitamo-nos a apresentar propriedades que o que queremos definir exibe, mas não pretendemos com isso dizer que o que queremos definir tem de ter essas propriedades em todas as circunstâncias possíveis. Assim, as definições essencialistas são muito mais fortes do que as definições meramente extensionais.
Mas há um tipo ainda mais forte de definições: são as definições analíticas. Neste caso, o que obtemos é uma sinonímia. Por exemplo, podemos definir a água deste modo: "Uma dada substância é água se, e só se, for H2O". Ser H2O é uma propriedade essencial e individuadora da água: isto quer dizer que qualquer substância que seja H2O é água e que toda a substância que for água é H2O. Mas sem dúvida que "H2O" não é um sinónimo de "água". Que a água é H2O foi uma descoberta empírica da ciência química, e não um facto linguístico sobre o significado da palavra "água". Quem descobriu que a água era H2O foram os químicos e não os lexicógrafos. Assim, a nossa definição é essencialista, mas não é analítica.
As definições analíticas são as mais fortes. O resultado de uma definição analítica é a análise do conceito a definir. É isto que é literalmente uma análise, e quem pensa que a metáfora de "decompor" um conceito nas suas partes é dizer literalmente o que é uma análise não sabe ainda claramente do que está a falar. A metáfora da "decomposição" das partes de um conceito resulta de em geral, mas nem sempre, o conceito X que queremos definir ser definido analiticamente com recurso a 2 ou 3 conceitos mais simples, como no exemplo seguinte: "O conhecimento é crença justificada verdadeira". A ideia de uma análise ou definição analítica é esta: o conceito X é definido com base nos conceitos Y que fazem parte do significado de X. Isto quer dizer que numa definição analítica ou numa análise temos de captar o significado do conceito que estamos a definir. Por exemplo, eu posso definir "virgem" assim: "Uma pessoa é virgem se, e só se, nunca teve relações sexuais" (ou: "Uma pessoa virgem é alguém que nunca teve relações sexuais"). Esta definição é analítica porque nos diz qual é o significado de "virgem". Grande parte dos grandes debates em filosofia resulta da tentativa de encontrar definições analíticas de alguns conceitos centrais, como conhecimento. Platão, por exemplo, no diálogo Teeteto, procura mostrar que a definição analítica de conhecimento como crença verdadeira justificada, apesar de apelativa, não funciona.
É também agora evidente que quem acha que a análise filosófica se "opõe" à síntese, ou que ambas se "complementam", não sabe o que é uma análise, e está a pensar em termos meramente formais, linguísticos e lexicais. Dado que, lexicalmente, "análise" e "síntese" se opõem, e dada a ideia peregrina de Hegel de que os opostos se complementam, parece imediatamente profundo e filosófico dizer que a síntese completa a análise. Isto é o resultado de uma má formação filosófica, baseada em trocadilhos e jogos de palavras, um exercício puramente formal e meramente lexical. Uma análise do conhecimento é importante porque nos ajuda a compreender o que é o conhecimento; uma síntese do conhecimento... seria o quê? Juntar "as partes componentes" do conhecimento? Para quê? Isso já nós temos intuitivamente, sempre que falamos do conhecimento.
As definições essencialistas têm uma força intermédia; são mais fortes do que as extensionais, mas mais fracas do que as analíticas. São mais fracas do que as analíticas no sentido em que não procuram dar o significado do termo a definir. Quando definimos água como H2O, não estamos a dizer que é isso que a palavra "água" quer dizer. Isto seria ridículo, porque implicaria que antes de os químicos descobrirem a composição química da água ninguém sabia o que a palavra "água" queria dizer. Logo, esta definição é essencialista mas não é analítica.
As definições mais fracas são as meramente extensionais. São mais fracas no sentido em que não se baseiam em propriedades essenciais nem no significado das palavras, mas unicamente numa coincidência extensional. Mas o que significa "coincidência extensional"? Para compreendermos isto temos de saber o que é a extensão de um predicado ou de um termo. Pensemos no predicado "ser verde". A sua extensão é todos os objectos verdes. Quando temos uma coincidência extensional, isso quer dizer apenas que a extensão do termo a definir e a extensão do termo ou termos que usamos para fazer a definição coincidem. Mas essa coincidência pode não passar precisamente de uma contingência, um facto aleatório do mundo. Numa definição extensional não estamos a falar de propriedades essenciais, nem do significado das palavras; estamos só a apontar um facto do mundo, que pode muito bem ser contingente.
