Curriculum e Trabalhos realizados | Acerca de Mim | Fotos | Meus Estudos | Fotografias | My Resume | Favorite Links | Contact Me
JNR

SANTA BARBARA
capelasantaeugenia.jpg
CABEÇO COM O MESMO NOME

Fontes do conhecimento

1.

«[ ...] Crê-se habitualmente que a existência de erros de percepção mostra que os nossos sentidos são falíveis, mas seria mais exacto dizer que o nosso juízo é falível. Na realidade os nossos sentidos não nos enganam: somos induzidos (com base nas nossas percepções sensoriais) a emitir juízos que posteriormente verificamos serem falsos; se tivéssemos suspendido o juízo - se não tivéssemos tomado o burro por um cavalo - não teria havido erro. O erro vem sempre do juízo, não da sensação. Tudo o que os sentidos podem fazer é dar-nos experiências que, por vezes, classificamos erradamente. Também é interessante observar que, quando cometemos um erro de percepção por causa de experiências sensoriais incompletas ou fragmentárias, são sempre as experiências sensoriais posteriores que nos levam a descobrir o erro. [ ...] Assim, o facto de existirem erros baseados em experiências sensoriais não mostra que temos de recorrer a algo que esteja para além da experiência sensorial; só mostra que necessitamos de mais experiência sensorial, e que se tivéssemos aguardado por ela não teríamos emitido o juízo errado.

Antes de poder ser considerada conhecimento, toda a experiência sensorial requer o juízo. As experiências sensoriais que se têm num certo momento não constituem conhecimento; primeiro tem que se julgar [ efectuar um juízo] que isto é uma cadeira, que isto é um livro, e assim sucessivamente. E é a proposição que é considerada verdadeira ou falsa; a experiência sensorial em si mesma não é verdadeira nem falsa: tem-se ou não se tem. Fornece a base para um juízo de percepção, mas por si mesma não é suficiente para constituir tal juízo. O papel do juízo na percepção passa facilmente depercebido porque em muitos casos só usamos conceitos como "cadeira" e "árvore", tão familiares que parece, quando efectuamos o juízo, que estamos somente a receber uma informação da experiência sensorial sem incorporar nenhum conceito. Mas pode-se mostrar facilmente que isto é falso quando temos casos um pouco mais complexos: "Oiço um Lincoln Continental que vem pela colina", pode alguém dizer; e outra pessoa com a mesma (ou muito semelhante) experiência acústica pode não a reconhecer como o som de um Lincoln Continental: não interpreta a sua experiência auditiva como experiência de um Lincoln Continental. Assim, para emitirmos juízos de percepção, não só temos de ser capazes de percepcionar, mas também de saber o significado das palavras e como aplicá-las ao que percepcionamos.

Até agora temos estado a falar só dos chamados "sentidos externos", aqueles através dos quais obtemos informação do mundo exterior. Mas também existem os "sentidos internos", que nos colocam em relação com os nossos estados internos (sentimentos, atitudes, disposições, dores e prazeres), assim como com as nossas próprias operações mentais como pensar, crer, perguntar. Nestes casos não possuímos órgãos dos sentidos; no entanto, estamos capacitados para enunciar certas proposições. Mas as únicas proposições que estamos capacitados para emitir são aquelas que versam sobre os nossos próprios estados internos: por exemplo, tenho uma dor de dentes, tenho sono, sinto-me doente esta manhã, estou a pensar nas férias do próximo verão, etc. Em todos estes casos, o facto de estarmos a sofrer a experiência em questão é a única garantia que possuímos ou necessitamos da verdade da proposição. Se tiver uma dor de cabeça, isso é tudo o que preciso para tornar verdadeira a proposição "tenho uma dor de cabeça". A proposição "tenho uma dor de cabeça" não versa sobre nada mais que a minha experiência actual, de modo que possuir a experiência é suficiente para tornar a proposição verdadeira. [ ...] »

 

2.

«[ ...] Mas a experiência dos sentidos não é a nossa única fonte de conhecimento. Se alguém nos perguntar "como sabe que 74 mais 89 é igual a 163?", não responderemos "olhei e vi", mas sim "fiz a conta". Recorremos ao cálculo, não à visão, à audição ou ao tacto. Chegámos à resposta por meio de raciocínio. O raciocínio é uma fonte de conhecimento, embora [ ...] "raciocínio" não seja o único sentido do termo "razão".

Uma pessoa raciocina quando utiliza certos enunciados como base para produzir outro enunciado ou outros enunciados mais; ou, por outras palavras, quando utiliza um ou mais enunciados, chamados premissas de um argumento, para inferir outro enunciado, chamado conclusão do argumento. Assim, usamos os enunciados "tenho mil e duzentos escudos no bolso" como base para inferir o enunciado "tenho menos de dois contos no bolso".

[ ...] O tipo de raciocínio mais familiar, que com frequência se toma como modelo de todo o raciocínio, é o dedutivo. Num argumento dedutivo a conclusão deve seguir-se logicamente das premissas; ou, por outras palavras, se as premissas do argumento forem verdadeiras, a conclusão deverá ser verdadeira. [ ...] A conclusão [ ...] está contida nas premissas no sentido de que é deduzível das premissas.

[ ...] Mas nem todo o raciocínio é dedutivo. Também argumentamos indutivamente: podemos conhecer a verdade das premissas, mas não saber ainda que a conclusão é verdadeira; as premissas proporcionam elementos de juízo para a conclusão, mas não elementos de juízo completos. Ou, por outras palavras, mesmo que as premissas sejam verdadeiras, não tornam a conclusão certa, mas somente provável, em maior ou menor grau.

[ ...] O raciocínio indutivo não passa sempre de "um, dois, três..." para "todos". Por vezes a conclusão não é acerca de todas as coisas de certo tipo, mas acerca de uma só coisa, ou desta coisa. Podemos argumentar:

Foi encontrado sangue da Susana nas roupas da Isabel.

Viu-se a Isabel entrar na casa da Susana poucos minutos antes da morte desta.

Encontrou-se a Susana com uma ferida de navalha no coração.

Depois encontrou-se sangue da Susana na navalha da Isabel.

Uma hora depois viu-se a Isabel a tentar evitar a polícia. Etc.

Logo, a Isabel matou a Susana.

Esta conclusão tem uma certa probabilidade com base nos elementos de juízo apresentados nas premissas. Mas pode não ser verdadeira: os dados são circunstanciais e todas as pistas podem ter sido colocadas por outra pessoa. Mesmo que a Isabel confesse o crime, não podemos ter a certeza de que é culpada, pois pode ter feito uma confissão falsa. Habitualmente, os jurados têm de dar o seu veredicto baseando-se na probabilidade; só desejam que o grau de probabilidade seja o maior possível (em casos de crime, " para além de qualquer dúvida razoável"). Mas, no entanto, a probabilidade não é certeza, e é muito difícil encontrar a certeza nestas coisas. Podia-se formular a questão de forma diferente e dizer que uma certeza, mas a proposição que é certa não é a de que a Isabel matou a Susana, mas sim a de que é provável, com base nos indícios disponíveis, que a Isabel tenha matado a Susana. Sem dúvida que a probabilidade é preferível à ausência total de elementos de juízo, e em inumeráveis situações da vida diária ela é tudo o que temos.

