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Sociedade Portuguesa de Filosofia

Apresentação

O Centro para o Ensino da Filosofia (CEF) é uma unidade da Sociedade Portuguesa de Filosofia criada no ano 2000 que tem por objectivo contribuir para o incremento da qualidade do ensino e do estudo da filosofia em Portugal, nomeadamente no ensino secundário.

A natureza deste centro, os seus objectivos, o seu âmbito de actuação e os seus membros podem ser conhecidos com a consulta aos Estatutos do CEF.

O centro tem a sua sede nas instalações da Sociedade Portuguesa de Filosofia, embora todos os contactos devam, por razões operacionais, ser endereçados para as moradas indicadas no final desta página.

 

Projectos

O CEF está actualmente a finalizar os seguintes projectos editoriais, que serão dados à estampa em 2002:

·         Manual de Filosofia para o 10.º ano.

·         «Ensino da Filosofia: o que está em causa?» - um volume sobre o processo e o produto da revisão curricular de Filosofia.

·         Brochura sobre a avaliação em Filosofia.

·         Brochura sobre Lógica.

Brevemente serão dadas mais informações sobre estes projectos editoriais neste site.

 

Revisão Curricular

i) Intervenção do CEF

O Ministério da Educação (ME), através do Departamento do Ensino Secundário (DES), tem vindo a promover a discussão pública dos projectos dos novos programas de Filosofia para o 10.º/11.º e 12.º anos, que entrarão em vigor a partir de 2002, no âmbito da revisão curricular. O CEF tem contribuído significativamente para essa discussão, tendo elaborado vários pareceres que, desde Julho de 2000, tem entregue ao DES e divulgado junto de muitos professores de Filosofia, especialmente do Ensino Secundário. Dada a apreciação negativa dos projectos apresentados pelo DES, não quis o CEF deixar de apresentar críticas construtivas e, nesse sentido, apresentou igualmente ao departamento uma Contraproposta Preliminar de Programa para o 10.°/11.° anos de escolaridade. Face à falta de acolhimento, pela equipa de autores dos programas, de todas as recomendações produzidas pelo CEF no que respeita ao Programa de Filosofia do 10.º/11.º anos, foi produzido um documento de Sugestões finais que apresenta aquelas que, no entender do CEF, constituiriam as alterações mínimas essenciais que tal programa deveria sofrer para uma dignificação do ensino da Filosofia. Em virtude das críticas, comentários e sugestões recebidas de muitos professores, o CEF elaborou também um documento de Objecções e Respostas que pretende responder às objecções com que mais frequentemente se depara. Muito recentemente, o CEF produziu mais um parecer, agora sobre o projecto de Programa de Filosofia do 12.º ano, para o qual se aguarda a reacção da equipa de autores.

Todos os documentos relevantes podem ser consultados a partir dos 'links' que se encontram no índice que se segue:

ii) Documentos fundamentais

1.      Proposta de Programa do DES/ME para o 10.º/11.º anos A proposta de revisão do Programa de Filosofia apresentada no início de Julho de 2000, no site do DES, para discussão pública. O prazo de discussão, sucessivamente alargado, terminou em 31 de Outubro de 2000.

(Obs.: o ficheiro foi disponibilizado no site pelo DES em formato .pdf, o que significa que terá de instalar previamente o programa Acrobat Reader, caso ainda não o tenha instalado, para poder ler o documento nele contido). 

2.      Parecer inicial do CEF O primeiro parecer produzido pelo CEF em resposta à solicitação pública de pareceres sobre o projecto de Programa de Filosofia do 10.º/11.º anos. Este documento foi enviado ao DES no dia 31 de Julho de 2000 e foi tornado público dia 6 de Agosto de 2000 (via Internet).

3.      Contraproposta de programa do CEF (versão preliminar)   Trata-se do estudo preliminar produzido pelo CEF em virtude de considerar inaceitável o projecto de Programa para o 10.º/11.º anos apresentado pelo DES. Este documento foi enviado ao DES no dia 31 de Julho de 2000 e tornado público dia 6 de Agosto de 2000. Todas as sugestões e críticas são bem-vindas.

(Obs.: ficheiro em formato .doc: pode ser lido pelo programa Word; no entanto, não pode ser modificado).

4.      Parecer Complementar do CEF Conjunto de artigos que foram publicados na Crítica, da autoria dos membros do CEF, e que pormenorizam as considerações já contidas no parecer inicial do CEF (2.). Este segundo parecer contém críticas, unidade por unidade, à proposta de programa do 10.º/11.º anos e foi enviado ao DES em Outubro de 2000.

(Obs.: ficheiro em formato .doc: pode ser lido pelo programa Word; no entanto, não pode ser modificado).

5.      Objecções & Respostas Conjunto de objecções, dúvidas e questões que foram dirigidas dirigidas ao CEF entre Julho e Novembro de 2000, e resposta respectiva.

(Obs.: ficheiro em formato .doc: pode ser lido pelo programa Word; no entanto, não pode ser modificado).

6.      Sugestões Finais do CEF Documento enviado ao DES em Janeiro de 2001, contendo as alterações mínimas essenciais para o programa do 10.º/11.º anos. O programa acabou por ser homologado em 22 de Fevereiro desse ano, infelizmente sem ter integrado qualquer sugestão do CEF.

(Obs.: ficheiro em formato .doc: pode ser lido pelo programa Word; no entanto, não pode ser modificado).

7.       Proposta de Programa do DES/ME para o 12.º ano - A proposta de revisão do Programa de Filosofia apresentada no início de Janeiro de 2002, no site do DES, para discussão pública. O prazo de discussão terminou em 23 de Janeiro de 2002.

(Obs.: o ficheiro foi disponibilizado no site pelo DES em formato.pdfF, o que significa que terá de instalar previamente o programa Acrobat Reader, caso ainda não o tenha instalado, para poder ler o documento nele contido). 

8.       Parecer do CEF relativamente ao Programa de Filosofia do 12.º ano Parecer enviado pelo CEF ao DES em Janeiro de 2002, no âmbito da recolha de pareceres sobre este programa.

(Obs.: ficheiro em formato .doc: pode ser lido pelo programa Word; no entanto, não pode ser modificado).

 

iii) Pareceres a título individual

iv) Pareceres de instituições

 

Contactos

O CEF agradece as suas sugestões, críticas e propostas de colaboração:

Centro para o Ensino da Filosofia
Rua Infante Santo, n.º 39 2.º esquerdo 2780-079 OEIRAS

Telefone: 91 705 45 75

E-mail: cefspf@mail.prof2000.pt

 

Dixit...

E, na verdade, nunca pude sofrer estes que se servem de palavras pouco usuais e inteligíveis, nem distinguem o verdadeiro do falso, o claro do duvidoso, mas recolhem-se ao sagrado de certas palavras, como os Hebreus à sua Cabala e os Egípcios às suas Crónicas, e até parece que têm medo de se explicar. Este é o comum vício dos Aristotélicos: toda a sua Física é mistério; são altíssimas contemplações, cobertas com o véu de palavras pouco comuns e fora do significado usual. Se V. P. traduzir em bom Português uma opinião peripatética, perde a metade da sua força; se a chega a explicar, e lhe pede a razão de cada parte, perde-a toda. Que sorte de Filosofia é esta que não se pode explicar?

Luís António Verney, Verdadeiro Método de Estudar, Carta X

A componente de Formação Geral não inclui qualquer disciplina que ajude o aluno na sua educação científica e tecnológica (e, nesta, qualquer disciplina a nível da utilização das novas tecnologias de informação).

À Filosofia encomendam-se demasiados encargos, como o de pensar o nosso mundo nos seus aspectos científicos, económicos, sociais, políticos, éticos, estéticos, etc. e de desenvolver a educação para a cidadania e talvez promover a educação ambiental (da educação para a saúde, da educação sexual, da educação interpessoal, não há notícia). Naturalmente que se levantam dúvidas sobre a possibilidade de, para esta disciplina, se conseguir organizar um programa com tantas missões e objectivos. São legítimos os receios de que a formação geral dos alunos resulte, afinal, demasiado restrita e que a mais valia que todos desejamos garantir através da frequência do Ensino Secundário, qualquer que seja o percurso dos alunos, fique tão limitada, como já o era antes, e não contemple aspectos que os jovens e a sociedade vêm repetidas vezes reivindicando.

A Filosofia poderá mesmo não ser a disciplina mais indicada e atractiva para integrar a componente geral da formação dos adolescentes do 10º e 11º anos. Seria aconselhável uma disciplina  que ajudasse à compreensão dos diversos processos culturais da constituição do mundo moderno e contemporâneo (do particular ao universal), que se entrecruzam no seu tempo, ajudando-os a desenvolver valores de cidadania democrática.

Conselho Nacional de Educação, «Parecer n.º2/2000»,

de 25 de Maio, Diário da República, II Série, n.º121

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Última actualização: 17 de Fevereiro de 2002

 

 

Crítica Central de filosofia e cultura
 Epistemologia Filosofia Leitura Música
The Problems of Philosophy, de Bertrand Russell
Aparência e realidade
Bertrand Russell

Há algum conhecimento tão certo que nenhum homem razoável possa dele duvidar? Esta questão, que à primeira vista parece fácil, é na realidade uma das mais difíceis que se podem fazer. Quando tivermos compreendido as dificuldades com que se defronta uma resposta clara e segura, estaremos bem lançados no estudo da filosofia uma vez que a filosofia é apenas a tentativa de responder a estas questões fundamentais, não descuidadamente e dogmaticamente, como fazemos na vida quotidiana e mesmo nas ciências, mas criticamente, após termos explorado tudo o que torna estas questões embaraçosas e termos compreendido toda a vagueza e confusão que subjazem às nossas ideias vulgares.

Na vida quotidiana assumimos como certas muitas coisas que, se as examinarmos melhor, descobrimos serem tão contraditórias que só uma reflexão demorada permite que saibamos em que acreditar. Na busca da certeza é natural que comecemos pelas nossas experiências imediatas e, num certo sentido, sem dúvida que o conhecimento deriva delas. É, no entanto, possível que esteja errada qualquer afirmação acerca do que as nossas experiências imediatas nos permitem conhecer. Parece-me que estou agora sentado numa cadeira, diante duma mesa com determinada forma, sobre a qual vejo folhas de papel manuscritas ou impressas. Se virar a cabeça, vejo pela janela alguns edifícios, as nuvens e o Sol. Acredito que o Sol está a cerca de cento e cinquenta milhões de quilómetros da Terra; que é um globo quente muitas vezes maior do que esta; que, devido à rotação terrestre, nasce todas as manhãs, e continuará no futuro a fazê-lo por um tempo indeterminado. Acredito que, se outra pessoa normal entrar nos meus aposentos, verá as mesmas cadeiras, as mesmas mesas, livros e papéis que eu vejo, e que a mesa que vejo é a mesma cuja pressão sinto no meu braço. Tudo isto parece ser tão evidente que nem merece a pena referi-lo, excepto em resposta a quem duvide de que conheço alguma coisa. Apesar disso, tudo o que afirmei pode ser submetido a uma dúvida razoável e exige uma discussão cuidadosa antes que possamos estar absolutamente certos da sua verdade.

Para tornar óbvias estas dificuldades, concentremos a nossa atenção na mesa. Para a vista a mesa é oval, castanha e brilhante, enquanto para o tacto é lisa, fria e dura e, quando se lhe bate, emite um som a madeira. Qualquer pessoa que a veja, sinta e oiça estará de acordo com esta descrição e, por conseguinte, poderá parecer que não existe aqui a mais pequena dificuldade; no entanto, assim que tentemos ser mais precisos, os nossos problemas começarão. Embora eu acredite que toda a mesa é «realmente» da mesma cor, as partes que reflectem a luz parecem mais brilhantes que as outras e algumas, devido à luz reflectida, chegam a parecer brancas. Sei que se me mover, as partes que reflectirão a luz não serão as mesmas e que a distribuição aparente das cores na mesa mudará. Por conseguinte, se várias pessoas estiverem a olhar para a mesma mesa no mesmo momento, nenhuma delas verá exactamente a mesma distribuição de cores, porque nenhuma delas a poderá ver exactamente do mesmo ponto de vista e, qualquer mudança de ponto de vista, provoca mudanças na forma como a luz é reflectida.

Para a maior parte das nossas finalidades práticas estas diferenças não são importantes, embora o sejam para o pintor. O pintor tem de perder o hábito de pensar que as coisas parecem ter a cor que o senso comum diz que «realmente» têm e aprender a ver as coisas como aparecem. Eis aqui a origem duma das distinções que mais dificuldades causa em filosofia: a distinção entre «aparência» e «realidade», entre o que as coisas parecem ser e o que são. O pintor quer saber o que as coisas parecem ser, enquanto o homem prático e o filósofo desejam saber o que são. Contudo, o desejo do filósofo por este saber é mais forte que o do homem prático e igualmente mais afectado pelo conhecimento das dificuldades em responder à questão.

Voltemos à mesa. O que vimos torna claro que não existe nenhuma cor que apareça distintamente como sendo a cor da mesa, ou mesmo de uma qualquer parte da mesa. De pontos de vista diferentes a mesa parece ser de cores diferentes e não há qualquer razão para que consideremos uma delas como sendo realmente a sua cor. Sabemos também que mesmo dum dado ponto de vista, sob luz artificial, para uma pessoa daltónica, ou para uma pessoa que use óculos com lentes azuis, a cor parecerá diferente, enquanto no escuro não existirá de todo cor, embora a mesa se mantenha imutável ao tacto ou à audição. A cor, portanto, não é inerente à mesa, mas depende dela, do observador e da forma como a luz nela incide. Na vida quotidiana, quando falamos da cor da mesa, aludimos apenas à cor que parecerá ter a um observador normal, dum ponto de vista habitual e em condições de luz vulgares. No entanto, as cores que aparecem sob outras condições têm idêntico direito a serem consideradas reais e, por conseguinte, para evitar qualquer favoritismo, somos levados a negar que, em si mesma, a mesa tenha uma qualquer cor em particular.