As definições filosóficas pretendem em geral ser analíticas ou essencialistas, e não apenas extensionais. Mas isso nem sempre é possível. Aristóteles, por exemplo, definia ser humano como animal racional: "Um ser é um ser humano se, e só se, for um animal racional". Claro que esta definição não é analítica. "Ser humano" não quer dizer "animal racional"; esta definição não é uma análise. Se amanhã descobrirmos uma espécie biológica inteligente noutro planeta, não teremos de alterar o significado da expressão "ser humano". Mas se "ser humano" quisesse dizer "animal racional", seria impossível que um animal racional não fosse humano. Não é fácil saber se a definição de Aristóteles é essencialista ou meramente extensional. O facto de Aristóteles conceber as definições em termos de género próximo e diferença específica contribui para pensar que ele tinha em mente uma mera coincidência extensional: afinal, a definição em termos de género próximo e diferença específica é apenas uma forma de sobrepor duas classes de objectos de tal forma que a sua extensão coincida exactamente com o que queremos definir. Mas muitas pessoas pensaram que este tipo de definição de Aristóteles era essencialista; pensaram que as propriedades da racionalidade e da animalidade eram essenciais ao ser humano. Curiosamente, isto elimina a possibilidade de os seres humanos serem uma alma imortal não animal. Hoje em dia é muito mais plausível tomar a definição de Aristóteles como meramente extensional; se concebermos "racional" no sentido forte de ser dotado de grande inteligência (suficiente para discutir definições, por exemplo), é verdade que todos os animais racionais que existem (na Terra) são seres humanos. Mas as coisas poderiam ter sido diferentes. Outra espécie de animal poderia ter dado origem a uma espécie inteligente diferente; seriam animais racionais; mas não seriam seres humanos. Portanto, de um certo ponto de vista, a definição de Aristóteles está correcta se a entendermos como uma definição extensional; mas está errada se a entendermos como uma definição essencialista.
Pensemos outra vez na ideia intuitiva da "essência" das coisas. Nesta ideia intuitiva estão misturadas duas ideias distintas: a de definições analíticas e a de definições essencialistas. Em ambos os casos damos, de algum modo, a "essência" do que estamos a definir. A essência da água é ser H2O. A essência das pessoas virgens é nunca terem tido relações sexuais. Mas confundir os dois tipos de definições e falar confusamente de "dar a essência" não contribui em nada para uma compreensão mais alargada do que queremos fazer.
Condicionais e condições
A forma mais rigorosa de uma definição é a seguinte: "Uma certa coisa é F se, e só se, essa coisa for G". Outra forma é dizer apenas: "F é G". O segundo caso é menos claro do que o primeiro e tem de ser entendido como uma forma abreviada do primeiro. Por vezes esta forma abreviada é mais directa. ("F" e "G" abreviam predicados.) É mais simples dizer "A água é H2O" do que dizer "Uma substância é água se, e só se, for H2O". Mas as duas formas são aceitáveis. Todavia, para sabermos avaliar definições temos não só de ter em mente todas as distinções que já aqui apresentámos, mas temos também de saber muito bem o que quer dizer o "se, e só se" que ocorre nas definições. E mesmo quando não ocorre, quando dizemos apenas "é", podemos entender que isto é apenas uma forma abreviada de falar.
O que quer dizer "se, e só se"? Em primeiro lugar, quer dizer o mesmo que "se, e somente se" estas duas maneiras de falar são apenas variações linguísticas. Uma afirmação com a forma "se, e só se" é uma bicondicional; podemos também dizer que é uma equivalência. O que é uma bicondicional? Uma bicondicional, como o nome indica, são duas condicionais juntas. Assim, dizer "p se, e só se, q" é o mesmo do que dizer "Se p, então q, e se q, então p". ("p" e "q" abreviam afirmações.) E como podemos avaliar as bicondicionais? Em que condições são as bicondicionais verdadeiras ou falsas?