Que é que faz com que as proposições das premissas tornem provável a conclusão? Se uma das premissas fosse "a Isabel vestia um fato negro", isso não contaria como elemento de juízo em nenhum sentido, a menos que a pessoa que saiu de casa da Susana depois do assassinato tivesse sido vista com um fato negro. No argumento indutivo apoiamo-nos em certas leis da natureza. [ ...] As leis da natureza formulam certas uniformidades recorrentes no decurso da nossa experiência.»

JOHN HOSPERS, Introducción al análisis filosófico (tradução minha a partir do castelhano)


JNogueiraReis@sapo.pt

 

 
 
 
 
 
intelectu
Intelectu no 1 - Fevereiro de 1999
artigos


O que significa ser um céptico?
Sara Bizarro

"O Céptico é outro inimigo da religião, que naturalmente provoca a indignação de todos os teólogos e filósofos mais meditabundos, embora seja certo que ninguém encontrou alguma vez uma tal absurda criatura, ou conversou com um homem que não tivesse nenhuma opinião ou princípio relativo a qualquer assunto, quer de acção, quer de especulação. Isto gera uma questão muito natural: o que significa ser um céptico? E até que ponto é possível instigar os princípios filosóficos da dúvida e da incerteza?"

Enquiry, secção XXII, Parte I, §166

David Hume é tradicionalmente classificado como uma filósofo céptico e até mesmo irracionalista. Mas, o que significa ser um céptico? Neste ensaio vou tentar clarificar em que sentido é que Hume pode ser considerado um céptico e que tipo de cepticismo lhe pode ser coerentemente atribuído.

O ensaio está dividido em três partes. Na primeira parte começarei por caracterizar o cepticismo radical, que é a versão tradicional do cepticismo. Defenderei que este tipo de cepticismo, sendo auto-refutante e abstracto, não podia ser o defendido por Hume. Caracterizarei em seguida o cepticismo epistemológico, diferente do cepticismo radical (uma espécie de falibilismo). Defenderei que Hume é partidário de um cepticismo epistemológico moderado.

Na segunda parte tentarei caracterizar aquilo que se costuma chamar "o lado construtivo da filosofia de Hume". Perante o dilema (ou pseudo-dilema) céptico, ou seja, perante a não fundamentação dedutiva do nosso conhecimento comum, Hume propõe o hábito como sendo simultaneamente a origem e a explicação das crenças humanas básicas. Esta solução, também chamada de "solução céptica", pode ser utilizada por quem queira defender a interpretação irracionalista da filosofia de Hume. No entanto, esta defesa só poderá ser considerada se o hábito for tomado como um propensão subjectiva mais ou menos irregular, o que não é o caso na filosofia de Hume. Para sublinhar o carácter não subjectivo e universal do hábito apresentarei a definição que Hume dá do hábito como instinto e introduzirei a ideia de "sabedoria da natureza" como estando na origem dessa propensão universal.

Na terceira parte, tentarei mostrar como a ideia de um Hume céptico é incompatível com a ideia de um Hume anti-metafísico (má metafísica); como o temperamento científico de Hume dá indicação de que ele não é um céptico no sentido forte; e como o cepticismo não é um resultado da filosofia de Hume mas apenas um instrumento ao serviço tanto da vida comum como das novas ciências da natureza. Para mostrar isto será também necessário clarificar o conceito(s) de razão implícitos nesta discussão e descartar definitivamente a hipótese irracionalista.

 

I

O cepticismo radical é uma posição filosófica impossível de ser sustentada por duas razões. Por um lado, é auto-refutante porque qualquer versão dele que tentemos formular utiliza necessariamente processos racionais, processos esses que estão a ser postos em causa pelo próprio argumento. Esta ideia já pode ser encontrada no Enquiry quando Hume diz:

"Pode parecer uma tentativa muito estranha dos cépticos destruir a razão por meio dos argumentos e do raciocínio: no entanto é este o grande escopo de todas as suas inquirições e disputas" (E, XII, II, 124). (1)

Por outro lado, o cepticismo radical é uma posição que não pode ser adoptada por ninguém, pois, perante qualquer proposta céptica deste tipo, somos ainda obrigados a continuar a pensar. Por outras palavras, a única maneira de convencer as pessoas da validade de uma proposta deste tipo é dizer-lhes que pensem nela e, ao pensarem nela, estão inevitavelmente a nega-la. David Hume usa também um argumento deste género contra o cepticismo radical. Por exemplo, Hume ao comparar as propostas de um copernicano ou de um ptolemaico às propostas de um céptico diz o seguinte:

"Um copernicano ou um ptolemaico, cada qual apoiando o seu diferente sistema de astronomia, podem esperar suscitar uma convicção, que permanecerá constante e duradoura, no seu auditório. () Mas um pirrónico não pode esperar que a sua filosofia venha a ter uma influência constante e duradoira, no seu auditório" (E, XII, II, §128).

Hume vai ainda mais longe e defende que as propostas do céptico, se fossem levadas a sério, teriam como consequência inevitável o desaparecimento de toda a humanidade:

" toda a vida humana teria de perecer, se os seus princípios prevalecessem de maneira universal e permanente. Cessaria imediatamente todo o discurso e toda a acção; os homens ficariam numa total letargia, até que as necessidades da natureza, insatisfeitas, ponham fim à sua miserável existência" (E, XII, II, § 128).

Hume mostra, através destes dois argumentos, que o cepticismo totalmente impossível, pois se, por um lado, ele não pode ser avaliado sem se utilizarem os princípios que ele próprio põe em causa, por outro lado, ele nem sequer pode ser aceite, como que numa profissão de fé, pois isso levaria à extinção da espécie humana.

Assim sendo, parece óbvio que Hume não defendia (nem podia defender) um cepticismo radical. No entanto, isto não significa que Hume não defendesse nenhum tipo de cepticismo. Hume pode ser visto como defendendo um cepticismo epistemológico semelhante ao que hoje se costuma chamar de falibilismo. O cepticismo epistemológico questiona a eficácia da nossa capacidade para conhecer o mundo objectivamente, põe em causa a eficiência das nossas faculdades. Este tipo de cepticismo, ao contrário do cepticismo radical, pode ser coerentemente sustentado. Mas mesmo aqui podemos traçar vários graus de cepticismo epistemológico. Numa versão mais forte, a falibilidade das nossas faculdades é vista como inerente à condição humana e, como tal, inultrapassável. Numa versão mais fraca, a falibilidade é vista como apenas uma característica secundária das nossas capacidades cognitivas, que pode ser limitada se utilizarmos métodos adequados. O falibilismo de Hume parece seguir claramente a versão mais fraca de cepticismo epistemológico. Nas próximas secções espero tornar esta afirmação evidente.

 

II

Hume é por alguns considerado um céptico no sentido forte e um irracionalista por duas razões. Em primeiro lugar, ele usa de facto argumentos cépticos fortes na sua filosofia. Em segundo lugar, a solução que ele propõe perante esses argumentos cépticos parece, à primeira vista, ser irracionalista. Vejamos então como funcionam os argumentos cépticos no Enquiry e quais são as soluções propostas por Hume.