O mesmo se passa com a textura da mesa. Podemos ver a olho nu os veios da madeira, mas com excepção disso, a mesa parece lisa e uniforme. Contudo, se a observássemos por intermédio de um microscópio veríamos rugosidades, altos e baixos, e todo o género de irregularidades imperceptíveis a olho nu. Qual destas é a mesa «real»? Temos, como é natural, a tentação de dizer que o que vemos através do microscópio é mais real, mas isso, por sua vez, seria alterado por um microscópio ainda mais poderoso. Se, portanto, não podemos confiar no que vemos a olho nu, porque deveremos confiar no que vemos por intermédio de um microscópio? Deste modo, uma vez mais, a confiança que tínhamos nos sentidos ao começar, abandona-nos.

Não estamos em melhor situação no que respeita à forma da mesa. Temos todos o hábito de fazer juízos acerca das formas «reais» das coisas, e fazêmo-los de forma tão irreflectida, que acabamos por pensar que vemos efectivamente as formas reais. Mas, de facto, como teremos todos de aprender se a tentarmos desenhar, uma mesma coisa parece ter, de pontos de vista diferentes, formas diferentes. Se a nossa mesa é «realmente» rectangular, irá parecer, de quase todos os pontos de vista, como se tivesse dois ângulos agudos e dois ângulos obtusos. Se os lados opostos são paralelos, irão parecer convergir num ponto afastado do observador; se são de extensão idêntica, o lado mais próximo irá parecer maior. Geralmente não nos apercebemos destas coisas quando olhamos para uma mesa porque a experiência ensinou-nos a construir a forma «real» a partir da forma aparente e, como homens práticos, o que nos interessa é a forma «real». Mas a forma «real» não é o que vemos, é algo inferido do que vemos. E o que vemos, à medida que nos movemos na sala muda constantemente de forma, pelo que, uma vez mais, parece que os sentidos não nos mostram a verdade sobre a própria mesa, mas apenas sobre a aparência da mesa.

Deparamo-nos com dificuldades análogas quando examinamos o sentido do tacto. Não há dúvida que a mesa produz sempre em nós uma sensação de dureza e que sentimos a sua resistência à pressão. No entanto, a sensação que temos depende da força e da parte do corpo com que pressionamos a mesa. Não se pode supor, portanto, que as sensações diferentes que resultam das pressões diferentes ou das partes do corpo diferentes, revelem directamente uma propriedade específica da mesa, mas que, na melhor das hipóteses, sejam sinais de alguma propriedade que talvez cause todas as sensações, embora não apareça efectivamente em nenhuma delas. E o mesmo se aplica de forma ainda mais óbvia aos sons produzidos percutindo a mesa.

Torna-se desta forma evidente que a mesa real, se existe, não é idêntica à de que temos experiência imediata pela visão, pelo tacto ou pela audição. Da mesa real, se existe, não temos qualquer conhecimento imediato, embora deva ser obtida por inferência a partir daquilo de que temos conhecimento imediato. Isto dá origem simultaneamente a duas questões bastante difíceis, a saber: 1) Existe uma mesa real? 2) Se sim, que espécie de objecto pode ser?

A posse de alguns termos simples, cujo significado seja definido e claro, ajudar-nos-á a examinar estas questões. Chamaremos «dados dos sentidos» às coisas de que temos conhecimento imediato na sensação: coisas como cores, sons, cheiros, durezas, rugosidades, etc. Chamaremos «sensação» à experiência de ter imediatamente consciência destas coisas. Assim, sempre que vemos uma cor, temos uma sensação da cor, mas a própria cor é um dado dos sentidos, não uma sensação. A cor é aquilo de que estamos imediatamente conscientes, e a própria consciência é a sensação. É evidente que se viermos a saber algo acerca da mesa, deve ser por intermédio dos dados dos sentidos a cor castanha, a forma oval, a lisura, etc. que associamos com a mesa; mas pelas razões já expostas, não podemos dizer que a mesa é os dados dos sentidos, ou mesmo que os dados dos sentidos são propriedades directas da mesa. Surge deste modo o problema da relação entre os dados dos sentidos e a mesa real, supondo que existe uma tal coisa.

Chamaremos à mesa real, se existe, «objecto físico». Por conseguinte, temos de examinar a relação entre os dados dos sentidos e os objectos físicos. À colecção de todos os objectos físicos chama-se «matéria». Assim, as nossas duas questões podem ser reafirmadas da seguinte forma: 1) Existe matéria? 2) Se sim, qual é a sua natureza?

O Bispo Berkeley (1685-1753) foi o primeiro filósofo a dar destaque às razões para que neguemos a existência independentemente dos objectos imediatos dos nossos sentidos. A sua obra Três Diálogos entre Hylas e Philonous, em Oposição aos Cépticos e Ateus procura provar que não existe matéria e que o mundo é constituído apenas pelas mentes e as suas ideias. Hylas tinha até esse momento acreditado na matéria, mas não é adversário para Philonous, que o leva inexoravelmente a cair em contradições e paradoxos, e faz a negação da matéria parecer, no fim, quase senso comum. Os argumentos usados são de valor muito desigual: alguns são importantes e correctos; outros são confusos ou cavilosos. Mas Berkeley possui o mérito de ter mostrado que se pode negar sem absurdo a existência da matéria, e que, se há coisas que existem independentemente de nós, não podem ser os objectos imediatos das nossas sensações.

O problema da existência da matéria envolve duas questões diferentes que é importante distinguir com clareza. Normalmente entendemos por «matéria» algo oposto a «mente», algo que ocupa espaço e é completamente incapaz de qualquer espécie de pensamento ou consciência. É principalmente neste sentido que Berkeley nega a matéria; isto é, ele não nega que os dados dos sentidos que normalmente consideramos como sinais da existência da mesa sejam realmente sinais da existência de algo independente de nós, mas nega que este algo seja não mental, que não seja a mente ou as ideias concebidas por uma mente. Ele admite que deve haver algo que continue a existir quando abandonamos o aposento ou fechamos os olhos, e que aquilo a que chamamos ver a mesa nos dá razões para crermos em algo que persiste mesmo quando não o estamos a ver. Mas pensa que este algo não pode ter uma natureza radicalmente diferente daquilo que vemos, e que não pode ser completamente independente da visão, embora deva ser independente da nossa visão. É assim levado a olhar a mesa «real» como uma ideia na mente de Deus. Esta ideia tem a permanência e a independência em relação a nós exigidas, sem ser como de outro modo a matéria seria algo totalmente incognoscível, no sentido em que a podemos apenas inferir mas nunca podemos ter directamente e imediatamente consciência dela.

Houve outros filósofos depois de Berkeley a afirmar também que, embora a existência da mesa não dependa dela ser vista por mim, depende de ser vista (ou de algum modo apreendida na sensação) por uma mente não necessariamente a mente de Deus, mas com maior frequência a mente colectiva do universo. Como Berkeley, defendem esta posição principalmente porque pensam que não pode existir nada real ou, em todo o caso, nada que se saiba sê-lo excepto as mentes com os seus pensamentos e sentimentos. Podemos formular o argumento com que sustentam a sua posição mais ou menos assim: «Tudo o que pode ser pensado é uma ideia na mente da pessoa que a pensa; portanto, só ideias nas mentes podem ser pensadas; portanto, qualquer outra coisa é inconcebível, e o que é inconcebível não pode existir.»

Em minha opinião este argumento é falacioso; e, obviamente, aqueles que o empregam não o expressam de forma tão concisa ou grosseira. Mas válido ou não, o argumento com uma ou outra forma tem sido amplamente usado, e muitos filósofos, talvez a maioria, sustentaram que só as mentes e as suas ideias são reais. A estes filósofos chama-se «idealistas». Quando explicam a matéria, ou dizem, como Berkeley, que a matéria é de facto apenas uma colecção de ideias, ou dizem, como Leibniz (1646-1716), que o que aparece como matéria é de facto uma colecção de mentes mais ou menos rudimentares.

Mas estes filósofos, embora neguem a matéria enquanto oposta à mente, admitem-na, contudo, noutro sentido. Recordemos as duas questões que fizemos: 1) Existe uma mesa real? 2) Se sim, que espécie de objecto pode ser? Ora, tanto Berkeley como Leibniz admitem que existe uma mesa real, mas Berkeley diz que ela consiste em certas ideias na mente de Deus e Leibniz diz que é uma colónia de almas. Portanto, ambos respondem pela afirmativa à primeira questão e divergem da visão das pessoas comuns apenas na resposta à segunda. Na verdade, quase todos os filósofos parecem concordar com a existência de uma mesa real; quase todos concordam que, por muito que os nossos dados dos sentidos a cor, a forma, a lisura, etc. possam depender de nós, a sua ocorrência é, todavia, um sinal de algo que existe independentemente de nós, algo que talvez difira completamente dos nossos dados dos sentidos e, apesar de tudo, seja olhado como a causa desses dados dos sentidos sempre que estamos numa relação apropriada com a mesa real.

Obviamente, este ponto em que os filósofos concordam a posição de que existe uma mesa real, qualquer que seja a sua natureza é de importância vital, e vale a pena examinar que razões temos para aceitar esta posição antes de abordarmos a questão da natureza da mesa real. Por este motivo, o próximo capítulo tratará das razões para supormos que existe uma mesa real.

Antes de avançarmos será bom que examinemos brevemente o que descobrimos até agora. Vimos que, se investigarmos um objecto vulgar, do género que os sentidos conhecem, o que os sentidos imediatamente nos dizem não é a verdade acerca do objecto em si mesmo, mas apenas a verdade acerca de determinados dados dos sentidos que, tanto quanto podemos ver, dependem das relações entre nós e o objecto. Por consequência, o que vemos e sentimos directamente é apenas uma «aparência», que acreditamos ser o sinal de uma «realidade» escondida. Mas, se a realidade não é o que aparece, temos maneira de saber se existe uma realidade? E se sim, temos maneira de descobrir a que é que se assemelha?

Estas questões são desconcertantes e é difícil provar que não são verdadeiras mesmo as hipóteses mais estranhas. Assim, a mesa, que até agora só provocou em nós pensamentos triviais, tornou-se num problema com muitas e surpreendentes possibilidades. A única coisa que sabemos a seu respeito é que não é o que parece. Até agora, além deste modesto resultado, temos toda a liberdade para conjecturar. Leibniz diz-nos que é uma comunidade de almas; Berkeley uma ideia na mente de Deus; a ciência, não menos maravilhosa, uma vasta colecção de cargas eléctricas dotadas de movimento violento.

No meio destas possibilidades surpreendentes, a dúvida sugere que talvez não exista nenhuma mesa. Embora a filosofia não possa responder a tantas questões quanto desejaríamos, pode colocar questões que tornam o mundo mais interessante e mostram o estranho e maravilhoso que existe mesmo nas coisas mais vulgares da vida quotidiana.

Bertrand Russell
Tradução de Álvaro Nunes
Texto retirado de The Problems of Philosophy (Oxford University Press, 1912).


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Linda Foto de Santa Eugénia,
Melhor, da Capela de Santa Barbara.

Santa Barbara e Cabeço do mesmo nome.
capelasantaeugenia.jpg
Guardai-me e guardai esta aldeia.

intelectu
Intelectu no 6 - Dezembro de 2001
artigos

Problemas de Identidade Pessoal (1)
Sofia Miguens


Resumo: O objectivo deste artigo é mostrar que debaixo da expressão 'problemas de Identidade Pessoal' caem questões de ordem muito diferente: questões cognitivas, questões metafísicas e outras questões a que se chamará questões narrativas (psicológicas, sociais, artísticas, etc). Pretende-se distinguir o mais claramente possível o âmbito de cada uma destas questões, uma vez que o facto de elas serem frequentemente agregadas produz mais um problema (desnecessário) da Identidade Pessoal.

1. De que falamos quando falamos de Identidade Pessoal: a natureza do problema da Identidade Pessoal, a importância do problema da Identidade Pessoal.

Para que serve falar de identidade? (2) Antes de mais, falar de identidade serve para saber exactamente de que se fala. Falar-se-á aqui de Identidade Pessoal (IP), i.e. daquilo que faz com que uma particular pessoa seja essa pessoa e a mesma pessoa ao longo do tempo. Quando se fala de Identidade Pessoal não se está portanto a falar de identidade no sentido formal, lógico-matemático, caso em que a identidade é uma relação pela qual por exemplo A=A, mas, antes de mais, de um processo cognitivo, um processo de reidentificação do mesmo como o mesmo.

Saber que mesmidade é essa que é reidentificada e o que é isso que a reidentifica é o núcleo do problema, já que tudo leva a crer que não existe aí um 'simples' à espera de ser identificado (ou de identificar). Usualmente a reidentificação efectuada é reportada a uma continuidade existente: quando se fala de Identidade Pessoal fala-se de critérios de Identidade Pessoal e a continuidade é habitualmente o primeiro critério avançado, seja a continuidade física (a mesmidade de um corpo físico ou de uma parte suficiente deste, por exemplo, de um cérebro) seja a continuidade psicológica (a continuidade da vida mental a partir de dentro, para um determinado sujeito que recorda os sucessivos estados).

Mas desta forma apenas se dispõe os dados do problema. Como se verá, há tudo a ganhar na distinção clara de tipos e níveis de questões que se colocam em torno da IP. De facto, as questões da IP incluem:

1) questões cognitivas relativas ao auto-apercebimento (self-awareness), envolvendo aspectos como o auto-controlo, a memória, a introspecção, a propriocepção, etc, e relativas à auto-referência, nomeadamente a partir da instituição de uma auto-representação linguística explícita (o Eu) que possibilita um certo tipo de centração e de unificação em sistemas cognitivos nos quais ao nível do hardware, nenhuma unificação ou centralização 'existe'
2) questões metafísicas relativas à natureza de pessoas, ao tipo de entidades no mundo que são as pessoas
3) questões narrativas relativas ao relato autobiográfico de si ao longo do tempo, à constituição sempre mais ou menos ficcionalizada que é uma parte importante da psicologia das pessoas bem como às fontes e materiais deste relato.