Uma bicondicional é uma forma de juntarmos duas afirmações. "Hoje vou à praia" e "A Joana telefona-me" são duas afirmações. Podemos juntar as duas e dizer "Hoje vou à praia se, e só se, a Joana me telefonar". Esta frase grande, constituída pelas duas mais pequenas, é uma bicondicional. E será verdadeira quando as duas frases que a constituem tiverem o mesmo valor de verdade. Se a primeira for verdadeira e a segunda falsa, ou vice-versa, a bicondicional será falsa. Isto é evidente para quem sabe lógica proposicional.
Mas há outra forma importante de entender as bicondicionais e que nos mostra imediatamente como podemos avaliar definições baseadas em bicondicionais. Uma bicondicional oferece-nos condições necessárias e suficientes. Quando eu digo que vou à praia se, e só se, a Joana me telefonar, estou a dizer que uma condição necessária e suficiente para eu ir à praia é o telefonema da Joana. Por outras palavras, vou à praia exactamente no caso de a Joana me telefonar, e não vou à praia precisamente no caso de ela não me telefonar. A melhor maneira de pensarmos no que são condições necessárias e suficientes é a seguinte.
Uma condição suficiente para ser F diz-nos as condições que basta algo obedecer para ser F. Uma condição suficiente para ser uma ave é ser um pintassilgo. Isto quer dizer que não há pintassilgos que não sejam aves, ou seja, quer dizer que todos os pintassilgos são aves. Se G é uma condição suficiente para F, então todos os G são F. Uma condição suficiente garante que não temos coisas a mais. É uma boa garantia. Mas não chega, porque não garante que não temos coisas a menos. Afinal, não é verdade que todas as aves são pintassilgos. Os pardais também são aves.
Por outro lado, uma condição necessária para ser F diz-nos as condições a que algo tem de obedecer para ser F. Uma condição necessária para ser ave é pôr ovos. Isto quer dizer que não há aves que não ponham ovos, ou seja, quer dizer que todas as aves põem ovos. Se G é uma condição necessária para F, então todos os F são G. Uma condição necessária garante que não temos coisas a menos. É uma boa garantia. Mas não chega, porque não garante que não temos coisas a mais. Afinal, não é verdade que todos os animais que põem ovos são aves. As serpentes também põem ovos.
A magia acontece quando juntamos condições necessárias e suficientes. Aí temos esta excelente garantia: não deixamos nada de fora nem temos coisas a mais. É o melhor dos mundos: todos os F são G e todos os G são F.
A maneira de avaliar definições é ver separadamente se as condições apresentadas são realmente necessárias e depois ver se são suficientes (ou vice-versa, a ordem é irrelevante). Por exemplo, imagine que eu lhe digo o seguinte:
O Homem é o ser que faz de si próprio uma questão para o pensamento. Esta é uma ideia aparentemente profunda. Mas será que o leitor se deve limitar a repetir esta sentença de aspecto profundo? Não será melhor tentar ver se eu tenho razão? Se quiser fazer isso, e pensar por si mesmo em vez de repetir apenas o que eu digo, pode pensar assim:
Aparentemente, o autor está a dizer, com uma linguagem sexista e antiquada, que um ser é um ser humano se, e só se, fizer de si mesmo uma questão para o pensamento. Isto quer dizer que uma condição necessária e suficiente para ser um ser humano é um ser pensar em si mesmo. Mas isto não pode ser verdade. Se houver quaisquer outros seres inteligentes no universo, ou se houver Deus, ou se houver anjos, todos esses seres reflectirão sobre si próprios, mas não serão seres humanos. Portanto, reflectir sobre si mesmo não é uma condição suficiente para ser um ser humano. Na melhor das hipóteses, é uma condição necessária. Mas será necessária? Será que os primeiros homens da pré-história reflectiam sobre eles? Muito provavelmente, não. Portanto, o que o autor quer realmente dizer, se tentarmos ser justos, é que uma característica importante dos seres humanos é a sua inteligência, que lhes permite pensar em muitas coisas incluindo neles próprios. Mas isto é trivial. Por detrás de uma afirmação de aspecto portentoso, esconde-se uma trivialidade sem qualquer interesse e da qual nada de substancial pode resultar.