A ideia fundamental é a de que muitas das nossas crenças não têm uma justificação racional (o que significa para Hume aqui, não têm demonstração). Usando o exemplo mais conhecido (e para economia de metáforas):

"Que o sol não se há-de levantar amanhã, não é uma proposição menos inteligível e não implica maior contradição do que a afirmação de que ele se levantará. Por conseguinte, em vão tentaríamos mostrar a sua falsidade. Se fosse demonstrativamente falsa, implicaria contradição" (E, IV, I, §21).

Este exemplo pretende ilustrar como o nosso conhecimento acerca das questões de facto (o sol a nascer é uma questão de facto) se baseia exclusivamente na experiência. Assim sendo, não é possível refutar uma afirmação acerca de uma questão de facto recorrendo apenas à razão (o que significa aqui, por demonstração). O conhecimento acerca do mundo empírico tem de se basear na experiência e é nesse sentido que ele não se fundamenta "no raciocínio ou em qualquer processo do entendimento" (E, IV, II, §28). A tese de Hume é assim a de que as nossas crenças acerca do mundo empírico não são justificáveis através da razão (não são demonstráveis).

Hume mostra assim que as nossas crenças acerca do mundo empírico não são fundamentadas na razão (não podem ser demonstradas). No entanto, o facto interessante sublinhado por Hume é o de que nós temos de facto crenças acerca do mundo empírico. A pergunta que se segue é então: se essas crenças não têm origem na razão (não podem ser demonstradas), em que é que se baseiam? É ao tentar responder a esta pergunta que surge o dito "lado construtivo" da filosofia de David Hume. É-nos então sugerido que essas crenças comuns não têm origem na razão (faculdade pura que constrói demonstrações), mas sim na imaginação (faculdade que usa informação empírica nas suas construções). Este é o primeiro passo da "solução céptica".

A faculdade da imaginação pode ter duas funções essencialmente diferentes. Por um lado, ela pode dar origem a actividades fortuitas. Este é o caso da construção das crenças não básicas que dão origem a princípios mutáveis e irregulares. Por outro lado, a imaginação pode dar origem a crenças básicas e universais. Neste caso a imaginação, através do hábito ou costume está na origem destas crenças e cria propensões que não são subjectivas e particulares, mas sim objectivas e universais (comuns à espécie e essenciais à sobrevivência).

Por outras palavras a solução céptica consiste em apresentar a faculdade da imaginação, e não a da razão, como origem dessas crenças básicas. A faculdade da imaginação através do hábito, que também é chamado de instinto, é definida como uma certa propensão para formar ideias e crenças. A imaginação produz dois tipos de princípios: "princípios permanentemente irresistíveis e universais" e princípios "mutáveis, fracos e irregulares". Os primeiros regulam as crenças comuns básicas e é ao reconhecer isto que encontramos a solução céptica (2). Assim, podemos concluir sem hesitação que os argumentos negativos de Hume não são apresentados ao serviço de uma conclusão puramente céptica, mas antes como preliminares necessários a uma explicação quase científica da origem da crença (3).

Nos parágrafos §44-45 (E, V, II) Hume apresenta o hábito como um instinto implantado em nós pela "sabedoria da natureza", instinto esse que é em parte responsável pela sobrevivência dos homens. Segundo esta ideia seria a própria natureza que nos possibilita a previsão das suas próprias regularidades. Nesta medida existiria uma espécie de "harmonia pré-estabelecida entre o curso da natureza e a sucessão das nossas ideias" (E, XII, II, §44) permitindo que o homem aja eficazmente, mesmo desconhecendo a "razão" das suas acções:

"Assim como a natureza nos ensinou o uso dos membros, sem nos dar o conhecimento dos músculos e dos nervos, pelos quais eles são actuados, do mesmo modo implantou em nós um instinto (instint), que impele o pensamento numa marcha correspondente à que ela estabeleceu entre os objectos externos, embora ignoremos os poderes e as forças de que dependem totalmente o curso e a sucessão regulares dos objectos." (E, V, II, §45)

Neste contexto pode ser feita uma analogia entre as ideias de Hume e as ideias de Darwin (4). A introdução do hábito como um instinto essencial à sobrevivência da espécie humana pode ser considerada uma explicação compativel com a ideia de selecção natural (5). Muito embora a comparação entre Hume e Darwin deva ser limitada pelo facto de em Hume não haver nenhuma ideia de evolução(6) , podemos ainda assim defender que o tipo de explicação proposta por Hume pode partilhar do estatuto científico que é normalmente atribuído às ideias de Darwin, podendo assim a proposta de Hume ser considerada como uma teoria científica, ainda que uma teoria científica rudimentar (tal como ele desejava que fosse).

Podemos então concluir que a introdução da ideia de hábito ou costume na explicação das nossas crenças básicas não implica nenhum tipo de cepticismo ou irracionalismo. Isto só aconteceria se o hábito estivesse na origem das nossas crenças básicas e, mesmo assim, elas fossem arbitrárias, o que, como já vimos, não é o caso. O hábito fundamenta crenças básicas, universais, essenciais para a sobrevivência da espécie. A hipótese do hábito pode além disso candidatar-se ao estatuto de hipótese científica (explicativa), quanto mais não seja pela analogia entre ela e a ideia de selecção natural darwiniana.


III

A concepção de Hume como um céptico num sentido forte está em contradição com outras atitudes fundamentais da sua filosofia. De facto, o "temperamento científico" de Hume mostra como a sua filosofia não pode ser considerada como irracionalista ou relativista (no sentido dado hoje a estes termos). No ensaio The Sceptic, Hume discute a diferença entre moral e ciência e caracteriza assim as teorias científicas utilizando de novo o exemplo da disputa entre copernicanos e ptolomaicos:

"Se eu examinar os sistemas COPERNICANO e PTOLOMAICO, pretendo, com as minhas investigações, conhecer a situação real dos planetas; ou seja, por outras palavras, pretendo dar-lhes, na minha concepção, as mesmas relações que eles têm entre eles no céu. Para esta operação da mente parece muitas vezes existir um standard real na natureza das coisas, embora ele seja frequentemente desconhecido; nem a verdade ou a falsidade são variáveis pelas várias apreensões da humanidade. Embora seja possível que toda a humanidade conclua que o sol se move e a terra permanece em repouso, mesmo assim, o sol não se move nem um milímetro, sejam quais forem os raciocínios dos homens e tais conclusões são para sempre falsas e erradas". (7)

Neste texto está absolutamente claro que Hume, embora admita que a verdadeira natureza das coisas seja frequentemente desconhecida, não vê nenhuma impossibilidade de princípio no conhecimento dessa mesma natureza. Para além disso, a verdade ou falsidade das teorias científicas é vista como completamente independente das opiniões dos homens. Assim, a concepção de um Hume irracionalista ou mesmo relativista no sentido contemporâneo parece ser incompatível com a ideia de o Hume de "temperamento científico" que se manifesta nesta passagem.