Outras questões ainda, como as relativas ao sentimento de si, à consciência fenomenal e à racionalidade auto-consciente a que se pode chamar 'pensamento' são difíceis de situar: não é por exemplo simples decidir se se trata de questões do primeiro tipo, do segundo tipo, ou de ambos. No entanto, todas estas questões têm a sua parte no problema da natureza da IP, frequentemente aparecendo 'cruzadas' na literatura relevante.

A distinção aqui proposta (entre sub-questões cognitivas, metafísicas e narrativas da questão da IP) tem como objectivo o esclarecimento conceptual, embora em muitos casos (ou em todos) este apenas seja possível mediante investigações empíricas. A grande importância que a questão da IP assume decorre, no entanto, de uma outra ordem de razões que não o mero desejo de esclarecimento conceptual. De facto, a concepção da IP tem fortes repercussões práticas (morais, legais). Em concreto e de forma esquemática, considerando por exemplo a grande divisão de opiniões quanto àquilo que, do ponto de vista metafísico, é uma pessoa, temos que de um lado existem posições gradualistas e reducionistas segundo as quais uma pessoa não é algo desde logo determinado, um facto a mais - posições como as de John Locke, William James ou, hoje, Derek Parfit - e do outro lado posições absolutistas, segundo as quais ser uma pessoa é algo de determinado, específico, absoluto, um facto a mais. É o caso das posições defendidas pelos filósofos escoceses Joseph Butler e Thomas Reid, que no século XVIII se opuseram à concepção lockeana de Identidade Pessoal, da posição defendida por Kant, na sua filosofia moral, e até de certo modo da posição defendida hoje por Donald Davidson (3). É também, como é evidente, o caso das posições de matriz religiosa que prevêm a existência de uma alma imaterial individual. De acordo com as posições a que se está a chamar 'absolutistas' e que ligam usualmente ligam de forma estreita as noções de 'humano' e de 'pessoa', uma entidade que é uma pessoa é sempre e em todas as circunstâncias uma pessoa, havendo algo de essencial na qualificação. Em contrapartida de acordo com posições gradualistas e reducionistas, é possível por exemplo, no limite, que existam indivíduos humanos que já não são ou ainda não são pessoas, indivíduos que não são humanos mas são pessoas, indivíduos que começam por ser biologicamente humanos, têm os seus materiais substituídos progressivamente e continuam a ser a mesma pessoa. Como é óbvio, a opção por uma das posições constituirá fundamento para decisões práticas muito diferentes.

Uma palavra quanto a método. O tratamento da questão da IP na filosofia da mente nas últimas décadas faz frequentemente apelo, como já Locke fazia no Ensaio sobre o Entendimento Humano, a casos imaginários variados. Dada a frequências dos pressupostos funcionalistas (de acordo com os quais a matéria de que um efeito é feito - no caso o efeito é ser uma pessoa e o material é por exemplo uma determinada organização físico-biológica - é secundária no que diz respeito à natureza da entidade resultante) não são raras situações de quase ficção científica, em que se experimenta por exemplo sobre a ideia de padrões de mentalidade pessoal armazenáveis e replicáveis, sobre transplantes de cérebros ou partes de cérebros, sobre casos de 'espalhamento da implementação' dos padrões mentais que constituem uma pessoa (por exemplo a outras escalas que não as correspondentes aos corpos e orgãos humanos). Encontram-se casos de reimplementação dando lugar a uma espécie de imortalidade materialista, casos de indistinção entre cópias e originais dos padrões da mentalidade que mostram a irrelevância da distinção entre natural e artificial, e muitas outras, frequentemente fantásticas, variações. Um lugar por excelência para encontrar experiências semelhantes é a obra The Mind's I, de D. Dennett e D. Hofstadter, um outro o livro Reasons and Persons de Parfit(4). Os exemplos poderiam no entanto multiplicar-se. Evidentemente, as críticas à relevância do método dos casos imaginários são também frequentes na literatura. Mas, precisamente, admitir ou não admitir à partida o método dos casos imaginários traduz já compromissos teóricos quanto àquilo que no mundo são mentes e pessoas e quanto á forma como as questões da IP devem ser pensadas.


2. Questões cognitivas

À medida que vamos sabendo mais acerca das condições de auto-apercebimento, auto-referência, auto-representação e auto-consciência em sistemas cognitivos físicos, é muito provável que concluamos que não é nada simples ligar aquilo que nos sentimos ser (do que faz parte, de forma importante, para cada um de nós, por exemplo ser-um) como aquilo que sabemos cientificamente acerca do hardware e da organização funcional da região espaço-temporal causalmente responsável por isso que é fenomenologicamente, pra nós, 'sentir-se ser-um'. A própria característica de ser-um, embora central para o que cada nós acredita ser, é muito pouco garantida por várias razões. Não apenas porque não existe aí um centro físico real da actividade cognitiva (por exemplo um 'centro do cérebro'(5),) sendo o Eu que possibilita a unidade e centralidade da nossa auto-referência uma representação e um efeito de actividade neuronal acentrada(6), como também porque a nossa vida mental é intervalada (pense-se no sono, no sonho, na amnésia, na hipnose, na anestesia), a cada instante ela própria acentrada ('incluindo' apercebimentos não conscientes ou não unificados) e sempre mais ou menos cindida ou cindível (pense-se em esquizofrenias, paranóias, na desordem de personalidade múltipla, em casos de cérebro divido, de akrasia, de auto-engano e muitas outras patologias da IP). Derek Parfit imagina mesmo, em Reasons and Persons, situações de fissão definitiva, i.e. situações em que aquilo que é agora uma vida mental pode, no limite, vir a ser bifurcado (i.e. que aquilo que é hoje alguém seria de alguma forma psicologicamente continuado por duas pessoas diferentes). A experiência mental do teletransporte que 'não resulta completamente' porque a pessoa inicial - aquela que é 'copiada, transcrita e enviada para outro ponto do espaço - apesar de tudo permanece, paralelamente, é frequentemente utilizada como 'alavanca' para a imaginação desta situação de fissão (fazem-no por exemplo Dennett em The Mind's I e Parfit em Reasons and Persons(7)).

Tudo isto para dizer que, antes de abordar aspectos mais específicos das questões cognitivas da IP, é conveniente estarmos preparados para o facto de não estar garantida a coincidência entre a perspectiva de nós próprios a partir de dentro e a perspectiva que vamos progressivamente tendo, em terceira pessoa, acerca dos suportes físicos da cognição e da unidade e centração que neles e por eles se realiza, que pode deixar de se realizar ou sofrer transformações estranhas T. Nagel, por exemplo, há muito insiste que nada garante à partida uma tal coincidência(8).

Mas exactamente o que podemos saber 'do ponto de vista da terceira pessoa' sobre as condições da IP? Em primeiro lugar, que a questão da unificação e da centração do auto-apercebimento (self-awareness) é uma questão relativa à organização e às funções de um sistema cognitivo, uma questão que deve ser tratada abaixo do nível da consciência do indivíduo ou sistema em causa. É em grande parte deste modo, i.e. como questão sub-pessoal, que cientistas cognitivos como D. Hofstadter, M. Minsky ou A. Damásio e filósofos como D. Dennett ou O Flanagan consideram a questão da IP(9). As funções em causa são responsáveis pelo estabelecimento não apenas de um sentido de unidade do sistema para o próprio sistema como também pelo estabelecimento de um sentido de controlo do sistema por si, na sua globalidade e não apenas das/nas suas partes, o qual permite a acção global finalista e o comportamento dirigido por fins (goal directed behavior)(10). Tomando como referência o caso humano, o sentido de unidade, de controlo e a acção global finalista envolvem nomeadamente as seguintes condições:

1) Um certo tipo de auto-referência no sistema considerado como globalidade, possibilitado por uma representação(11) (o Eu). Um ponto central da teoria cognitiva da IP será portanto 'explicar o Eu' e os vários estratos deste (é o que faz cada um dos autores acima referidos).
2) Se o Eu permite a auto-referência num sistema cognitivo, convém não esquecer que o 'Eu' é apenas um indexical desconteúdado. Ora, há alguma coisa mais no auto-apercebimento do sistema, alguma coisa que tem a ver com os 'materiais' (mentais ou outros) que são referidos ao longo do tempo pela ocorrência do indexical. Por exemplo nos humanos a situação em foco assume, a partir da representação do Eu, a forma de uma narrativa centrada no Eu (na metáfora que Dennett vai buscar à física, o Eu é o 'centro de gravidade dessa narrativa(12)). Isto não significa que a narrativa seja o único material que o indexical Eu refere (a propriocepção, o sentir de sensações, o iniciar de acções são outros materiais)(13).
3) A existência de uma auto-representação, de um símbolo-de-si, permite a unificação, a centralização e a dotação global de finalidades pelo sistema a si próprio (aquilo que o sistema total deve fazer), a assim o sentido de alguma entidade ao comando dos comportamentos do sistema(14). Está-se assim perante uma unificação e uma centração de sistemas físicos que não são á partida ou desde logo unificados e centrados (enquanto corpos biológicos, nomeadamente, os corpos humanos são conjuntos de funcionamentos relativamente autónomos e independentes, e aqui incluem-se mesmo os funcionamentos cognitivos do sistema) cujo estatuto é preciso esclarecer. Uma proposta seria considerar que elas são virtuais (o que não significa irreais). Apenas essa unificação e essa centração permitem a existência das finalidades globais ligadas ao comportamento-dirigido-a-fins (goal-directed) e ao auto-controlo centralizado caracteristicamente humano.
4) Na medida em que a representação de unificação, que possibilita a auto-referência, embora sendo uma auto-representação, uma representação de globalidade e de unificação, é apenas mais uma representação no sistema cognitivo, na vida mental deste, está definitivamente instaurada nos sistemas nos quais existe essa representação uma cisão entre um ponto de vista subjectivo e um ponto de vista objectivador sobre si'(15).

A auto-referência provoca frequentemente paradoxos (pense-se em paradoxos célebres, como o paradoxo de Russell ou o paradoxo do barbeiro). Esses paradoxos provocam ciclos de auto-referência, anéis estranhos (strange loops, como diz Hofstadter(16)). Uma solução possível perante problemas gerados pela auto-referência é a instauração de uma distinção entre meta-linguagem e linguagem-objecto. No entanto, como é óbvio, a solução funciona apenas para linguagens que estão 'fora de nós' e que são de alguma forma são controláveis, nomeadamente as linguagens formais. Não nos podemos dividir a nós próprios dessa maneira, temos que 'viver em todos os níveis ao mesmo tempo' e portanto numa situação 'paradoxal' de auto-referência. De acordo com vários autores (por exemplo D. Hofstadter, M. Minsky, D. Dennett) a auto-referência e a interacção entre níveis no cérebro são em grande medida responsáveis por aquilo a que chamamos 'consciência' (pelo menos enquanto auto-apercebimento).

5) O auto-apercebimento não assume desde logo a forma do uso de um Eu em qualquer sistema cognitivo e nomeadamente nos sistemas cognitivos biológicos. Nestes, o Eu instala-se sobre uma propriedade de si-corpórea, tácita, que não é apenas humana e a que se pode chamar, como em psicologia e em biologia, self e que está ligada a algum tipo de representação não linguística do corpo. Como diria A. Damásio, a nossa mente é tal que tem o corpo próprio sempre em mente. É quando passa a haver o Eu que passa a ser possível uma auto-referência não tácita mas explícita, com apoio na linguagem(17). É no entanto importante notar que tal não significa que acontece uma passagem entre o self e o Eu que seja uma passagem para um saber que se sabe neutro, um Eu puro, um Eu-qualquer, uma consciência-de, que de um ponto de vista epistemológico seria neutra. Pelo contrário, a auto-referência possível quando o 'Eu' tem usos auto-conscientes, não se separa nunca de um fundo de representação de si. Por exemplo segundo Damásio esse fundo é essencial para a 'aparição da aparição'(18) (esta é de resto uma tese original, perante o problema da consciência, uma resposta à questão 'o que é que subjectiviza a mentalidade?', que deve ser comparada com posições funcionalistas mais ortodoxas, como por exemplo as de D. Dennett ou de B. Baars(19)).