Em suma: quando estamos perante uma definição com a forma "F se, e só se, G" temos de tentar ver se há efes que não são guês e se há guês que não são efes. E mesmo que a definição se apresente apenas como "F é G", devemos entender esta expressão como uma abreviatura.
Resta chamar a atenção para uma subtileza. Imagine que eu afirmo "F é G e H" ou "F se, e só se, G e H". Neste caso, estou a apresentar duas propriedades para conseguir a minha definição. Quando a nossa definição apresenta mais de uma propriedade, devemos entender que só a conjunção das propriedades é uma condição suficiente. Isto é, é o conjunto de G e H que é uma condição suficiente para F. G, separadamente, ou H, separadamente, podem não ser condições suficientes para F. Mas G e H são, separadamente, condições necessárias para F. Isto quer dizer que G, só por si (tal como H), é uma condição necessária para F.
Por exemplo, pensemos na seguinte definição: "Um estudante tem aproveitamento se tiver mais de 10 e tiver assistido a mais de 80% das aulas". Isto quer dizer uma condição necessária para ter aproveitamento é ter mais de 10; outra é ter assistido a mais de 80% das aulas. Mas não basta ter mais de 10 para ter aproveitamento; Nem basta ter assistido a mais de 80% das aulas para ter aproveitamento; é preciso as duas coisas juntas. Assim, ter mais de 10 e ter assistido a mais de 80% das aulas são condições conjuntamente suficientes e separadamente necessárias para ter aproveitamento. Isto quer dizer que todos os alunos que tiverem aproveitamento terão tido mais de 10. Mas nem todos os alunos que tiveram mais de 10 terão tido aproveitamento. Todavia, todos os alunos que tiveram mais de 10 e que assistiram a mais de 80% das aulas tiveram aproveitamento.
Avaliar definições
Os três tipos de definições explícitas exigem da parte de quem as avalia alguma subtileza. Em primeiro lugar, qualquer definição explícita, seja analítica, essencialista ou meramente extensional, tem de passar o teste das condições necessárias e suficientes. Se a definição diz que os seres humanos são animais racionais, não podemos encontrar um animal racional que não seja um ser humano, nem podemos encontrar um ser humano que não seja um animal racional. O esquema geral é sempre o mesmo: definições como "F é G" ou "F se, e só se, G" avaliam-se procurando contra-exemplos. Um contra-exemplo é um F que não é G, ou um G que não é F. (Esta é uma das razões pelas quais o quadrado de oposição é importante.)
Se encontrarmos um contra-exemplo deste género, a definição cai por terra, seja ela analítica, essencialista ou extensional. Porque um contra-exemplo refuta a forma mais fraca de definição, a extensional, refuta também qualquer das outras formas mais fortes de definição explícita. Se a definição não é boa nem em termos meramente extensionais, então também não é uma boa definição essencialista nem analítica.
Portanto, para derrotar qualquer um dos tipos de definições explícitas, basta um contra-exemplo.
Mas como avaliamos as definições essencialistas? Claro, já sabemos que se nem sequer for uma boa definição extensionalista, também não será uma boa definição essencialista. Mas imaginemos que estamos perante uma definição que não levanta contra-exemplos, como "o ser humano é um animal racional". Não há animais racionais que não sejam humanos nem seres humanos que não sejam racionais. Mas isto não chega para mostrar que esta é uma boa definição essencialista. Isto só mostra que talvez seja uma boa definição extensionalista. Para ser uma boa definição essencialista tem de passar o teste das condições necessárias e suficientes, e mais um teste ainda. Não basta que não haja realmente contra-exemplos; é preciso que não seja possível haver contra-exemplos. Isto é, não basta que efectivamente todos os seres humanos sejam animais racionais e que todos os animais racionais sejam seres humanos. É preciso que não tivesse podido ser de outro modo. Ora, é perfeitamente plausível que os animais racionais não tivessem sido humanos; poderiam ter pertencido a outra espécie qualquer. Portanto, apesar de esta definição passar o primeiro teste, falha o segundo: falha o teste modal. Para que uma definição essencialista seja boa não basta que todos os F sejam G e que todos os G sejam F. É preciso que seja necessário que todos os F sejam G e que todos os G sejam F.