Para além da confiança nas novas ciências da natureza e do facto de Hume propor ele próprio hipóteses explicativas do comportamento quasi cientificas, existe ainda uma outra característica da filosofia de Hume incompatível com a defesa do cepticismo. Essa característica é a sua posição anti-metafísica. A estratégia anti-metafísica de Hume exclui de uma forma definitiva qualquer possibilidade de defesa de um cepticismo forte pois este tipo de cepticismo é sempre apresentado através de argumentos abstractos ou metafísicos que, como já vimos, são inadequados no tratamento das questões de facto.

Assim, tanto o "temperamento científico" de Hume como a sua posição "anti-metafísica" indicam que a sua filosofia não deve ser considerada como uma filosofia céptica no sentido forte. Mas existe ainda a possibilidade de defesa de um cepticismo epistemológico fraco, um falibilismo fraco, um cepticismo regrado ou mitigado. Este tipo de cepticismo é adoptado por Hume como uma estratégia metodológica que pode ser útil em vários níveis. O cepticismo mitigado parece exercer para Hume pelo menos duas funções, uma ao nível filosófico e outra ao nível da "vida comum". Ao nível da vida comum, das opiniões comuns dos homens, o cepticismo mitigado parece poder ter um papel importante na medida em que os homens são naturalmente dogmáticos, fixistas e precipitados nas suas opiniões, e esta é a causa dos muitos erros que cometem:

"Os homens, na sua maioria, são naturalmente inclinados a ser afirmativos e dogmáticos nas suas opiniões; ao verem os objectos apenas de um lado e sem terem nenhuma ideia de qualquer argumento que sirva de contrapeso, atiram-se precipitadamente aos princípios para que se sentem inclinados, e são sem indulgência para com os que alimentam sentimentos contrários" (E, XII, III,§129).

Assim, ao nível da vida comum o cepticismo mitigado tem um papel muito importante, principalmente do ponto de vista social (enquanto que o cepticismo radical não pode ter nenhuma influência benéfica para a sociedade E, XII, II, §128).

Ao nível filosófico o cepticismo mitigado tem um papel fundamental na luta contra o dogma e a metafísica irregrada (má metafísica, ou metafísica não disciplinada, como se diz nos dias de hoje). O dogmatismo e a arrogância estão sempre na origem da má metafísica: "O Cavaleiro andante, que ia à aventura para limpar o mundo dos dragões e gigantes, nunca alimentou a menor dúvida em relação à existência desses monstros" (XII, I, 116). O cepticismo pode regrar os impulsos metafísicos: "limitando as nossas inquirições a objectos tais que se ajustem optimamente à estreita capacidade do entendimento humano" (XII, III, §130). Ou seja, o cepticismo epistemológico acerca do entendimento humano deve ser usado como forma de melhorar a nossa metodologia na construção do nosso conhecimento.

O cepticismo mitigado parece assim ter a uma função principalmente pedagógica: "Em geral, há um grau de dúvida, de prudência e de modéstia que, em todos os géneros de escrutínio e de decisão, deve para sempre acompanhar um exacto argumentador" (XII, III, §129). O dito cepticismo mitigado tem a sua função pedagógica na vida comum, obrigando os homens a ponderar as suas posições e a regrar as suas inclinações dogmáticas.

A concepção de Hume como um céptico no sentido forte deve assim ser decididamente descartada. No entanto, ainda é necessário dizer algo mais sobre a concepção de Hume como sendo um irracionalista. Para compreender em que sentido é que Hume pode ser classificado como irracionalista é necessário analisar o que Hume entende por "razão" no contexto dos argumentos ditos cépticos. A razão que Hume rejeita aqui é a razão dos raciocínios abstractos que congemina deduções com conclusões inaceitáveis para o senso comum (sendo o cepticismo só uma dessas conclusões). Um dos exemplos propostos por Hume é o da doutrina da infinita divisibilidade da extensão. Hume diz a este respeito: "Mas, o que torna a questão mais extraordinária é que estas opiniões aparentemente absurdas são apoiadas por uma claríssima e muito natural cadeia de raciocínio e não nos é possível aceitar as premissas sem admitir as consequências" (E, XII, II, 124). Este é, para Hume, mais um caso em que a razão esquece os seus limites e se lança em deduções abstractas com resultados contra-intuitivos. Outro caso é o do cepticismo forte. A ideia de Hume é então a de que chegamos ao cepticismo utilizando processos de raciocínio abstractos que são erradamente importados da "ciência da quantidade e do número" e que só fazem sentido nesse domínio: "Parece-me que os únicos objectos da ciência abstracta ou da demonstração são a quantidade e o número, e que todas as tentativas para estender esta espécie mais perfeita do conhecimento além de tais limites são simples sofisma e ilusão" (E, XII, III, §131). Assim, as conclusões cépticas são atingidas através da utilização de métodos dedutivos que não são adequados para falar acerca de questões de facto.

Mas esta concepção de "razão" enquanto capacidade abstracta na construção de demonstrações formais é completamente diferente da implicada no termo "irracionalismo". A acusação de irracionalista só poderia ser correctamente atribuída à filosofia de Hume se ela dissesse algo do tipo "Hume é irracionalista porque pensa que as teses das ciências não são passíveis de demonstração" ou seja, "Hume é irracionalista porque pensa que os raciocínios acerca das questões de facto não podem ser provados através de raciocínios abstractos". É só neste sentido que a acusação de irracionalista pode ser compreendida. De facto, Hume defende que os raciocínios abstractos não são utilizáveis na nossa análise das questões de facto. No entanto o tipo de razão que Hume pensa não poder ser usada na análise das questões de facto é um tipo de razão muito específico. Na análise das questões de facto não podemos usar raciocínios abstractos demonstrativos: "Todas as restantes inquirições dizem respeito apenas à questão de facto e à existência; e estas são evidentemente incapazes de demonstração. Tudo o que é pode não ser. Nenhuma negação de um facto pode implicar contradição" (E, XII, III, §132). Mas, do facto de as novas ciências da natureza não serem capazes de produzir "demonstrações" não se segue que qualquer tarefa empírica esteja dotada ao fracasso. As ciências não ficam numa situação pior depois de se darem conta do seu estatuto, antes resguardam-se contra os excessos metafísicos e procuram na experiência um guia mais adequado aos seus intuitos: "Só a experiência é que nos ensina a natureza e os limites da causa e do efeito e nos capacita para inferirmos a existência de um objecto a partir do outro" (XII, III, §132).