Até aqui referiu-se alguns dos problemas cognitivos sub-pessoais relativos à condições de identidade de um dado sistema cognitivo, nomeadamente o auto-apeecebimento, a auto-referência, a unificação e a centração, a dotação global de finalidades, o relato narrativo de si, a relação entre esse relato e outros materiais que o indexical Eu refere, a cisão entre ponto de vista subjectivo e objectivo sobre si a partir do momento em que uma das representações do sistema é uma auto-representação. Estes problemas são problemas sub-pessoais e dizem respeito a uma 'forma' da vida mental humana que não é ela própria objecto de consciência(20). Ora, até certo ponto uma descrição fenomenológica (uma descrição pessoal, cujo objecto se considerará aqui consistir em algo como uma primeira pessoa generalizável) tem uma função análoga ao esboço de descrição cognitiva apresentado. De facto também ela, embora feita em primeira pessoa, ao nível do apercebimento consciente do sistema, pode pretender ser neutra relativamente aos conteúdos de uma vida mental específica. De modo a não incorrer em compromissos de escola procurarei as linhas de orientação de uma tal descrição fenomenológica em William James. O princípio é naturalista: conhecemos tão pouco e tão indirectamente a natureza da nossa mente como conhecemos pouco tudo o resto que através dela se nos apresenta. Por essa razão o inquérito acerca do mental, como todo o inquérito, inicia-se com uma recolha de fenomenologias, no sentido científico corrente. É aqui que se situa o problema a que vou chamar o problema de W. James(21): o que é ter uma vida consciente normal? Será que há uma resposta para essa pergunta? Será que isso é o mesmo em todos nós? A hipótese colocada pelo próprio James é que há alguma coisa que é ter uma vida consciente normal, uma estrutura fenomenológica universal (no sentido de ser comum a todos os humanos adultos conscientes, feita a abstracção das particularidades relativas a cada história mental). James chegou a algumas características dessa estrutura, nomeadamente as seguintes(22):

1) existe um fluxo de consciência, uma sucessividade de estados mentais (o que não implica a existência de um eu como uma coisa a mais, como o autor desse fluxo de estados nem a percepção de um objecto espécífico que seria o eu)
2) há aí uma adopção do passado (pelo menos imediato) pelo presente do fluxo, que estabelece uma continuidade. Esta adopção do passado pelo presente está ligada a um rastro de memória, i.e. há uma memória imediata que 'faz parte' do estar consciente, a que os psicólogos chamam memória de curto prazo. Esta memória de curto prazo é suficiente para estabelecer a continuidade do fluxo, mesmo que os conteúdos da memória de longo prazo se percam.
3) Mesmo que seja possível uma análise lógica dos conteúdos do fluxo, estes não se dão (pelo menos não são experienciados como tal) de forma atómica e composicional, ao contrário do que por exemplo o atomismo empirista clássico poderia pensar acerca das 'ideias'.
4) Ocorrem interrupções de pensamento e de sentimento. No entanto, é difícil saber se alguma vez ficamos/somos totalmente insconscientes, e também se aquilo que recomeça depois da interrupção é o mesmo fluxo,
5) Isso que ocorre (o fluxo, os pensamento, os estados de consciência) ocorre em eus pessoais, particulares, separados, é 'possuído' pessoalmente, em isolamento e privacidade relativamente a outras consciências ou eus.
6) Isso que ocorre (os estados de consciência) ocorre sob o modo de uma mudança constante de conteúdos
7) Isso que ocorre aparece como contínuo e continuado, i.e., mesmo quando há intervalo a união parece ser retomada, e as mudanças qualitativas nunca são totalmente abruptas (nas palavras de James "it feels unbroken"(23) e não "jointed" ou "chopped up in bits")
8) Isso que ocorre envolve não apenas conteúdos explícitos mas também margens (os termos usados por James são fringe, psychic overtone). Noutras palavras, há um halo de relações que envolve os conteúdos, i.e. 'ressonâncias inarticuladas' são parte integrante de cada vida mental.
9) O Eu é um modelo da vida mental na própria vida mental. Isto significa que não há aí um eu 'anterior' à vida mental (James propõe que os pensamentos são eles próprios os pensadores(24)).

Mudando de perspectiva e passando para a filosofia da mente contemporânea de modo a estabelecer o ponto que aqui se pretende, é fácil verificar que a intenção de um modelo da consciência como por exemplo o Modelo dos Esboços Múltiplos de D. Dennett(25) é fazer a articulação entre as funções, os mecanismos cognitivos sub-pessoais, considerados de um ponto de vista funcionalista e a fenomenologia, mostrando assim que o abismo nageliano entre a fisiologia e a fenomenologia(26) pode e dever ser preenchido. Esta pretensão é totalmente independente por exemplo do tratamento dos qualia por Dennett (um tratamento objectável por inúmeras razões e sobretudo por assentar numa petição de princípio quanto à consciência fenomenal). Mas de resto, este modelo, ou outro com intenção semelhante, diz respeito a um coeficiente específico de 'conteúdo' da forma humana de ser consciente que é devido a condições cognitivas sub-pessoais. Evidentemente, ao mesmo tempo modelos deste tipo ilustram as articulações onde podem instalar-se patologias da consciência.

Note-se que relacionando o primeiro ponto (a descrição sub-pessoal de uma mecânica do auto-apercebiemento, da auto-referência, do controlo centrado de si, num sistema que funciona como se fosse unificado e centrado) com o segundo ponto (a caracterização da fenomenologia) destas questões cognitivas obtém-se por exemplo que o problema do estatuto do Eu no fluxo da consciência é um problema específico dentro do problema geral da vida mental. Por exemplo de acordo com o Modelo dos Esboços Múltiplos de Denett a representação de unididade centração e controlo tem um estatuto virtual. Realidade virtual não é irrealidade, e a realidade virtual do Eu resulta de um auto-apercebimento (o que mostra que ao contrário do que é nomralmente dito, inclusive pelo próprio Dennett, o MEM não põe totalmente de lado o Teatro Cartesiano na concepção da mente: o Modelos dos Esboços Múltiplos não pode abdicar do auto-apercebimento (self-awareness com uma forma específica), o que não significa de modo algum inocorrigibilidade epistémica no acesso aos conteúdos conscientes. Esta ideia acerca de uma unidade virtual que apoia o sentido de controlo centrado, o sentido da agência, e que pode claramente não ocorrer de 'forma normal' dando origem às várias desordens da mesmidade pessoal, com as despossessões e des-unidades observações de si como outro, etc, que estas envolvem, é uma ideia de ciência cognitiva e que deve ser avaliada como tal.


3. Questões metafísicas: Locke, Descartes, Hume, Kant, Parfit e as pessoas.

Vou partir do princípio de que a questão metafísica da IP não é uma questão sub-pessoal acerca de modelos cognitivos nem directamente uma questão sobre como é, fenomenologicamente, sentir-se ser. O que está em causa na questão metafísica é saber que tipo de entidades no mundo são as pessoas. Por vezes a questão assume a forma de procura da marca distintiva desse particular tipo de entidades, dos traços pelos quais elas podem ser reconhecidas. Têm sido propostos traços tais como a auto-consciência, a vontade livre, a existência de estados mentais que são acerca de outros estados mentais(27), a existência de volições de segunda ordem(28) (i.e. a possibilidade de se determinar a querer ou não querer aquilo que se deseja). Sempre subjacente à discussão está evidentemente o confronto entre as concepções a que no início deste artigo se chamou concepções absolutistas e concepções não absolutistas de pessoa. Vale a pena fazer uma digressão histórica de modo a procurar compreender a partir de J. Locke o que se entende por pessoa de um ponto de vista metafísico numa concepção não absolutista, já que Locke é uma referência (absoluta...) nesta discussão.

Essencialmente Locke pensava que a Identidade de uma pessoa não consistia nem na identidade de uma entidade imaterial (uma alma) nem na identidade de um corpo animal (humano), mas sim na mesmidade de uma consciência ao longo do tempo, i.e. na continuidade psicológica, na ligação e sucessividade do acontecer mental através da memória. Isso permitiu-lhe fazer uma distinção, muito influente de então para cá, entre 'humano', uma classificação de espécie biológica aplicada a determinados indivíduos, que não são chimpanzés ou babuínos, e 'pessoa', termo que nomeia algo de mental. Segundo Locke, o termo 'pessoa' nomeia um ser pensante e inteligente que possui razão e reflexão e que é capaz de se considerar a si próprio como si próprio e como uma mesma entidade pensante em diferentes tempos e lugares (Ensaio Sobre o Entendimento Humano, Livro II, xxvii, 9)(29). A isto Locke acrescentava que 'pessoa', ao contrário de (ou por contraste) com 'humano' é um termo forense, que avalia acções e o mérito destas e que pertence ou se aplica apenas a agentes capazes de lei, felicidade e infelicidade (as palavras de Locke são 'law, happiness and misery').

Como se notou no início do presente artigo, é claro que a preocupação especial com o que são pessoas é em grande parte devida ao envolvimento da noção em práticas jurídicas e morais (por exemplo apenas faz sentido considerar uma pessoa responsável por um crime se ela recorda tê-lo cometido). Aliás, no caso de Locke havia também um agenda teológica, relativa a responsabilidade e ressurreição. Sublinhe-se que Locke não rejeitava a existência de uma substância imaterial 'em cada pessoa', discernida por ser 'o-que-pensa' quando existe pensamento. O que Locke rejeitava era que 'ser uma mesma pessoa ao longo do tempo' requeresse a identidade de uma substância imaterial, i.e. que fossem necessárias almas para explicar a Identidade Pessoal. Se a consciência fosse identificada com a alma e com a nossa essência, essa essência poderia estar ausente (por exemplo durante o sono) e de acordo com Locke essa concepção era indefensável, pois a ausência da essência de uma entidade tornaria impossível que essa entidade continuasse a ser a mesma entidade.

Os críticos contemporâneos de Locke, por exemplo J. Butler e T. Reid criticaram na teoria lockeana por um lado aquilo que entenderam ser uma circularidade (se o critério da IP é a continuidade psicológica, a memória, esse critério é circular, pois cada indivíduo recorda apenas as suas próprias memórias), a possibilidade de transferência de consciência de um corpo para outro corpo, e a possibilidade de interrupção da identidade quando a memória é perdida (uma pessoa que não se recorda de episódios biográficos seus não é a mesma pessoa).

É verdade que a concepção lockeana de pessoa tem algo de nominalista: por exemplo e ao contrário da noção lockeana de pessoa o cogito cartesiano garante a cada indivíduo consciente imediatamente a 'essência de pessoa'. Em contrapartida, a essência consciente do cogito cartesiano não parece deixar grande espaço para distinguir os indivíduos uns dos outros - afinal, se a essência do ser pensante é a consciência, o que nos separaria fundamentalmente uns dos outros enquanto pensantes, o que individuaria a nossa essência pensante? A definição cartesiana de mente como consciência, i.e. como substância distinta do mundo físico, não espacial, que tem uma relação especial com as ideias (definidas como algo que está de tal modo na consciência que é imediatamente apercebido) no seio de uma metafísica trissubstanciaista é origem de um problema grave para a IP, um problema que terá que ser resolvido na antropologia cartesiana, dando razões para a individuação de algo que não teria por que, aparentemente, por essência, ser individuado. Por definição substância é o que pode ser pensado separadamente, pensado por si, enquanto sendo de uma natureza específica. Ora, o facto de a natureza de pensamento poder ser pensada separadamente não faz dela pensamento individuado. O resultado do cartesianismo é portanto não apenas a desnaturalização da consciência e a instauração de uma descontinuidade abrupta entre consciência e não consciência, como também uma certa desindividuação do mental enquanto consciência. A partir da definição de mental como consciência imaterial basta um passo até à ideia segundo a qual o espírito poderia existir não apenas sem o corpo como também sem as paixões derivadas da união com o corpo, podendo em última análise e idealmente o espírito ser consciente sem sentir (a intelectualização da noção de mente é além do dualismo um dos erros de Descartes(30)). O problema seria saber se esse espírito seria ainda individual, pessoal. De acordo com Descartes, apenas as ideias e as vontades, que não são provocadas por nada de exterior à consciência, são modos puros da res cogitans. E do ponto de vista metafísico está dada a última palavra quanto à natureza do espírito. Alguma coisa tem que ser feita no entanto para reintroduzir a individuação do pensamento e essa é uma tarefa para a antropologia cartesiana, em torno da ligação de uma alma a um corpo próprio, da teoria das paixões (nas Meditações sobre a Filosofia Primeira o 'mergulho no mundo' da 6ª Meditação, após a descoberta da essência do espírito e da essência da matéria, constitui um pontos focais para a procura da individuação do espírito). No entanto, e apesar da antropologia da mistura corpo/alma e da justificação da natureza composta do humanos por um propósito prático(31), de acordo com os princípios da metafísica cartesiana a individuação do espírito não pode senão ser muito pouco essencial (dir-se-ia aliás que toda a antropologia não pode senão ser muito pouco essencial para Descartes)(32). Essencial é unicamente a característica de ser pensante do ser pensante, ligada à imaterialidade, que nada individua necessariamente, do cogito.

Se Locke é a referência das discussões sobre IP, Descartes é o alvo da maior parte dos ataques, que se dirigem não à particular solução cartesiana do problema da individuação das pessoas na sua antropologia mas sim aos 'Egos Cartesianos'. Os Egos Cartesianos, puros e imateriais, são o inimigo imaginário das discussões filosófica contemporâneas da IP. Se Egos cartesianos existissem, eles seriam:
1) distintos por essência de um corpo no mundo mesmo que a ele estivessem ligados
2) separados e individuados como objectos físicos, embora de natureza totalmente mental
3) suficientes só por si para explicar a co-personalidade das várias experiências e a unidade da consciência. Se eles não existem todo um programa de explicação que se abre que tem por finalidade explicar o que um ego cartesiano explicaria se existisse.

Farei apenas mais duas referências a textos clássicos, que comprovam nomeadamente o cruzamento da questão metafísica da naureza das entidades com a questão epistemológica (entendida como uma questão acerca do que é conhecido quando é conhecido um eu, uma estabilidade individual pessoal). Por contraste com o essencialismo imaterialista (e em última análise anti-individualista) cartesiano, e de forma semelhante a Locke, também D. Hume desenvolveu uma teoria tendencialmente reducionista da IP, afirmando de forma célebre que por mais que procurasse dentro de si não encontrava coisa alguma a que chamar um self, mas apenas percepções, sempre várias, variadas e mutáveis (Treatise of Human Nature, Book I, Part IV, VI, Of personal identity). De acordo com a visão humeana do Eu evasivo, nunca encontrado, uma pessoa é apenas uma série de experiências de alguma forma ligadas. Hume atribui como se sabe a estabilidade da identidade de cada ser pensante (como de resto a estabilidade de outras identidades no mundo) ao trabalho da mente, i.e. da imaginação. Uma pessoa pensada por si própria como entidade individual é assim para Hume uma ficção sobre um feixe de impressões. A primeira coisa a notar relativamente à agenda epistemológica do problema é que o estatuto cartesiano de privilégio do conhecimento de si (ao conhecer o espírito e no espírito conhece-se essências) desaparece imediatamente nestas circunstâncias humeanas. Sei tão pouco o que eu sou, o que a minha mente é, como sei pouco acerca do que o resto do mundo é. Hume merece nesse aspecto ser considerado como um precursor da abordagem a que hoje se chama abordagem naturalista do mental. Do ponto de vista do conhecimento, é isto que Hume tem a dizer sobre a IP: as ideias básicas são o feixe de impressões e a ficção de unidade. Do ponto de vista da acção, das paixões e dos sentimentos morais, a teoria assume outro aspecto, que não se desenvolverá aqui (33).