Uma definição analítica tem de passar três testes. O primeiro, o das condições necessárias e suficientes; o segundo, o teste modal; e um terceiro teste. Imaginemos que eu defendo a seguinte definição: "A água é H20". Será esta uma boa definição analítica? Será que estamos perante uma análise de "água"? Para avaliarmos esta definição temos de saber se há efectivamente substâncias que sejam H20 e não sejam água, ou vice-versa. Não há tal coisa. A definição passa o primeiro teste. E será necessário que qualquer substância que seja H20 é água e vice-versa? É verdade que sim; não é possível que um certo líquido seja realmente água mas não seja H20 nem vice-versa. A definição passa o segundo teste. Mas não passa o terceiro teste: "H20" não é um sinónimo de "água". Se fosse um sinónimo, não teria sido uma descoberta da química. É este o terceiro teste, o teste que nos diz se uma definição é ou não analítica. Se for analítica, F e G têm de ser sinónimos: G tem de captar o significado de F. Este é o tipo mais forte de definição e agora percebemos porquê: para termos uma boa definição analítica, temos de nos submeter a três testes e não apenas a um ou dois.
Definições implícitas e caracterizações
Demorámos bastante a distinguir os 3 tipos de definições explícitas a que podemos deitar mão. Mas estas definições não são as únicas que existem. Também temos definições implícitas. As definições implícitas não são muito populares e intuitivamente podemos ser levados a pensar que as definições implícitas não são verdadeiras definições. Isto é um erro. Algumas definições implícitas podem ser extraordinariamente precisas e rigorosas, podendo até ser usadas em lógica, geometria e matemática. E há razões para pensar que alguns conceitos centrais não poderão ser explicitamente definidos. Todavia, não se segue daí que não possamos definir com muito rigor esses conceitos. Pura e simplesmente, essa definição não será explícita.
Pensemos, por exemplo, na cor verde. Como posso eu definir esta cor? Um físico ou um psicólogo cognitivo podem talvez definir explicitamente o verde. Mas todos nós podemos definir implicitamente a cor verde. Fazemo-lo apontando para os objectos verdes e distinguindo-os dos objectos que não são verdes. Isto acontece com a maior parte dos nossos conceitos. Sabemos muito bem o que é uma obra de arte e o que não é uma obra de arte, mas temos uma grande dificuldade em definir explicitamente uma obra de arte. Sabemos muito bem o que é um acto moralmente correcto de um acto moralmente incorrecto, mas temos uma grande dificuldade em definir explicitamente um acto moralmente correcto. Sócrates exagerava quando clamava que os seus concidadãos nada sabiam da moral ou da justiça por serem incapazes de definir explicitamente a justiça ou o bem. Claro que eles sabiam muito acerca da justiça e acerca do bem. Pura e simplesmente não conseguiam apresentar definições explícitas dos conceitos centrais da ética e da filosofia política.
Há dois tipos de definições implícitas: as ostensivas e as não ostensivas. Nas definições implícitas ostensivas, limitamo-nos a apontar para casos concretos de objectos que exemplificam o que queremos definir. Perguntam-me o que é a justiça e eu apresento vários casos de actos justos e vários casos de actos injustos. Perguntam-me o que é a cor verde e eu apresento vários casos de objectos verdes e vários casos de objectos que não são verdes. Isto é perfeitamente adequado.
Por outro lado, posso apresentar uma definição não ostensiva. Por exemplo, posso apresentar um sistema lógico em que nunca defino explicitamente a adição. Mas porque o sistema exibe as propriedades fundamentais da adição, o meu sistema acaba por constituir na sua globalidade uma definição implícita de adição. Em lado algum do sistema encontramos uma afirmação que defina a adição. Mas a totalidade do sistema é uma poderosa definição implícita de adição; a adição é o que tem as propriedades evidenciadas pelo meu sistema.