No fim da secção XII Hume faz uma classificação dos dois tipos de raciocínios. A esses raciocínios ele chama de "raciocínios morais" (E, XII, III, §132) por oposição aos "raciocínios demonstrativos" que já vimos não terem um papel credível nas ciências não demonstrativas. Hume divide então os raciocínios morais em raciocínios que dizem respeito a factos particulares e raciocínios que dizem respeito a factos gerais. Na área dos raciocínios morais que dizem respeito a factos particulares encontramos, para além de todas as deliberações que dizem respeito à vida comum, também a história, a cronologia, a geografia e a astronomia. Na área dos raciocínios morais que dizem respeito a factos gerais encontramos a filosofia natural, a física, a química, "onde se investigam as qualidades, causas e efeitos de uma espécie inteira de objectos" (XII, III, §132). A argumentação abstracta não deve ser usada em nenhum destes raciocínios. A razão abstracta só deve ser usada nos raciocínios acerca de quantidade e de número. Em suma, podemos reintrepertar o paragrafo final do Enquiry incluindo o cepticismo forte na categoria de "sofisma e ilusão":

"Ao passarmos os olhos pelas bibliotecas, persuadidos destes princípios, que devastação devemos fazer? Se pegarmos num volume de teologia ou de metafísica escolástica, por exemplo, perguntemos: Contém ele algum raciocínio acerca da quantidade ou do número? Não. Contém ele algum raciocínio experimental relativo à questão de facto e à existência? Não. Lançai-o às chamas, porque só pode conter sofisma e ilusão." (E, XII, III,§132)

Sara Bizarro
sarabizarro@yahoo.com

Bibliografia:

  • Hume, David, Enquiry Concerning Human Understanding, L. A. Selby-Bigge, Third Edition, Clarendon Press, Oxford, 1975; tradução portuguesa: Investigação sobre o Entendimento Humano, trad. De Artur Morão, Edicções 70, 1989
  • Hume, David, "The Sceptic" in David Hume Essays, Moral, Political and Literary, ed. Eugene F. Miller, Liberty Classics, Indianapolis, 1985, pp. 159-180
  • Hume, David, A Treatise of Human Nature, L.A. Selby-Bigge, Second Edition, Clarendon Press, Oxford, 1978
  • Hume, David, Dialogues Concerning Natural Religion, ed. By Richard H. Popkin, Hackett Publishing Company, Indianapolis, Cambridge, 1980
  • Biro, John, "Hume's new science of the mind" in The Cambridge Companion to Hume, ed. David Fate Norton, Cambridge University Press, 1993, pp. 33-63
  • Fogelin, Robert J., "Hume's Scepticism" in The Cambridge Companion to Hume, ed. David Fate Norton, Cambridge University Press, 1993, pp. 90-116
  • John W. Danford, David Hume and the Problem of Reason, Yale University
  • Monteiro, João Paulo, Hume e a Epistemologia, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa, 1984

     

Notas:

(1)Nas referências ao Enquiry Concerning Human Understanding referir-me-ei com um E ao livro, seguindo-se o número da secção, o número da parte da secção e o respectivo parágrafo.

(2) Ver Biro, John, "Hume's new science of the mind" in The Cambridge Companion to Hume, ed. David Fate Norton, Cambridge University Press, 1993, p. 42

(3) idem, p. 38

(4) Esta ideia encontra-se defendida no cap. 4 "Indução e Selecção Natural" do livro Hume e a Epistemologia Prof. João Paulo Monteiro.

(5) Mais evidencia a favor desta tese pode ser encontrada nos Diálogos sobre a Religião Natural.

(6)Ver João Paulo Monteiro, Idem, pag. 125

(7) David Hume, "The Sceptic" in David Hume Essays, Moral, Political and Literary, ed. Eugene F. Miller, Liberty Classics, Indianapolis, 1985, p. 164

Gosto Muito de Meus Pais
Projecto Vercial A maior base de dados sobre literatura portuguesa
Secções
António Cabral
Literatura Medieval
Literatura Clássica
Literatura Barroca
Literatura Neoclássica

Literatura Romântica
Literatura Pós-Romântica
Correntes do Século XX
Literatura Actual

Nota Introdutória
Índice de Autores
Índice de Obras
Outras Ligações

Biblioteca Gráfica
Letras & Letras
Curso de Literatura
Fotos de Portugal

Por favor, introduza a palavra ou
expressão que deseja pesquisar:




Obras integrais de autores portugueses

MEMÓRIA DELTA


Ao regressar da capoeira com uma tigela que levara cheia de milho, Olímpia senta-se numa paredita do quintalório e embica os olhos para a via férrea donde vem um silvo engasgado, é o comboio, lá está ele, coberto de fumo, fumo a rodos, a ficar para trás, esfarripado pelas agulhetas dos pinheiros. Cruza a pernaça e deixa cair o que lhe resta da alma aos trambolhões, tlim, tlim, por ali abaixo. A bem dizer, nunca gozara a vida ou não a soubera gozar. Casada aos 17 anos, por força das circunstâncias, aquela noite quente de S. Pedro, ficou sem o marido aos 18, morto numa pedreira, e desde então foi sempre uma trabalheira de torcer o pescoço aos apetites, que os tinha sempre bem relas e pimpões, à espreita duma escorregadela. Mas ela, mau, mau, vamos a recolher à toca, meus safados, e deixai-vos de guinchos. Dum lado, o padre, altar abaixo e no confesso. Doutro lado, as vizinhas a bombearem-lhe as mamas, com olhos putos, como sovelas, e a esguardarem os maridos e os filhos. E ainda a mãe, um sacatrapo empastelado de rezas e bruxarias: alembra-te da Conceição, o mundo lo deu, o mundo lo comeu. E virava-se para o trabalho, rapariga de boa têmpera, sublimando-se em habilidades e cantoria. Arrumava a casa e sachava a horta, com o rigor e a perfeição com que fazia casaquinhos de malha para o filho de 5 anos ou ensaiava o coro do rancho folclórico. Bem sabia que as mulheres não gostavam dela e defendia-se, pensando gostosamente que ninguém vai gabar aquilo que se deseja, que não se consegue e alguém conseguiu. A sua pele circundava tudo aquilo que lhe pertencia, a casa ou os leiros, e todos os lugares por onde andava: os homens aspiravam-na e as mulheres tapavam-lhe os poros. E como ela tinha necessidade de se libertar, sacudir os atafais, nanja em Carrazedo, mas numa saída para os lados da Régua ou de Vila Real! Deixava-se comprimir pelos dois lados, o de dentro e o de fora, mas era ainda muito nova para não saber que algumas coisas quanto mais comprimidas mais valentes se tornam. Claro, claro, não queria ser como a pólvora que, de tão apertada, basta um fogachozito para a fazer explodir. E daí... se explodisse? Seja o que Deus Nosso Senhor quiser, pensa Olímpia, o sentimento a oscilar-lhe entre duas vertigens, o tempo basto semeado de receios, aperreando-a, derrubando-a a seguir dum ramo de laranjeira, projectando-a contra o comboio que era aquilo que ela todos os dias via passar, arrascanhar-lhe a beleza, arrancá-la como um malmequer e levá-la para longe, muito longe, aonde ela, Olímpia, nunca poderia ir.