Da mesma forma que Hume, Kant defendeu que a razão humana nada pode demonstrar acerca da substancialidade da alma individual. Não é possível conhecer a alma como objecto. É no entanto uma fundamental e natural ilusão pensar que sim: tomar a simplicidade lógica do pensamento do eu por conhecimento de uma alma simples imaterial, imortal é para Kant, um exemplo de Paralogismo, de incorrecção de raciocínio, de raciocício que vai para além da experiência possível (Crítica da Razão Pura, Dialéctica Transcendental, Livro Segundo, Dos raciocínios dialécticos da razão pura, Cap.I, Dos paralogismos da razão pura, Primeiro paralogismo (da substancialidade)). Sendo, assim, evidentemente, o eu-penso que de acordo com a teoria do conhecimento kantiana acompanha todas as representações não é (à partida, desde logo, alguma vez ou tanto quanto a estrita teoria do conhecimento permite afirmar) uma alma-substância. A chegada à natureza de alma imortal e de liberdade que Kant supõe corresponderem a cada pessoa só pode portanto fazer-se por outro caminho, o caminho do pensamento moral, que parte da experiência do dever.

Transpondo para o nosso tempo a discussão acerca da metafísica da IP, tomar-se-á em seguida como referência uma das mais conhecidas e discutidas concepções reducionistas actuais da IP, a de Derek Parfit(34). Parfit defende o seguinte acerca de pessoas e de IP. Embora não sejam Egos Cartesianos, as Pessoas não são (no sentido identificativo de ser) corpos nem tão pouco séries de experiências (como um seguidor de Hume ou de Buda poderia defender). As pessoas têm corpos, pensamentos e experiências. Simplesmente, a existência de pessoas consiste na existência de um corpo e na ocorrência de eventos mentais e físicos inter-relacionados. Este é o núcleo do reducionismo constitutivo de Parfit. O reducionismo constitutivo acerca de pessoas opõe-se ao reducionismo identificativo e ao reducionismo eliminativo.

De acordo com o Reducionismo constitutivo acerca de pessoas (a posição de Parfit), Embora Xs (pessoas) sejam diferentes de Ys (corpos, eventos mentais e físicos), a existência de Xs simplesmente consiste na existência de Ys. Pelo contrário, de acordo com o reducionismo identificativo, o 'é' de identidade ou instanciação entre X e Y assinala que X e Y são uma e a mesma coisa, que tudo o que é verdadeiro acerca de X é verdadeiro acerca de Y, não havendo qualquer necessidade de distingui-los (por exemplo 'O cometa Haley é um pedaço de gelo'). Quanto ao reducionismo eliminativo, quando este é justificado, uma determinada entidade nomeada não existe: um exemplo frequentemente utilizado por Parfit é o do Americano Médio (average american), por exemplo em 'O americano médio tem 2 filhos'. O Americano Médio não existe, as asserções acerca do americano médio são asserções acerca de americanos particulares reais. Mas os casos em que a eliminação é a melhor forma de exprimir o reducionismo são raros. Por exemplo em relação à questão do reducionismo relativo a pessoas a possibilidade de eliminação coloca-se de forma muito diferente do que acontece com o Americano Médio. Parfit perguntaria por exemplo a alguém que falasse de constituintes últimos do mundo, em termos directamente ontológicos, à maneira de Quine, como relativos àquilo com que uma teoria se compromete 'E nesse caso você pensa que não existe?'. Parfit pensa que não tem sentido responder 'Sim, eu penso que eu não existo' pelo facto de seja quem for que fale decididamente não ser um desses constituintes últimos. De facto, de acordo com o reducionismo constitutivo de Parfit as pessoas definitivamente existem e é importante poder distinguir pessoas de corpos e de séries de experiências. O que interessa saber é como é que pessoas existem.

Utilize-se uma analogia. Num exemplo como 'A Vénus de Cellini é um pedaço de ouro' as insuficiências quer do reducionismo identificativo quer do reducionaismo eliminativo são visíveis. A estátutua, embora 'feita do ouro', consistindo em ouro, é distinta desse ouro em que consiste, o que faz com que seja uma entidade separada. A estátua e o ouro são distintas na medida em cada um/uma pode por exemplo 'durar' mais do que o o outro/outra (por exemplo derretendo o pedaço de ouro destrói-se a estátua mas não o ouro, e derretendo o ouro do interior da estátua, deixando apenas a superfície da estátua e substituindo o ouro interior por outro material, destrói-se o ouro mas não a estátua). O caso não é semelhante nem à identificação do cometa Haley com um pedaço de gelo nem à 'eliminação' do Americano Médio.

Note-se que pelo facto de considerar que pessoas existem de uma forma que não é propícia à eliminação ou à identificação com um corpo animal humano (ou parte suficiente deste) um reducionista constitutivo como Parfit não pretende imediatamente que as experiências requerem sujeitos, e que estes sujeitos ou pessoas ficam assim imediatamente provados. Precisamente, a intenção é oferecer uma teoria do tipo de entidades que têm corpos e experiências e nomeadamente explicar a unidade da vida mental destas entidades através do tempo, em lugar de a pressupor. Como se afirmou, Parfit pensa que pessoas são distintas dos seus cérebros e corpos mas não existem separadamente, como entidades independentes. A identidade de um pessoa ao longo do tempo consiste em algum tipo de continuidade física e/ou psicológica. Isto significa que a IP é distinta dos factos acerca destas continuidades mas não um facto independente. A partir do momento em que se decreveu todos os factos relativos a corpos e cérebros está descrito tudo o que há a descrever. Noutras palavras e assuminbdo e um ponto de vista epistemológico, descrever a existência de pessoas não é descrever factos a mais (further facts).

Como é de prever, a primeira coisa que preocupa Parfit na discussão da metafísica da IP é a especificação do 'consiste em', de modo a mostrar que a sua posição acerca de pessoas não é eliminativista (como já foi acusada de ser, nomeadamente devido à possibilidade prevista em Reasons and Persons de uma descrição impessoal dos factos(35), i.e. uma descrição do mundo tal como ele é em que não aparecem pessoas, em que as experiências são descritas como ocorrendo e não como sendo 'possuídas' por alguma entidade). Quando Parfit afirma que factos constituem outros factos quer dizer que determinados factos fazem com que determinados outros factos obtenham, de uma maneira não causal (o ouro do exemplo da estátua não causa a estátua). Com 'consiste em' Parfit quer, então, dizer: 1) ser necessário e suficiente para, 2) não haver mais factos (o que não significa que os factos descritos sejam os mesmos factos) e 3) uma dependência assimétrica (não relacionada com causalidade).

Várias consequências interessantes decorrem do reducionismo constitutivo de Parfit. Nomeio quatro:

1) Se este tipo de reducionismo é verdadeiro a IP de cada um de nós não é determinada (embora nós tenhamos a tendência irresistível a pensar que a nossa identidade é determinada, que por exemplo num instante de tempo futuro ou seremos ou não seremos esta pessoa) 2) A co-pessoalidade das experiências (noutras palavras, a unidade da vida mental) não é auto-explicativa. Parfit, repita-se, parte do princípio de que a unidade das experiências de uma pessoa e a unidade da pessoa ao longo do tempo não pode ser explicada adscrevendo essas experiências a uma unidade, unidade essa que seria a pessoa, pois essa unidade não pode ser pressuposta. A unidade tem que ser explicada evocando a forma como as experiências se relacionam entre si e nomeadamente o cérebro da pessoa em causa: é isso que significa afirmar que a co-pessoalidade das experiências consiste noutros factos. 3) Porque consistem noutros factos, a existência de pessoas e a Identidade Pessoal ao longo do tempo não podem por si ter efeitos 4) Uma (talvez) inevitável ilusoriedade da nossa auto-concepção: embora de um ponto de vista teórico muitas pessoas não estejam dispostas a afirmar que são Egos Cartesianos, elas não têm (nós não temos) outra maneira de pensar em si próprias a não ser como uma unidade e co-pessoalidade de experiências que se mantém ao longo do tempo. Assim, para Parfit o normal é termos crenças inconsistentes acerca da nossa natureza, fazendo constantemente suposições que o reducionismo proibe (nomeadamente supôndo que a nossa identidade deve ser determinada).

Note-se que nada nas posições de Parfit nos obriga a crer que pessoas sejam entidades conceptuais, que vêm à existência através do uso do conceito de pessoa. A existência de pessoas não é uma existência que dependa de conceitos, nesse sentido, a discussão de Parfit não é acerca de conceitos mas acerca do tipo de realidades que são as pessoas. Todas as consequências nomeadas são importante para a ética, nomeadamente como ponto de partida de uma ética não religiosa, ou pelo menos que não pressuponha a determinação e o suporte da IP, um tipo de ética que segundo Parfit, está ainda nos seus primórdios. Não se avançará aqui com análises das posições de Parfit acerca da metafísica da IP. Parfit pretende defender as suas teses perante outras posições reducionistas e prolongá-las no âmbito da teoria da acção. É suficiente notar que a questão metafísica da natureza das pessoas tem uma relação directa com a questão prática das razões para agir. Aquilo que as pessoas são ou não são importa quando se trata de agir racionalmente, em função de um cuidado ou preocupação (concern) tanto quanto possível justificado, ou pelo menos não auto-contraditório. Se a IP é bem menos básica e determinada do que aquilo que usualmente pensamos é posta em causa a racionalidade do egoísmo racional que é, de uma forma ou outra quase consssensualmente considerado como a pedra de toque da racionalidade na acção. Em Reasons and Persons a racionalidade do egoísmo racional como teoria da acção era já posta em causa (essa é de resto a articulação maior da questão das Pessoas com a questão das Razões para a acção em Reasons and Persons). De facto, a questão que se coloca é: porque é que havemos de estar especialmente preocupados com o nosso próprio futuro? Se de acordo com Parfit a IP consiste noutros factos, a sua importância é derivada e a porta fica aberta para a defesa da pertinência do ponto de vista impessoal do utilitarismo. A metafísica da IP é assim continuada por Parfit com uma filosofia moral, des-pessoalizada, assentando sobre a não importância (unimportance) da Identidade Pessoal.

Note-se que Parfit introduz uma inflexão importante na discussão da metafísica da IP ao desviar a atenção da natureza da IP para a importância da IP, perguntando abertamente: será que a IP importa? Por que razão cada um de nós há-de ter uma preocupação especial com o seu próprio futuro? O que é que faz com que sobreviver seja bom? Não será preferível pensar exactamente o que é que queremos que sobreviva? Mesmo se quase todos todos nós quase todo o tempo queremos, mesmo que obscuramente, continuar a ser, pode ser que isso não seja o que mais importa sobretudo se a natureza da IP não coincide com aquilo que normalmente e ilusoriamente dela pensamos. Por exemplo relacionando a continuidade normalmente evocada acerca da identidade, é fácil verificar que temos muito mais continuidade física com o corpo a que agora chamamos nosso do que aquela que nos importa, no sentido de a desejarmos (nomeadamente este corpo vivo é fisicamente contínuo com o nosso futuro cadáver, com os últimos fragmentos desagregados daquilo que hoje o constitui mas não parece que isso importe muito, talvez nem sequer para aqueles que esperam a ressureição dos corpos). Por outro lado a continuidade que importa persiste com menos do que a totalidade do corpo e mesmo com menos do que a totalidade do cérebro. É possível que também a continuidade psicológica seja menos importante do que o que usualmente pensamos. Assim sendo, dada a não importância da identidade (the unimportance of identity, como diz Parfit), aquilo que satisfaria uma pessoa como preservação daquilo que importa, aquilo que faria com que o futuro fosse bom, pode perfeitamente não coincidir com a continuação de si, pode ser bastante mais alargado, mais neutro. Em suma, pode haver um outro tipo de prolongamento daquilo que importa que não inclui a preservação daquele indidivíduo e a continuidade da sua vida mental. A questão acerca do que importa (what matters) seria assim bem mais básica do que a questão da IP, nomeadamente no que respeita a decisões quanto ao futuro pessoal e social.


4. Questões narrativas. Ser ou não ser um indivíduo: gastar palavras em idiossincrasias e contingências. O que é que (me) satisfaz.

Para além da Unidade e do Centro que pensamos ser, deixando em suspenso a questão acerca daquilo que metafisicamente somos (e que podemos não vir nunca a saber que somos), nós pensamos ser (de facto pensamos ter) uma história pessoal construída em torno de tal Unidade e de tal Centro. Uma história pessoal é uma narrativa, uma agregação mais ou menos estruturada do decurso de uma vida a que chamamos nossa e na qual somos a personagem principal. Esta narrativa não se identifica com o cérebro do corpo a que chamamos nosso, embora este seja causalmente responsável por mantê-la. Trata-se antes de uma criação que acontece sobre essa base. O Eu, que do ponto de vista cognitivo merece ser considerado uma centração virtual, é o 'centro de gravidade narrativo' de uma tal história, que é criada de forma involuntária, i.e. é causada por processos que não são eles próprios nem inteligentes, nem conscientes, nem voluntários, pois são de uma certa perspectiva processos sub-pessoais no nosso cérebro (tanto quanto sabemos aquilo que causa o nosso auto-apercebimento corpóreo e narrativo é um cérebro, no entanto esse saber será sempre indirecto: nunca vimos o nosso próprio cérebro e nunca o veremos sem mediações).