Todavia, nem sempre obtemos o esclarecimento que desejamos com as definições implícitas. Alguém que me pergunte o que é a literatura ficará decepcionado se eu me limitar a mandar-lhe vários romances para casa, ao ritmo de um por semana, para ele ler. Todavia, eu terei uma grande dificuldade em definir explicitamente a literatura. Uma caracterização é uma alternativa à definição, que muitas vezes surge em complemento à definição.
Numa caracterização apresentamos um conjunto de propriedades que consideramos importantes para que se compreenda do que estamos a falar. Essas propriedades podem não ser necessárias nem suficientes. São apenas propriedades que podem ser esclarecedoras, mesmo que haja excepções, mesmo que muitas outras propriedades possam ser evocadas, etc. Por exemplo, se uma criança me perguntar o que é o álcool duvido que seja muito útil falar-lhe da composição química do álcool. Todavia, esta definição é perfeitamente boa, é uma definição essencialista. Mas não é informativa; na verdade, é até incompreensível. A criança precisa de algo que a ajude a começar a identificar o álcool, distinguindo-o de outras coisas, precisa de saber o que fazemos em geral com o álcool, etc. E é isso que lhe podemos dizer. Podemos dizer-lhe que é um líquido transparente que usamos para desinfectar feridas, que é muito inflamável e volátil, etc. Em suma, escolhemos um conjunto de propriedades que reputamos importantes e apresentamos essas propriedades à criança. E podemos fazer isto ao mesmo tempo que lhe mostramos frascos com álcool. E até podemos fazer isto ao mesmo tempo que apresentamos uma definição essencialista; pois nessa altura a definição essencialista já será informativa e compreensível. As caracterizações são auxiliares preciosos para a compreensão.
É por isso que quem insiste numa definição explícita de filosofia analítica como condição prévia para podermos identificar textos de filosofia analítica está a laborar num erro. Se isso fosse assim, quase ninguém saberia identificar quase nada. Se queremos informar as pessoas de algo, o melhor é mostrar-lhes exemplos claros disso, e apresentar uma caracterização. As definições explícitas não são geralmente informativas para quem nada sabe do que estamos a falar. Mas as definições implícitas e as caracterizações são muito úteis, pois permitem ao nosso interlocutor descobrir por si o que desejamos dar a conhecer. Por isso, quando alguém nos pergunta o que é a filosofia analítica, devemos destacar algumas características importantes, e dirigi-lo para os livros relevantes, onde poderá ver por si mesmo o que é a filosofia analítica.
Metáforas e jogos de palavras
Afirmei que as definições essencialistas eram mais "fortes" do que as extensionais e mais "fracas" do que as analíticas. Mas esta metáfora da força quer dizer o quê?
Algumas pessoas pensam que na filosofia e no pensamento, as metáforas devem ser encaradas como pontos de chegada do pensamento. Neste caso, estão a confundir muitas coisas. As metáforas podem ser importantes por vários motivos; são importantes porque nos ajudam a compreender as coisas; são importantes porque tornam o nosso discurso mais atraente. Mas pensar que podemos usar metáforas como substituto do pensamento literal é batota. Se eu fosse incapaz de explicar literalmente o que quis dizer com "força" neste contexto, o leitor talvez desconfiasse que eu não sabia muito bem do que estava a falar. E teria razão.
Quem usa X como metáfora para falar de Y tem de obedecer a duas condições para podermos considerar que é intelectualmente honesto. Em primeiro lugar, tem de ter um bom conhecimento de X. Eu não posso usar a mecânica quântica como metáfora para falar de arte se não tenho um conhecimento profundo da mecânica quântica. Isto será apenas uma forma de tentar impedir o pensamento do leitor, que fica intimidado com o meu uso de tão esotérica área do conhecimento. Em segundo lugar, tem de saber explicar as coisas sem recorrer à metáfora, tem de saber exprimir-se literalmente. Se eu for incapaz de me exprimir literalmente para falar da força lógica, o leitor terá a certeza que eu não sei bem do que estou a falar e a metáfora é apenas uma forma de esconder a minha ignorância. Se o nosso médico for incapaz de explicar literalmente o que é uma constipação, se tiver sempre de recorrer a metáforas, é incompetente. O mesmo acontece na filosofia e em tudo.