Um dia, dera-lhe para espantar os guardiões do templo, embora nem todos como vamos ver. Fazia uma caloreira que enchia o vale de transparências pardas, os olhos mal podiam olhar, os zilros tinham fugido para qualquer lado, com medo de que o raspar no sol lhes incendiasse o carvão, os homens acoitavam-se sob os ramos de loureiro, à entrada das tascas, e bebiam copos, uns atrás dos outros. Olímpia, logo de manhã e antes de ir dessedentar a horta, mirradinha de todo, estufara um coelho, apurando-o com uma malagueta já vermelhinha como a piroca dum cão, achara piada àquilo. Ao almoço, naturalmente, foi duas vezes ao pipo. Quando a mãe a viu regressar da loja com a segunda pichorrra, ofegante, a blusa molhada nas axilas, disse-lhe quase à puridade, para o neto, que era reguila, não topar: olha que essa coisa põe cócegas nos chumaços, vê lá, filha. Punha mesmo cócegas, ainda as sentia depois da sesta que fizera, a bem dizer ao léu e a sonhar com o impossível.

Depois de atravessar a linha férrea, aí lembrou-se de Jorge, não era a primeira vez, meteu pela rua principal abaixo, em direcção à horta. A mãe perguntara-lhe o que ia fazer àquela hora, com tal vernoeira, e ela explicou que ia tomar banho no tanque, era aconchegado e ninguém lhe ia roubar a prenda. Não gostou a mãe que ela arrepanhasse os cabelos sobre um ombro, à espanhola, e fosse, a bem dizer, toda aos relâmpagos, aparada como um lápis. Camisoleca cingida, aquilo badalava como as palmeiras da Casa Grande, e, apesar dos machos bem abertos a um e outro lado da saia, as pernas afiguravam-se, fumegantes, em V maiúsculo, ateando foguinhos nos ramos de loureiro e nos olhapins, eram mil, um milhão, que encostados às ombreiras sentiam inevitáveis cresceduras e perguntavam uns aos outros de que lado vinha o sol. Ela sentia as olhadelas, sentia-as estalar como castanhas, gozava, vingava-se das mulheres que fechavam as janelas, o desaforo, que desaforo, e, rodeada só de si, nem reparava que o João Nocas tinha saltado a uma cortinha, como um raio, e acompanhava-a de longe, cosendo-se com arbustos e paredes.

Nocas era um galfarro, um entre os muitos que há por todo o lado, pouco dado à lavoura, comedor de iscas por um serviçozito qualquer, limpar uma coelheira, tocar os arcos a uma pipa. Nem para emigrar servia. Um sarrafaçal. Olímpia chamara-o já para endireitar uma ramada: devolvia-lhe os focinhos pinguepongueados com raquetadas de má catadura, pagava-lhe e pronto. Um dia toscou-o em cima de uma oliveira, a olhar-lhe lá para o quarto, estava ela na toilette: aproximou-se da janela, chamou-o com os olhos revirados, desceu, ele a aproximar-se, foi uma tapona monumental que o fez ir aos trambolhões pela caleja abaixo. Desde então, comia-a de longe, insofrido, atormentado.

Ao chegar à horta, Olímpia tirou a rolha do tanque, cirandou por ali como náiade opulenta, enquanto a água saía, voltou a pôr a rolha, a água caía límpida dum tufozinho de mentrastos e urtigões e, quando o tanque estava já cheio, atirou-se para dentro, vestida. O Nocas espiolhava detrás dum carrasco, muito perto, mas logo que ela entrou na água perdeu-lhe a vista: o tanque ficava num chãozinho acima daquele em que se encontrava. Pensou em deslocar-se para o calço onde estava a nascente, mas ali não havia vegetação que o acobertasse, para além do ervaçal. Era uma chatice e teria de esperar que a deusa saísse do banho, com a roupa colada ao corpo a destacar-lhe as exuberâncias. Já era bom, óptimo, óptimo, pensou. Quando nisto, viu-a a atirar, peça por peça, primeiro a camisola, depois a saia e a roupa mais delgadinha, a caírem de manso sobre um estendalzinho de relva onde a luz rebrilhava. Tremeu todo e as ideias acudiram-lhe aos tropeções à boca do pensamento. Ir lá, vê-la nem que fosse de relance e fugir, depois, fugir pelos montes? E se ela o soubesse ali e aqueles modos fossem um desafio, oportunidade única, oh!, única? Impossível, não, não podia ser. Esperaria, nem que fosse até à hora da Lua, e ela havia de emergir, radiante, de pé sobre o bordo do tanque, a escorrer água, mãos no cabelo, estátua de muitas laranjas. Até que começou a rastejar por um carreirito entre dois bardos de videiras. O desejo e o medo sufocavam-no, mas teve tino para, sem o mais leve rumor, sacar a rolha ao tanque, juntar com uma só mão as peças de roupa e regressar ao carrasco. Um prazer de vingança, diabólico, dava-lhe picadinhas por todo o corpo, excitava-o mais e começou a masturbar-se.

Como se nada se tivesse passado, Olímpia ergueu-se, subiu para uma das guardas da piscina, levou uma das mãos ao cabelo e espreguiçou-se toda, seios impantes, soberbos, apontados e musicais como búzios, o púbis incandescente, nas coxas ardiam moitas de alecrim. João de boca aberta a engolir ventos. Afrodite saltou para a relva e deitou-se ao sol, depois de arrolhar o tanque novamente. O ruído da água a gorgolejar percorria o silêncio, enchendo-lhe o cabelo de pratas. Tanque já a transbordar, Olímpia levanta-se, ata uma vide farta de folhas à cinta, outra ao peito e chama:

João Nocas, faz o favor de me trazer a roupa, depressinha.

Surpreendido pelo anzol diamantino daquela voz, o lorpa nem pestanejou e abeirou-se da sacerdotiza, como um sacristão, rafeiro:

Aqui tens. Desculpa.

Com a mão esquerda, ela filou-lhe um braço, com a outra rasgou-lhe a camisa, as calças, as cuecas e pregou com ele dentro do tanque, estava murchinho de todo, tiritava, agarrou-lhe o cabelo e manteve-lhe a cabeça debaixo de água, até ficar cheio como um odre. Isto feito:

Suba aqui para cima disse.

E ele, cambaleante, a zichar água pela boca, pelo cu, pelo nariz, pelos olhos, pela gaita, lá subiu para cima da pedra, curvado como os velhos que tinham espreitado a casta Susana. Olímpia foi-se então a uma abóbora, rachou-a e pespegou com ela no baixo ventre do Nocas que caiu de costas, desamparado, a gemer como um carro de bois.

A ver se tomas juízo, galipante de merda disse ela, com a sua roupa na mão e a deitar a do outro, mais adiante, num poço fundo. Foi-se vestir por debaixo duma cerejeira onde um melro, ao vê-la, começou a assobiar a Maria da Fonte. O João Nocas lá se homiziou como pôde, entre umas giestas, e só altas horas da noite é que regressou a casa.

Olímpia era doce como um bombom, mas, uma vez por outra, o bombom explodia, como se tivesse dentro dinamite sonhava Jorge ao embalo do comboio que já tinha chegado ao Entroncamento. Tenho de a levar para a Delegação, tenho de a levar para a Delegação, tenho de a levar para a Delegação, para Vila Real, para o meio da gente fina, a D. Otília vai ficar cheia de inveja, se vai, quando me vir de braço dado com ela, e, em casa do engenheiro Melo, no jardim, ao vê-la sair da piscina, perguntará:

Quem é aquela deusa disfarçada de tigre, ó gorducho?