Na intersecção das questões cognitivas e narrativas da IP temos portanto a seguinte situação: uma pessoa diz 'Eu sou a Sofia' ou 'Eu sou o António' e essa pessoa é como uma máquina que escreve romances(36). É esta dimensão narrativa da IP e o problema dos materiais conceptuais da narrrativa que opera a ligação entre a questão cognitiva e a questão social, política, artística, etc, das 'identidades', pensadas como aquilo que define um indívíduo como sendo esse indivíduo específico, com determinadas características que o ligam por exemplo a comunidades e épocas históricas. Esta criação, que é de certo modo uma auto-criação, e que é, obviamente, um material importante de psicólogos, psiquiatras e outros profissionais da Identidade Pessoal, é o núcleo das questões narrativas da IP. Não se trata obviamente de uma criação ex-nihilo de algo de físicamente novo, mas da criação, sempre em curso, de uma narrativa de si, condição que é parte importante do facto de a IP não ser dada mas perseguida e conseguida ou não conseguida, num processo em que cada um se toma a si próprio como matéria susceptível de moldagem e de mais ou menos posse(37). É certo que esta forma de colocar a questão da IP tem relações complicadas com a questão metafísica da IP, que frequentemente tem por trás uma agenda epistemológica e metafísica 'descritivista' (i.e. trata-se de discernir aquilo que é, a natureza de algum tipo de entidade e não por exemplo de capturar o aspecto dinâmico desse tipo de entidade).

O estatuto da narrativa de si pode ser concebido de maneiras muito diferentes. Antes de considerar esquematicamente certas concepções alternativas do estatuto da narrativa de si procurarei caracterizar o teor da narrativa de si:

1) O sentido narrativo de si, a IP que cada tem que fazer para si próprio, traduz-se em grande medida num sentido idiossincrático daquilo que é importante e possível e que faz com que um Eu difira de outros eus. É em grande parte esse sentido idiossincrático daquilo que é importante e possível cuja extinção se teme quando se teme a morte (D. Parfit defende algo de semelhante, embora a sua concepção reducionista da IP lhe permita 'separar' 'aquilo que importa' do indivíduo e da extinção deste).
2) Evidentemente um tal sentido daquilo que é importante e possível provem de materiais vários, contingentemente disponíveis e que podem ser tomados por muitos eus. Daí que um outro aspecto presente nesta narrativa de si, ou que a condiciona, seja, utilizando a expressão de H. Bloom, a ansiedade da influência(38). Bloom aplica, como se sabe, o conceito de ansiedade da influência ao criador artístico original. No entanto, o conceito aplica-se identicamente à narrativa psicológica de si que estou a considerar. A ansiedade da influência é o temor de ser apenas uma cópia, uma réplica, o temor de que a originalidade e a individualidade (aquilo que se perde com a extinção daquilo indivíduo, daquele poeta, nos casos de Bloom) não sejam reconhecidas.
3) Impõe-se saber exactamente que originalidade é essa a que um indivíduo pretende, se nenhum indivíduo se cria totalmente a si próprio, a partir de zero. Este é o ponto em que as questões da auto-criação e do auto-consciência se cruzam, aparecendo a consciência dos limites da auto-criação, i.e. a consciência das razões pelas quais a auto-criação não é nunca total ou totalmente voluntária. Esta dimensão da IP é tratada na filosofia sob muitas formas. Dou apenas alguns exemplos: os limites da auto-criação são tratados por exemplo por T. Nagel(39) e por B. Williams(40) através do conceito de 'sorte moral' (moral luck), por H. Frankfurt através da análise das relações entre a liberdade e o conceito de pessoa(41), por Dennett através do reconhecimento dos limites cognitivos das escolhas morais(42) e através da ideia de condições de pessoalidade (conditions of personhood) 'normativamente' extraídas do funcionamento de Sistemas Intencionais(43), por Nietzsche através do reconhecimento da contingência inscrito na ideia de amor fatum, pelos vários existencialistas através das análises da liberdade, etc.
4) Em contraste com as dimensões cognitiva e metafísica, é ao nível das questões narrativas da IP que a questão da sua própria natureza é encarada pelo sujeito de forma directa (i.e. o sujeito lida com questões relativas à voluntariedade e compromisso com a sua própria identidade e racionalidade(44)). O tipo de auto-consciência ou auto-apercebimento (self-awareness) aqui em causa não é assim simplesmente o apercebimento de um si prévio, bruto, sub-pessoal ou a descoberta acerca de uma determinada natureza metafísica no mundo mas sim envolvimento prático da entidade que se sente e se pensa num dinamismo de auto-criação e de auto-avaliação(45).
5) A auto-avaliação que se joga na criação de si não é apenas uma avaliação kantiana ou utilitarista daquilo que se faz mas uma avaliação daquilo que é, uma dimensão frequentemente ocultada na filosofia moral pela exlusividade das análises deontológicas e utilitaristas. A avaliação forte, qualitativa ou reflexiva, na terminologia de C. Taylor(46), característica de seres que cuidam do seu ser, que o determinam e avaliam é uma das razões pelas quais as questões da IP não pode ser identificada exclusivamente por exemplo com a efectuação da continuidade, da unidade e da centração que são em grande medida uma questões mecânicas, sub-pessoais, despossuídas, nem com a avaliação associada ao ranking de preferências para o agente (suposto como já constituído). Charles Taylor desde há muito faz notar que a ausência de sustentação revelada pela contigência desta auto-criação e auto-avaliação é difícil de encarar (mas afirma também apenas a capacidade de a encarar essa ausência de sustentação possibilita as 'pessoas profundas').

Se a auto-criação não é feita a partir de zero, se os seus materiais têm origens e marcas, em grande parte saber o que é distinto e específico naquilo que se é é ter compreendido tais marcas na IP própria, dar um determinado estatuto à narrativa de si. Ora é precisamente nesse ponto que perspectivas filosóficas totalmente opostas se combatem. De acordo com a posição tomada será mais ou menos satisfatório para um indivíduo ser um indívíduo, (i.e. apenas um, apenas este, apenas alguma coisa que não dura muito tempo). Nomeadamente, de acordo com muitas perspectivas filosóficas (de resto muito diferentes entre si(47)) apenas o universal satisfaz.

De acordo com uma perspectiva - a que vou por conveniência chamar nietzscheana - da IP como auto-criação, a auto-criação do indívíduo tem a ver com contingências, resulta em algo que poderia não ter sido e exclui a cada passo o que não será e poderia ter sido. Pensar na auto-criação como intimamente ligada com o reconhecimento de contigências é considerar que ela não conduz ao conhecimento de uma 'lista universal do que é importante e possível para os humanos', nem a uma 'descrição única e verdadeira da condição humana'. Digamos que de acordo com esta visão, nenhum universal ou transcendência trará consolação, a única 'consolação' possível é precisamente a auto-criação. O auto-conhecimento não é assim uma descoberta da essência oculta do humano mas uma confrontação com a contigência própria. É isso (a recriação do acontecer num 'eu quis assim') de resto que cai sob o mote nietszcheano do Amor fatum.

Nada na forma nietzscheana de conceber o indivíduo enquanto narrativa pessoal de contingências nos impede de considerar os humanos são produtos da natureza, sujeitos à causação natural. Tudo o que é afirmado neste âmbito aplica-se unicamente à dimensão dos humanos enquanto animais narrativos. O âmbito destas descrições são exclusivamente os assuntos humanos e não por exemplo o que se passa nos cérebros desses animais do ponto de vista neurofisológico.

Assim, se de acordo com a perspectiva nietszcheana, a minha IP continua a ser o meu sentido idiossincrático daquilo que é importante e possível, este deve ser concebido como opondo-se a várias ideias. De facto a perpectiva a que estou a chamar nietzscheana opõe-se a

1) um 'desvelamento da essência universal de pessoa' em cada indivíduo, uma certa universalidade de características daquilo que é humano
2) uma ideia de expressividade, segundo a qual na criação de si se trataria de raízes, de descobrir e não de moldar e de fazer
3) um fim último para a espécie ou para a história, que se ligaria de resto ao auto-reconhecimento da essência do humano

Note-se que se existisse um fim último como o referido em 3), as contigências de uma vida particular não seriam importantes por si e em última análise a extinção individual não importaria. Se no entanto não existe um tal fim último a individualidade do indivíduo volta a importar.

De uma outra perspectiva, a que vou chamar estabilizadora, aquela que não encontra satisfação no indivíduo e à qual apenas o universal satisfaz, algo na IP passa por atingir a universalidade transcendendo a contingência, a particularidade de se ser apenas um indivíduo, apenas este, apenas agora (chegar a pensar, como diria F. Pessoa, "Aqui ao leme sou mais do que eu"...). De acordo com essa perspectiva estabilizadora, é possível exibir em pensamento universalidade e necessidade no individual e no contigente. Não é apenas um Hegel, por exemplo, que se deixa tentar por esta perspectiva estabilizadora perante a história. Também o importantíssimo filão kantiano da filosofia moral contemporânea a tem no seu centro. A verdade é que, limitando a discussão ao pensamento contemporâneo, pelo menos desde Kant e a partir do seu pensamento moral e estético, um intuito moralista e um intuito romântico se guerreiam a propósito da concepção não apenas da moralidade mas do estatuto do indivíduo e da história pessoal deste. Um breve desvio pela temática artística do novo e do génio facilmente mostraria uma certa exclusão que o pensamento moral de origem kantiana opera na problemática da IP, uma exclusão no entanto susceptível de desaparecer a partir por exemplo de interrpetações romãncticas do pensamento estético do próprio Kant.

Destacar-se de si, do passado e fazer-se, criar-se é, como é fácil verificar, uma temática não apenas psicológica mas artística, ligada às questões do novo, da originaldiade e da vanguarda e à concepção romântica segundo a qual aquilo que é mais humano no humano seria de alguma forma 'criador'. A importância da questão nas artes é óbvia e poderia assumir a seguinte forma: tem que haver algo de novo para fazer, para ser, são o que estou eu aqui a fazer? Mas esse algo de novo, se não há um fim último claramente definido (social, histórico), o que será? A decisão quanto à existência ou não existência de fim último, essência, verdadeira natuureza, direcção da história, determina se se considerará importante ou não 'gastar palavras ou outros materiais com idiossincrasias e contigências'. Repare-se de resto que muita da arte do século XX, nomeadamente correntes deflacionárias, minimais, cultivadoras da irrisão, parte da decisão de que é (afinal) importante gastar materiais com idiossincrasias e contigências, abdicando do lirismo associado a um pathos da universalidade, da essência e da expressão de uma 'verdadeira natureza'. O que interessa aqui notar é que na criação pessoal a questão é semelhante, que o que está em jogo a partir do momento em que se abdica do fim último é admitir que não há indivíduo humano paradigmático, que a IP narrativa é um tecido de contingências, quee qualquer coisa serve para cristalizar o sentido de IP de uma pessoa, que não há o desumano ou o contra natura nas variadíssimas histórias de vida dos humanos (ou pelo menos que nenhuma forma é descontinua relativamente a formas mais ortodoxos e centradas de IP - uma recuperação do 'nada de humano me é estranho').

É claro que a dimensão de auto-criação e de auto-avaliação ligada á IP e o seu peso moral são simplesmente ocultados quando se afirma de um indivíduo 'de um ponto de vista objectivo tu és isto: cérebro neste estado, coração neste estado, socialmente moldado desta maneira, ou quando se trabalha em teoria cognitiva, tratando os problemas listados no início deste artigo. A dimensão de auto-criação relaciona-se antes com uma questão sempre em funcionamento em cada indivíduo e que tem a forma 'Será que eu quero mesmo ser aquilo que sou?'(48) Ora, não apenas a questão está sempre em funcionamento em cada pessoa como duas respostas, sim e não, estarão provavelmente sempre a ser dadas. Ligar-se a si próprio, 'querer-se', comprometer-se consigo próprio, por um lado e destacar-se de si próprio, pensar que não se é apenas o já-sido estabilizado, nem nunca apenas exactamente 'isto' por outro lado são componentes inseparáveis do sentido de IP.

Em Contingency, Irony and Solidarity R. Rorty(49) ilustra o embate das duas concepções do estatuto da narrativa de si (a que se chamou aqui nietzscheana e estabilizadora) numa mesma pessoa com um poema do poeta inglês Phillip Larkin. Mais uma vez, embora num sentido diferente do de Parfit, está em jogo a importância ou não-importância da identidade. Uma pessoa é uma, é a sua história, a sua lista de coisas idiossincráticamente importantes. Mas em que sentido é importante ser um indíviduo, este indivíduo? Quanto é que ser isso, este e apenas este indivíduo, satisfaz o próprio indivíduo? Nomeadamente, o fim da pessoa é o fim da lista contingente que compõe o seu sentido idiossincrático daquilo que é importante e possível. E que isso desapareça importa? Bom, apenas porque (ou apenas se) se é isso ou se é ser isso que é importante. Eis uma nova versão da unimportante of identity de que falava Parfit, agora na versão narrativa, e não já metafísica, com uma centelha de lamentação por aquilo que seria ser mais e maior do que um mero indivíduo:

And once you have walked the length of your mind, what
You command is as clear as a lading list
Anything else must not, for you, be thought
to exist,
And what's the profit? Only that, in time
We half-identify the blind impress
All our behavings bear, may trace it home.
But to confess,
On that green evening when our death begins,
Just what it was, is hardly satisfying,
Since it applied only to one man once, a
And that man dying.
Philip Larkin

Quando se trata de conceber o estatuto do indivíduo e da sua história pessoal talvez não haja escolha possível entre o intuito moralista e a ambição da universalidade, por um lado, e o intuito romântico e a importância de ser este indivíduo para o próprio indivíduo(50). O objectivo do presente artigo era bem menos ambicioso do que aquilo que a exploração de uma tal questão requereria. Procurei apenas mostrar aqui algumas diferenças entre a questões 1) cognitivas, 2) metafísicas e 3) narrativas que usualmente comparecem na literatura relativa à Identidade Pessoal, enunciando as respectivas formas. Penso que qualquer investigação interessante acerca de Identidade Pessoal partirá de cruzamentos entre as três dimensões nomeadas ou mesmo da obliteração de tais distinções, uma vez que qualquer uma delas é só por si sintoma de compromissos teóricos de ordem vária.