Quando dizemos que F tem mais força lógica do que G isto quer dizer que F implica G, mas G não implica F. Assim, todas as definições analíticas nos dão simultaneamente propriedades essenciais individuadoras e ao mesmo tempo garantem a coincidência extensional. Mas nem todas as definições essencialistas são analíticas, apesar de todas as definições essencialistas garantirem a coincidência extensional. Agora ficou claro o que queríamos dizer. Sem metáforas.
Todavia, há um aspecto que pode confundir o estudante. Pensemos, por exemplo, na filosofia da arte. Um dos problemas desta disciplina é a definição de obra de arte. O que é realmente uma obra de arte? Como é habitual nestas coisas, estamos como Agostinho, que dizia acerca do tempo: se ninguém me pergunta, sei o que é; se me perguntam, não sei. O que Agostinho queria dizer era que tinha uma boa definição implícita de tempo, mas era incapaz de dizer explicitamente o que é o tempo. E o mesmo acontece com a arte. Agora já compreendemos bem este aspecto. Mas há algo que ainda pode provocar confusão e é o seguinte: as definições essencialistas de arte são refutadas mostrando que há obras de arte que escapam à definição, ou que pelo contrário a definição abarca coisas que não são obras de arte. Ora, este tipo de contra-exemplos não refuta apenas as definições essencialistas: refuta qualquer tipo de definições explícitas. Isto pode confundir-nos, porque podemos pensar que nesse caso nem sequer há definições essencialistas. Isto é um erro. Claro que há. O problema é que em alguns casos nem sequer conseguimos definições extensionais.
Bem sei que não é fácil ver a diferença entre definições essencialistas e meramente extensionais. Não conseguiremos ver a diferença enquanto não pensarmos em termos modais. Vejamos se conseguimos esclarecer este aspecto. Pensemos em corvos. Todos os corvos são negros. Será que a propriedade de ser negro é essencial dos corvos? Que quer isto dizer? Todos os corvos são efectivamente negros. Mas ao perguntarmos se esta é uma propriedade essencial estamos a perguntar se há circunstâncias possíveis em que os corvos não são negros. E podemos perfeitamente dizer que sim. Em determinadas circunstâncias ambientais, que um biólogo evolucionista poderá determinar, os corvos poderiam ter sido verdes, se isso tivesse favorecido a sua sobrevivência. Que quer isto dizer? Isto quer dizer que podemos usar a propriedade de ser negro para construir uma definição de corvo, mas essa definição será meramente extensional. Não será uma definição essencialista.
Para terminar, quero chamar a atenção para o título deste ensaio: trata-se de um claro jogo de palavras. É uma brincadeira. Falar na definição de "definição" tem graça. É falar da filosofia dizendo que consiste em pensar sobre o pensamento. Mas um jogo de palavras não pode ser encarado como mais do que uma brincadeira. E é claro que há brincadeiras muito sérias, basta ler Lewis Carrol e saber lógica para perceber isso. Mas, uma vez mais, não podemos substituir o pensamento literal e directo, pelos jogos de palavras. Precisamente porque os jogos de palavras são divertidos, hipnotizam o leitor e tiram-lhe o espírito crítico. E o que um autor honesto quer é leitores críticos, que o possam corrigir, e não leitores anódinos, que acenam com a cabeça e repetem o "mantra" infinitamente.
Finalmente, repare-se que ao longo deste ensaio nunca disse explicitamente o que era uma definição. Mas na sua totalidade, espero que este ensaio constitua uma boa definição do que é uma definição. Cabe ao leitor saber que tipo de definição é, e verificar se contém erros, que eu terei de corrigir -- com todo o gosto, pois não há nada que mais agrade a um autor do que ser corrigido pelos seus leitores.
Desidério Murcho
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