Tenho de a levar para a Delegação, tenho de a levar, hei-de amansá-la, na Pousada do Marão, nas Fisgas de Ermelo, és um favo, um favo de urtigas, urze brava, licor de medronho, coitanaxa, coitanaxa, Cassandra, os teus olhos são como tigres, coitanaxa, ó lince vigia o meu fogo, coitanaxa, hei-de fazer de ti uma dona, dar-te-ei um casaco de vison, melhor do que o da Conceição, mas tu não hás-de ter o fim da Conceição, o vison sou eu, a pele é a minha pele, eu a cobrir-te, a contornar-te, lince, Cassandra, olhos de tigre, tigre, coitanaxa.

O monograma da maleta, sempre tão atento, cuidadoso, avisou Jorge de que estava ali um cobrador e ele acordou assarapantado, tão assarapantado que, em vez do bilhete do comboio lhe passou para a mão o escrito de Olímpia, desculpe, senhor Pound, ou antes, senhor Malhadinhas, Jorge esfregou os olhos e, então sim, acordou de vez. O cobrador saiu, a pensar que o homem devia estar drogado. Quase.

Jorge abriu a maleta e tirou algumas cartas. Depois de as ter na mão, durante algum tempo, depois de ter lavado a cara com um punhado de freixos que pingavam dum morro, começou a ler, finalmente, a fazer o que devia ter feito umas horas antes, isso evitar-lhe-ia alguns devaneios, erros de cálculo, dissabores. A algarvia, com toda a sobranceria de uma tenista que atira com a bola à rede e a recupera, disposta a dar o golpe de misericórdia, entra e senta-se, perna cruzada, sem dizer água vai. Jorge olha-a de soslaio, impreparado para o jogo, Olímpia tinha-lhe destruído a raqueta, e prossegue na leitura da correspondência.

É assim tão importante?

O quê?

Isso, a leitura disso.

São cartas.

E isso é importante?

Claro.

Não acha que para um homem como você, tão solitário, eu sou mais importante?

Talvez disse Jorge.

E continuou a ler, abrindo umas cartas, fechando outras, com um semblante respeitável, como no gabinete, às vezes levava o lábio inferior à base do nariz, fazia uma carantonhazita, voltava ao ar sério, ia fumando, estava calmo. A algarvia sentou-se-lhe ao lado.

Chamo-me Ana Lúcia.

Ah.

Rais pelira o gaijo que é como o era e não era. Jorge tinha a correspondência em cima da maleta e esta entre si e a algarvia. Lida uma carta, mudava-a para o lado da janela e foi numa dessas ocasiões que ela botou a unha a um envelope, sem ele topar nada, meteu-o atrás das costas, trauteou uma canção de Suzanne Vega e saiu para o corredor, desaparecendo no sentido do bar.

Esgotada a leitura, o ainda delegado emaçou as cartas com jeitinho, alinhou-as num dos lados, bateu com elas, pancadinhas doces, em cima da maleta, o monograma ria-se, riso a ficar embaciado, Jorge percebeu, levantou-se, correu o vidro da janela, respirou ar puro, ar, o ar, foi com os olhos de barco, foi indo sobre a planura até uma serra distante, a serra, parecia uma vaga, azul defumado, e ao regressar empunhou bem o maço das cartas, hasteou-o como bandeirola, panículo de gorduras moles, fofas, inúteis, e atirou-o para fora, as cartas debatiam-se como borboletas desajeitadas contra um canavial, só uma se elevou ligeiramente e de asa meio caída voou contra a serra, adeus, Zildinha. É pena, padre Lourenço, que me tenham indeferido o pedido de subsídio para o teu maravilhoso Auto da Paixão, qualquer dia converto-me; é pena, senhores professores do Ensino Primário, que eu não tenha compreendido o vosso sofrimento, caminhos enlameados, caminhos pedregosos, escolas do outro lado do mundo; é pena que uns ganhem muito e outros ganhem pouco trabalho igual, salário igual, diziam-me e eu ripostava hipocritamente, relógio de repetição, relógio; é pena que eu tenha caído ingenuamente na teia de aranha, apontam-me agora a dedo com toda a certeza, nenhum argumento me salvará; é pena, ó Teixa, que o Centro fique na corda bamba, como eu. Como eu?! gritou Jorge. Se a algarvia entrasse, ficaria decerto escandalizada, preparando logo as almofadinhas do seu triunfo. Fechou a janela e sentou-se, mandando à tabua fantasmas e chatices, sentindo-se conduzido gradualmente a um estado de insensibilidade total, deve ser assim a beatitude, ser oco por dentro, não ter lá nada, além da glória de ser dentro, e mostrar no exterior o reflexo dos outros, espelho do que os outros idealizam para si.

Adormeceu.

Mas quem te disse, Jorginho, que mesmo a dormir tu deixas de ser quem és, o que foste e o que estás para ser?

O monograma entrou no gabinete, de mansinho, e perguntou:

Dá-me licença, senhor delegado?

Claro, claro, entre.

É pena, menina Julinha, que eu a tenha perdido para sempre. Como eu me lembro da manhã em que a senhora me entrou no gabinete com uma caixinha branca, enlaçada de azul como a sua vénia em que sempre havia um laço de ternura, de verdade, enfeite que não era propriamente um enfeite, pois ocupava o lugar certo. Disse-me, como se eu fosse um menino, que era um presentinho de cristas de galo, doce regional, bom, oh, muito bom, recheado de doce de ovos e amêndoa. Eu olhava para si com uma piedade estúpida, a piedade de quem vai dizer que sim para não ferir, sem pensar que os pastelinhos, se os comprasse, lhe custariam quase um dia de trabalho no serviço e, se os fizesse de propósito para mim, isso significaria mais, muito mais. E tinha-os feito de propósito, como vim a saber no dia seguinte, ainda a caixinha estava no gabinete, em cima de uma estante, ao lado dum bibelot. Não lhe atribuíra a mínima importância e, se quer que lhe diga, tinha um certo escrúpulo, vou dizer a palavra exacta, nojo, em comer o que lhe viesse das mãos devido aos seus achaques, à sua miséria. Cruel, além de estúpido, eis o que eu era e nessa manhã, quando a senhora, ó menina Julinha, reparou que o presentinho ainda ali estava não teve sequer uma palavra de reprovação. E desculpou-me com os meus cuidados e afazeres, com tanta responsabilidade que nem sequer me dava tempo para me deliciar com um petisco dos anjos. Levei então o caso para a galhofa, depois de lhe mentir: se levasse os docinhos para o hotel, havia lá um malandrão que mos devorava enquanto o diabo esfrega um olho. E, a propósito do petisco dos anjos, perguntei-lhe se os querubins e os serafins precisavam de manjar tão especial, cristas de galo, para quê, os anjos são todos do sexo masculino, se houvesse anjas... Aí a menina Julinha riu-se da minha lembradura: o senhor doutor tem cada uma!, olhe que essa dos anjos e das anjas tem piada. O que eu quis dizer... olhe, já agora vou dizer tudo: lá em casa do senhor engenheiro às vezes põem na mesa cristas de galo, muito bem, sabe quem as faz?, eu dizendo, batia com a mão no peito , eu que tenho de aproveitar as horitas da noite para ganhar umas lecas para os livros da Mafaldinha, mas canté estas, canté estas cristas, senhor doutor, aí lhe garanto que têm ovos caseiros e amêndoa da melhor, que ma traz a minha cunhada Micas, que la dá um primo do Castedo, uma terra do Douro, coisa fina, ora aí tem, senhor doutor, coma à vontade, farte-se, que disto não há melhor. Ouvi, ouvi, com tanta devoção como ela devia ouvir a missa e fiquei quebrado. Durante dois dias comi cristas de galo ao pequeno almoço, almoço e jantar, comi-as como se comungasse, a terra a entrar-me nos remoinhos da cabeça, a verdejar, varria-me de brisas.