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Notas:

(1) O presente artigo tem uma tripla origem: em primeiro lugar e antes de mais, ele tem origem no trabalho relativo à cadeira de Filosofia do Conhecimento, que leccionei na FLUP desde 1996/97 até 1999/2000 tendo como tema orientador o problema mente-corpo, no qual estava incluída a questão da Identidade Pessoal, tratada quer na filosofia da mente (em T. Nagel, D. Dennett, etc) quer em autores como Descartes, Leibniz, Hume e Kant. Em segundo lugar aparece a necessidade de ordenar materiais recolhidos e tratados por ocasião da frequência do seminário intitulado Metaphysics - Personal Identity do Professor Derek Parfit, na New York University, durante o Semestre de Outono de 2000. Não há aqui qualquer pretensão de exaustividade, uma vez que o Professor Parfit procurava nesse seminário refazer totalmente vários argumentos do seu livro Reasons and Persons (PARFIT 1984). Uma terceira origem deste texto, mais próxima e mais directa, foi a participação na Mesa Redonda de Primavera da SPAE (Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia), dedicada ao tema Identidade/Identidades, em Março de 2001, a convite do Professor Doutor Vítor Oliveira Jorge (Departamento de Ciências e Técnicas do Património/FLUP). (2) Este foi o primeiro desafio da mesa redonda referida na nota anterior. (3) DAVIDSON 1982, Rational Animals. (4) HOFSTADTER & DENNETT 1981. PARFIT 1984. (5) Esta é a razão pela qual por exemplo D. Dennett constantemente insiste, nas suas críticas à concepção da mente como Teatro Cartesiano numa crítica à noção de qualia, concebidos como propriedades incorrigivelmente conhecidas da experiência consciente própria (cf. DENNETT 1991). (6) Cf. DENNETT 1989, DENNETT & HUMPHREY 1989, DENNETT 1991, DENNETT 1992 (7) DENNETT, in HOFSTADTER&DENNETT 1981:3-7 e PARFIT 1984: 199-200, 75. Simple Teletransportation and the Branch-Line Case e em geral o Capítulo 10, What We Believe Ourselves to Be. (8) NAGEL 1979, Brain Bissection and the Unity of Consciousness. O exemplo de Nagel é o cérebro dividido (split brain). (9) Cf. HOFSTADTER 1979, MINSKY 1985, DAMÁSIO 1994, DAMÀSIO 1999, DENNETT 1991, FLANAGAN 1992. (10) Cf. MINSKY 1985. (11) Representação no sentido da ciência cognitiva, i..e estrutura no cérebro ou outro hardware que de uma forma ou outra segue (tracks) alguma coisa no mundo. (12) DENNETT 1991. (13) Cf. DAMÁSIO 1999, onde se faz uma interessante distinção entre proto-self, core self e extended self. FernandoGil (cf. GIL 2000) propõe uma distinção análoga. Uma das intenções de Damásio, (DAMÀSIO 1999) é distinguir as fundações neurobiológicas do self das fundações neurobiológicas do eu autobiografico. A representação de de si que cada um de nós tem teria assim uma versão totalmente inconsciente, ligada nomeadamente à representação do corpo e das várias partes deste no cérebro, uma versão-núcleo, o core-self, que inclui já aquilo a que Damásio chama (a acerca do qual avança uma explicação) um feeling of knowing e uma versão sofisticada, linguística, o extended self . Este último está ligado à reunião das memórias daquilo que acontece, permitindo uma consciência de si propriamente pessoal. Esta IP narrativa á de nível funcional e cortical mais elevado do que o proto-self e o core-self, no entanto estabelece-se sobre eles. (14) Como defende Minsky, essas são as funções que o Eu cumpre (MINSKY 1985, Chapter 4). O ponto comum às funções é permitir centração num sistema acentrado. Minsky propõe que talvez seja porque não há ninguém dentro da nossa cabeça que nos faça fazer as coisas que queremos, porque constantemente há desunidades, tensões internas, dissenções, que construímos o mito (cognitivamente fundamental) segundo o qual nós 'estamos dentro de nós'. Noutras palavras, uma das funções do Eu é permitir um (e um só) Ideal do Eu (Minsky fala de self-images, self-ideals), um auto-controlo global, uma moldagem de si estabelecendo uma mediação entre agentes cognitivos especializados. Outros aspectos da função do Eu seriam impedir-nos de mudar demasiado rapidamente e esconder de nós próprios a natureza dos nossos Ideiais do Eu (Cf. MINSKY 1985, 4.4. The Conservative Self). (15) HOFSTADTER 1979, DENNETT&HOFSTADTER 1981. (16) HOFSTADTER 1979. (17) Cf. DAMÀSIO 1999, a análise das diferença entre core consciousness e extended consciousness, e entre proto-self, core self e autobiographical self.. (18) DAMÀSIO 1999. (19) Cf. DENNETT 1991 e BAARS 1988. (20) De resto, e como áparte histórico, as questões dos níveis, aspectos e estratos da representação de si que são hoje tão importantes na filosofia da mente são questões com uma longa história na tradição psicanalítica, que as relaciona de forma importante com os afectos. Essa é uma dimensão que se perde quando a psicanálise é hoje (quase generalizadamente) posta de lado como pouco científica nas discussões da filosofia da mente e da ciência cognitiva. A questão do afecto é normalmente reintroduzida na teoria da mente por aqueles que nunca puderam deixar de a considerar (por exemplo os psiquiatras), ou via a neurociência (pense-se no trabalho de A. Damásio sobre o sentimento de si) e a neuropsicologia. (21) JAMES 1950 e JAMES 1961. (22) As descrições que se seguem são livres, não é minha intenção seguir exactamente os textos de James. (23) JAMES 1950: 238. (24) JAMES 1961: 83. (25) DENNETT 1991. (26) NAGEL 1979c. (27) DENNETT 1981. (28) FRANKFURT 1971. (29) LOCKE 1999. (30) DAMÁSIO 1994 (31) De facto, no contexto da 'reinstalação' do espírito no mundo na 6ª Meditação, Descartes evocará a fiabilidade da informação perceptiva e um sistema de manutenção do corpo que assegura a sobrevivência. Tudo isso funciona bem mas não é fonte de saber. Não se trata de fiabilidade epistemológica: nenhuma ideia corporeamente baseada é essencial à mente enquanto mente. (32) Descartes encontra-se perante um 'problema averroísta'. (33) A ideia de F. Gil segundo a qual a primeira evidência alucinada é precisamente a da nossa identidade (GIL 2000) é de certo modo humeana, no sentido de atribuir à identidade um estatuto de ficção natural. As análise de F. Gil têm ainda a vantagem de visar o aspecto afectivo da relação do eu com o eu, nomeadamente com a vida mental própria. Repare-se que devido à relação da IP com o tempo (a IP não é uma relação formal mas uma continuidade ou persistência ao longo do tempo) a IP, com toda asa ficcionalidade, virtualidade e indeterminação é funciona como uma barreira contra o fim, o que é evidentemente importante considerar quando se analisa a sua função afectiva, aquilo a que F. Gil chama a adesão a si. De facto, o contrário do que acontece com a identidade formal, na IP as questões do princípio e do fim importam. A história a que chamo minha começa e acaba, de uma forma que não tem paralelo com o destino de '7+5=12'. (34) Outros autores que discutem questões semelhantes são por exemplo Sidney Shoemaker, John Perry, Judith Thomson, Bernard Williams, Thomas Nagel, John McDowell, David Wiggins. (35) PARFIT 1984. (36) Cf. por exemplo DENNETT 1989, DENNETT&HUMPHREY 1989, DENNETT 1991 e DENNETT 1992. (37) É a este sentido de produção narrativa de si que nos referimos quando dizemos que a identidade 'faz-se, faz-se e nunca se vê nada pronto'. Este era outro dos temas organizadores da mesa redonda do Professor Vítor Oliveira Jorge. (38) BLOOM 1963. (39) NAGEL 1979. (40) WILLIAMS 1981. O conceito foi proposto por Wiiliams e no seu núcleo está aquilo que escapa à caracterização de uma situação moral como relativa a decisões racionais, como o carácter do agente e as circunstâncias da acção. Em geral, o conceito de sorte moral pretende chamar a atenção para o facto de que aquilo que alguém faz depende de factores que estão totalmente fora do seu controlo (por exemplo uma pessoa terá ou não cometido homicídio conforme a pessoa sobre quem disparou estivesse ou não a usar um colete à prova de bala). (41) FRANKFURT 1971. O núcleo da questão da 'relação entre a liberdade da vontade e o conceito de pessoa' reside nas Volições de Segunda Ordem. Estas são, segundo Frankfurt, fulcrais no conceito de pessoa. A ideia de Volições de Segunda Ordem pretende nomear a possibilidade humana de querer ou não querer aquilo que se deseja. Apenas nestas circunstâncias surge a responsabilidade pelo que se é e pelo que se quer. (42) DENNETT 1988. A consideração de todos os factores que pesam sobre uma decisão, implícita nas éticas da maximização, como o utilitarismo e o kantismo, é computacionalmente impossível. A limitação cognitiva, a impossibilidade de considerar todos os factores, é constitutiva da forma humana de decidir. (43) Cf. DENNETT 1981, Conditions of Personhood. (44) Estas são questões tratadas por teóricos quinianos do mental como Dennett e Davidson quando procuram caracterizar a auto-concepção e o auto-conhecimento. Cf. DENNETT 1981 e DAVIDSON 1982. (45) Separo as questões por razões analíticas. A questão não é, evidentamente, assim tão simples. (46) Cf. Por exemplo TAYLOR 1976. (47) Referi atrás o utilitarismo e o kantismo, por exemplo. (48) Vou considerar que este é o 'problema de Frankfurt' (FRANKFURT 1971). (49) RORTY 1989. (50) Está em jogo a possibilidade de encontrar ou não encontrar qualquer 'conteúdo emancipatório' na natureza dos indivíduos, dada a ligação deste 'conteúdo emancipatório' à presunção de universalidade e a uma certa teleologia (cf. MIGUENS 1999).

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A pena de morte
Desidério Murcho

O mundo ocidental vive no sistema judicial mais tolerante de sempre. A pena de morte foi banida da maior parte das sociedades democráticas, ou existe apenas como figura jurídica que nunca se aplica. Os movimentos contra a pena de morte ganharam a causa, a discussão acabou e vingou um certo senso comum que encara a pena de morte como um arcaísmo ultrapassado. Por tudo isto, não é de espantar que os argumentos contra a pena capital tenham adormecido à sombra da sua vitória.

Neste cenário bucólico caberia ao filósofo ultrapassar o senso comum e introduzir algum bom senso nesta matéria, recordando argumentos convincentes e recuperando a racionalidade do abolicionismo. Toda a gente ficaria satisfeita, inclusivamente o filósofo, e este seria o melhor dos mundos. Acontece, todavia, que isto não é assim. Bastam alguns momentos de reflexão para perceber que talvez o abolicionismo não seja tão fácil de defender como poderia parecer. E com mais um esforço podemos perceber que a pena de morte também não é facilmente defensável. Na verdade, bastam alguns momentos de reflexão para perceber que a justificação racional do castigo é um problema no mínimo intrincado.

Antes de prosseguir, devo esclarecer que não irei defender nem atacar a pena de morte para quem cometeu homicídio voluntário, nem mesmo premeditado. Quando nos dispomos a discutir a pena de morte, a reacção habitual é a de considerar que estamos a entender a sua aplicação aos homicidas. Não é isso, no entanto, que irei fazer. Esta discussão é prévia a essa outra. Saber a que casos se deve aplicar a pena de morte é uma discussão que só pode acontecer depois de se saber se a pena capital é eticamente defensável.

Assim, trata-se aqui de discutir a racionalidade da pena de morte em geral, ou da sua abolição. O que procuro saber é se existe pelo menos um caso em que estejamos dispostos a aceitar a pena de morte como eticamente defensável. Mas o ponto da discussão não é saber que caso é esse, mas se à partida, independentemente do caso, podemos defender ou não a pena de morte. Dito de outra forma, esta discussão vai no sentido de saber se podemos racionalmente abolir a pena de morte, por princípio, para todos os casos. Isto não significa, no entanto, que não usemos exemplos de casos, reais ou imaginados, para testar uma qualquer tese.

A discussão que se segue tem como horizonte próximo os artigos de A. Kostler, «The Folly of Capital Punishment» e E. van den Haag, «The Need For Capital Punishment». A discussão de Koestler e de van den Haag em torno da questão coloca-se no ponto de vista consequencialista: trata-se de saber, feito o cálculo final das vantagens e desvantagens, para onde pende o fiel da balança. Mas questão é discutida em termos ainda mais restritos: que efeito dissuasor tem a pena de morte? Koestler procura mostrar que não tem nenhum; Van den Haag procura mostrar que a questão é indecidível.

Os argumentos de Koestler são sobretudo de ordem histórica e factual: baseiam-se em estatísticas e em acontecimentos históricos. Os argumentos de Van den Haag são sobretudo lógicos e psicológicos: pretendem mostrar que as estatísticas não provam que a pena de morte não tem um efeito dissuasor, e que as pessoas em geral, e os criminosos em particular, são inconsciente ou conscientemente motivados por um cálculo consequencialista dos seus actos.

Devo agradecimentos a todas as pessoas que discutiram comigo este assunto. De algumas dessas conversas surgiram ideias que nunca teria tido sozinho.

2. O CÁLCULO DA DISSUASÃO

A discussão em torno do efeito dissuasor da pena de morte parece ganhar pontos a favor do abolicionismo. Antes de mais, o argumento histórico parece ser evidente por si mesmo. Quando a Inglaterra aboliu a pena capital para os casos de roubo, o roubo não só não aumentou como até parece ter decrescido. Este decréscimo, no entanto, é melhor argumento para aqueles que estão dispostos a argumentar contra a relevância das estatísticas. Na verdade, se não podemos aceitar que o crime por roubo aumente quando é penalizado com a pena de morte, também não podemos inferir, exactamente dos mesmos resultados, que ele diminui com a sua abolição. Se é estranho pensar que as pessoas roubam mais quando arriscam nisso a sua vida, também é estranho pensar que roubam menos quando não arriscam a vida. Assim, este decréscimo apenas serve os que afirmam a irrelevância das estatísticas.

No entanto, o argumento histórico estende-se aos inúmeros países que aboliram pura e simplesmente a pena de morte. Nestes países não se verificou nenhum aumento significativo da criminalidade, o que parece um bom argumento contra os que defendem a racionalidade da pena capital como elemento dissuasor. Assim, pareceria que condenar alguns criminosos à morte não traria nenhuma vantagem social, uma vez que não diminuiria o crime. Por outro lado, a possibilidade de erro judicial, que está sempre em aberto, aconselharia o abolicionismo. No cálculo geral das vantagens e das desvantagens, a pena capital ficaria a perder: não só não ajudaria a combater o crime, como poderia provocar algumas injustiças irreparáveis.

Quem defende a pena de morte em termos consequencialistas tem pois que negar as inferências que os abolicionistas retiram das estatísticas e da história. Estes argumentos têm que ser cautelosos, pois não podem permitir-se negar o valor geral das estatísticas, o que seria absurdo. Mas se concedermos a dúvida perante as estatísticas, então o argumento consequencialista é imediato: perante a incerteza do efeito dissuasor da pena de morte e perante a possibilidade do erro de justiça, a balança cai a favor do lado da pena de morte. Se condenarmos à morte não sabemos se estamos a salvar a vida de alguns inocentes (as possíveis vítimas do assassino dissuadido) ou não; temos a possibilidade de estar a salvar alguns inocentes e a possibilidade de cometer a injustiça de condenar a pessoa errada. Mas se não condenamos à morte não temos possibilidades de salvar os inocentes. Perante a certeza de nada fazer pelo bem social e a possibilidade de o fazer mas não o poder provar, a opção utilitarista é óbvia.

Será? Será assim tão óbvio? Se atentarmos um pouco mais verificamos que as coisas se complicam. Que acontece ao certo se não existir de facto nenhum efeito dissuasor na pena de morte? Acontece que temos a possibilidade de condenar uma pessoa inocente à morte. Ora, os erros jurídicos não são tão pouco frequentes como se desejaria que fossem. Estamos dispostos a arriscar a vida de inocentes em nome duma possibilidade dissuasória que pode não existir? Não podemos fazer como van Den Haag e declarar que entre a vida das futuras vítimas inocentes do assassino e a vida do condenado o cálculo do mal menor faz cair a escolha sobre o último. Em primeiro lugar, porque não podemos falar no plural num caso e no singular no outro porque estamos já a viciar os dados. Em segundo lugar, porque o que faz a diferença no caso do erro judicial é que o condenado é uma pessoa inocente. Assim, o cálculo não é tão claro como poderia parecer.

Chegados a este ponto, restaria discutir se vale a pena tentar negar o valor dos argumentos históricos e estatísticos. Por outro lado, os abolicionistas têm um argumento forte: imaginemos que se provava de forma clara que a pena de morte tinha um efeito dissuasor; aceitaríamos por isso condenar à morte. Mas, com os mesmos argumentos, não seríamos obrigados a aceitar a tortura caso se provasse o seu efeito dissuasor? Ou teríamos ainda a coragem de fazer o cálculo das vantagens e desvantagens? Quantos crimes seria necessário dissuadir para aceitarmos torturar um criminoso durante meia hora? Estas questões parecem mostrar que talvez o consequencialismo não seja o melhor ponto de partida para abordar este assunto.

3. O CÁLCULO DO CRIMINOSO

Por outro lado, a simples ideia de dissuasão talvez não seja muito clara. Podemos aceitar à primeira vista que as pessoas fazem uma espécie de cálculo da relação «vantagem obtida/risco possível» em alguns casos, como no das multas de estacionamento de automóveis. Mas é bizarro pensar que uma pessoa decida não cometer um crime grave, como um homicídio, porque faz o cálculo do risco que corre. Ou que decida não roubar um automóvel porque se arrisca a ser preso. Além de ser uma forma muito estranha de conceber o comportamento ético das pessoas, parece não tomar em consideração o bom senso que estas em geral têm. Por outro lado, se considerarmos que os criminosos, precisamente, não se regem pelo bom senso, não percebo como poderão fazer complicados cálculos utilitaristas.

Nenhuma pessoa com bom senso precisa da pena de morte para não cometer crimes graves, tal como nenhuma pessoa com bom senso precisa de multas elevadas para usar cinto de segurança no automóvel. Certamente que há pessoas irresponsáveis e aparentemente desprovidas de qualquer senso, e ainda menos do bom, mas duvido do alcance dissuasor das penalidades. O único alcance parece ser o de tornar essas pessoas ainda mais irresponsáveis, o que pode parecer irrelevante do ponto de vista consequencialista, mas não o é. De facto, o que se provoca é a propensão para que essas pessoas cometam transgressões à lei sempre que não estiverem a ser vigiadas. E mesmo que estejam a ser vigiadas, têm que o ser de uma forma constante. O automobilista sem bom senso faz 200 quilómetros sem cinto de segurança, e coloca-o apenas quando vê a polícia na estrada 200 metros à frente. Esta situação mostra que esse automobilista erra não só porque não toma a sua própria vida no cálculo que hipoteticamente fez, como erra ao pensar que tem tempo de pôr o cinto de segurança de cada vez que a polícia lhe surge na estrada.

Ora, quem vai cometer um crime grave começa por errar no cálculo primeiro sobre a possibilidade de ser apanhado e acaba por errar ao não perceber que é a sua vida que está em jogo. O resultado é que, se calcula de todo, calcula provavelmente mal. O efeito dissuasor é assim, se não nulo, pelo menos suficientemente ténue para não poder ser invocado como argumento a favor da pena de morte.

4. O CASTIGO

Procurei mostrar as dificuldades que se levantam se adoptamos o ponto de vista consequencialista e a ideia da dissuasão. A discussão, neste ponto, parece dar mais razão ao abolicionismo. Mas se abandonamos o ponto de vista consequencialista e a ideia da dissuasão, parece restar apenas o argumento que em geral se ouve sempre que se discute este assunto: o valor sem preço da vida humana. Acontece, porém que este argumento é pouco esclarecedor, se acaso é, de todo, um argumento. Na verdade, é costume os abolicionistas invocarem o valor da vida humana. Para eles o ponto em causa é que o criminoso é um ser humano e que, portanto, ninguém tem o direito de lhe tirar a vida.

Neste momento da discussão podemos perguntar se o ponto de vista de uma ética não consequencialista não oferecerá menos dúvidas. Neste caso basta alegar o princípio geral do valor da vida humana. No entanto, quem defende a pena de morte fá-lo exactamente porque preza a vida humana, nomeadamente, a vida dos inocentes que foram vítimas do criminoso. Se persistirmos numa ética não consequencialista e invocarmos o princípio mais geral de não matar seres humanos, então ficamos com os problemas que em geral se levantam nestas éticas e continuamos sem perceber qual é a racionalidade da nossa opção. Invocar um princípio geral que não é nada claro não clarifica nada.

Devemos talvez introduzir outro elemento além da dissuasão. A dissuasão não é certamente o nosso único objectivo no funcionamento dos tribunais. Se fosse, estaríamos dispostos a torturar os grandes criminosos se achássemos que isso podia evitar o crime. Deve portanto haver outros objectivos que pretendem ser alcançados quando condenamos alguém a uma pena qualquer.

Nos casos mais simples, faz-se justiça obrigando o ladrão a repor o que roubou. Mas não nos limitamos a fazer tal. Além disso ainda o condenamos, mesmo que a pena fique suspensa, a algum tempo de cativeiro. Porquê? Porque além de compensar a pessoa lesada pelo roubo, que é o mais elementar acto de justiça, estamos também interessados, para cumprir a justiça no seu aspecto mais completo, em castigar a pessoa que cometeu o crime. Qual é, no entanto, a racionalidade deste castigo?

5. CASTIGO E EDUCAÇÃO

Se castigar é unicamente a retribuição equilibrada de uma acção criminosa, então é difícil compreender a racionalidade do castigo. O arcaísmo «olho por olho, dente por dente» não parece fazer sentido; além de que ou é impraticável de facto ou conduz a injustiças óbvias. Não podemos prender um homem como Hitler e pretender retribuir-lhe o que ele fez nem podemos matar os filhos de um assassino que matou os filhos inocentes de um inocente cidadão. E ainda que estivéssemos preparados para tomar esta última opção, caso isso não implicasse uma óbvia injustiça, mesmo assim não teríamos conseguido qualquer tipo de retribuição racionalmente aceitável. O próprio facto da retribuição, só por si, não faz qualquer sentido: é pura vingança.

Neste ponto da discussão podemos interrogarmo-nos se, pura e simplesmente, o castigo fará sentido de todo em todo, isto é, se não será um arcaísmo que perdurou no tempo. Não será melhor pensar a justiça sem esse elemento arcaico? Esta é uma hipótese que estou disposto a aceitar, se me mostrarem que, nesse caso, ainda faz sentido falar de justiça. Ora, precisamente, tal não me parece possível. Todos concordarão que se nos limitarmos a exigir ao ladrão que reponha aquilo que roubou não estaremos a fazer justiça alguma. Exigimos castigo.

Podemos tentar compreender o castigo, sem cair em arcaísmos, admitindo que o seu sentido fundamental é a educação. Todos estamos dispostos a aceitar não só que faz sentido um pai castigar o seu filho, como esse castigo tem uma justa medida. Um pai castiga o seu filho de forma diferente quando este parte um objecto propositadamente, ou quando este decide bater no vizinho. Porquê? Porque o que está em causa é a educação do seu filho. O castigo tem o sentido positivo de lhe mostrar que existem coisas que não se devem fazer. E a sua aplicação só é justa se não perder o objectivo educativo de vista. O castigo deve ser proporcional face ao mal cometido.

Assim, podemos argumentar que a educação é o sentido do castigo. Como parece claro que a justiça não pode ser plenamente entendida sem o castigo, segue-se que nos casos em que a educação não é possível não podemos exercer justiça. Uma vez que os casos de pena capital ou prisão perpétua são precisamente, por princípio, casos de pessoas irrecuperáveis, não podemos tentar fazer justiça nesses casos, quer optemos pela primeira, quer optemos pela segunda pena. Estamos então condenados a conceber a justiça destes casos em termos de estrita dissuasão.

Mas se enveredamos pelo caminho da dissuasão não estamos já a pensar, verdadeiramente, em cumprir justiça. Estamos unicamente a tentar tirar o melhor partido possível de uma situação-limite. Mas usar a pena prescrita ao criminoso como dissuasão pode ser eticamente pouco defensável, se aceitarmos, como Kant, que no plano ético devemos tratar as pessoas como fins e não como meios. Mesmo que não aceitemos, à partida, a ideia de Kant, podemos ainda argumentar que tratar o criminoso como um meio para melhorar a sociedade é contraditório, uma vez que o criminoso pode sê-lo exactamente porque usou outras pessoas como meios para melhorar a sociedade, como é o caso dos terroristas políticos, ou como foi o caso de Estaline e de Hitler.

O que se passa é que a diferença é grande, uma vez que dum lado estão pessoas inocentes e do outro está um criminoso irrecuperável. Neste ponto da discussão poderíamos finalmente recolher as armas da argumentação e concluir que quando o criminoso é irrecuperável não há justiça possível. Neste caso restar-nos-ia reconstruir a discussão em torno do efeito dissuasor da pena de morte.

Acontece, porém, que há casos-limite em que não parecemos dispostos a aceitar o castigo como reeducação, mesmo que o criminoso seja recuperável. Por outro lado, podemos argumentar que não há, de facto, criminoso algum que seja irrecuperável. Mas estamos nós dispostos a devolver a liberdade a um homem como Hitler, depois de 10 ou mais anos de cativeiro, se soubermos que ele se tornou um distinto investigador em ética? Parece que não.

Recentemente, um grupo de veteranos franceses da guerra da Indochina descobriu com espanto que um dos conselheiros da guerrilha comunista, que torturava os seus prisioneiros de guerra, é agora um distinto professor na Sorbonne. Esse homem não só é hoje inofensivo, como pode até ser um bom investigador. Estamos dispostos a aceitar que o mesmo tivesse acontecido a Hitler ou Estaline, ou a um indivíduo que planeia com minúcia a morte de 10 funcionários de um banco para roubar dinheiro?

Estes casos parecem mostrar que não estamos dispostos a aceitar a recuperação de alguns criminosos, ainda que ela fosse possível. Mas se aceitarmos a ideia de que o castigo só tem sentido racional se tiver o objectivo de educar, parece que o sentido arcaico do castigo é inultrapassável, isto é, não estamos dispostos a cedê-lo nos casos-limite.

6. CONCLUSÃO

Que fazer então, nos casos-limite? Devemos condenar o criminoso a prisão perpétua com o argumento consequencialista de que a dissuasão pela pena de morte não funciona? Mas por que motivo não condenar à morte, se nestes casos, ainda que a reeducação fosse possível, não estamos dispostos a aceitá-la? A prisão perpétua parece ser apenas uma forma de indecisão: por um lado, não estamos dispostos a andar de metropolitano com um homem que matou milhões de pessoas inocentes, mas que foi castigado e recuperado; por outro também não queremos condená-lo à morte. Se não estamos dispostos a andar com ele no metropolitano, ainda que ele fique recuperado, parece mais coerente condená-lo à morte.

Desidério Murcho
Abril de 1991


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Sua Ex.ªo senhor Doutor António Mansilha