António Cabral, Memória Delta, Lisboa, Editorial Notícias, 1990, pp. 151-159.


Voltar à página inicial de António Cabral





Pórtico | Nota Introdutória | Índice de Autores | Como Colaborar | Outras Ligações | Contacte-nos

© 1996-2001, Projecto Vercial.
 

9897722173afeb9b97735b.jpg

Um beijo para o Sandro Reis
adegasanfins.jpg
Um beijo para a Ariana Reis

Projecto Vercial A maior base de dados sobre literatura portuguesa
Secções
Fernando Pessoa
Literatura Medieval
Literatura Clássica
Literatura Barroca
Literatura Neoclássica

Literatura Romântica
Literatura Pós-Romântica
Correntes do Século XX
Literatura Actual

Nota Introdutória
Índice de Autores
Índice de Obras
Outras Ligações

Biblioteca Gráfica
Letras & Letras
Curso de Literatura
Fotos de Portugal

Por favor, introduza a palavra ou
expressão que deseja pesquisar:




Obras integrais de autores portugueses

Fernando Pessoa

Fernando António Nogueira Pessoa (1888-1935) nasceu em Lisboa, partindo, após o falecimento do pai e o segundo casamento da mãe, para África do Sul. Frequentou várias escolas, recebendo uma educação inglesa. Regressa a Portugal em 1905 fixando-se em Lisboa, onde inicia uma intensa actividade literária. Simpatizante da Renascença Portuguesa, corta com ela e em 1915, com Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros e outros, esforça-se por renovar a literatura portuguesa através da criação da revista Orpheu, veículo de novas ideias e novas estéticas. Devido à sua capacidade de «outrar-se», cria vários heterónimos (Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Bernardo Soares, etc.), assinando as suas obras de acordo com a personalidade de cada heterónimo. Colabora em várias revistas, publica em livro os seus poemas escritos em inglês e, em 1934, ganha o concurso literário promovido pelo Secretariado de Propaganda Nacional, categoria B, com a obra Mensagem, que publica no mesmo ano. Faleceu prematuramente em 1935, deixando grande parte da sua obra ainda inédita. É considerado um dos maiores poetas portugueses.

Está disponível em CD-ROM a Vida e Obra de Fernando Pessoa publicada pela Porto Editora e que contém, além das obras do poeta, numerosos textos de especialistas pessoanos, uma grande quantidade de imagens, música, vídeos e um jogo interactivo. Poderá adquirir o CD em qualquer livraria portuguesa ou então encomendando directamente à Porto Editora.

Outras páginas sobre Fernando Pessoa:

No Projecto Vercial:

  • A Casa por Fabricar: uma leitura do poema «Andaime»
  • As Vozes da Enunciação em Mensagem, de Fernando Pessoa
  • Carta à Memória de Fernando Pessoa de Carlos Queirós

  • Noutros sites:

  • Fernando Pessoa: Obra Poética
  • Fernando Pessoa: Traduções de poemas
  • Fernando Pessoa Homepage
  • Cartas de Amor de Fernando Pessoa
  • Fernando Pessoa: Poemas à minha escolha...
  • Carta a Mário de Sá-Carneiro
  • Fernando Pessoa: Poemas e outros textos
  • Disquiet: Pessoa's Trunk
  • 1040 poemas de Fernando Pessoa
  • Universidade Fernando Pessoa
  • Obra Poética de Fernando Pessoa
  • O Livro do Desassosego (em inglês)
  • Fernando Pessoa: 35 Sonnets
  • Fernando Pessoa: Poemas vários
  • The Fernando Pessoa Revival Society
  • Fernando Pessoa: traduções em inglês
  • O Livro do Desassossego de Bernardo Soares e The Western Canon de Harold Bloom


    Voltar à página de Correntes do Século XX





  • Pórtico | Nota Introdutória | Índice de Autores | Índice de Obras | Outras Ligações | Contacte-nos

    © 1996-2001, Projecto Vercial.
    Projecto Vercial A maior base de dados sobre literatura portuguesa
    Secções
    Campos Monteiro
    Literatura Medieval
    Literatura Clássica
    Literatura Barroca
    Literatura Neoclássica

    Literatura Romântica
    Literatura Pós-Romântica
    Correntes do Século XX
    Literatura Actual

    Nota Introdutória
    Índice de Autores
    Índice de Obras
    Outras Ligações

    Biblioteca Gráfica
    Letras & Letras
    Curso de Literatura
    Fotos de Portugal

    Por favor, introduza a palavra ou
    expressão que deseja pesquisar:




    Obras integrais de autores portugueses

    Abílio Adriano de Campos Monteiro (1876-1934) nasceu e faleceu em Moncorvo, Trás-os-Montes. Formou-se em Medicina, tendo, com Ferreira de Castro, fundado no Porto a revista Civilização, Grande Magazine Mensal, publicado entre 1928 e 1937. Colaboraram nesta revista, entre outros, Aquilino Ribeiro, Florbela Espanca e Teixeira de Pascoaes. Campos Monteiro notabilizou-se como romancista, cultivando o romance de pendor popular e regionalista influenciado por Camilo. As suas obras de ficção foram um êxito de vendas nos anos 20-30. Dedicou-se também à poesia e ao teatro. Obras de ficção: Miss Esfinge (romance, 1920), Camilo Alcoforado (romance, 1925), As Duas Paixões de Sabino Arruda (romance, 1929), Ares da Minha Serra - Novelas Transmontanas (1933). Poesia: O Raio Verde. Sátira política: Saúde e Freternidade (1923).


    O RAIO VERDE


    REVOLVENDO PAPÉIS VELHOS

    Esta carta que surge, desbotada,
    Entre outras cartas e papéis diversos,
    Traçou-a a mão ebúrnea e delicada
    Da que inspirou os meus primeiros versos.

    Abro-a e releio: «Nunca mais! Se amei,
    Mudou-se em ódio o meu Amor por ti».
    Uma nódoa... Que admira, se chorei
    Tanto sobre ela quando a recebi?

    Rio-me agora do pueril desgosto.
    Era então um fedelho, bem se vê,
    Mas sinto que me desce pelo rosto
    E tomba no papel não sei o quê...

    E lá ficaram, num abraço estreito,
    Aquelas duas pobres gotas de água:
    Uma dizendo a dor do Amor desfeito,
    Outra a saudade de essa antiga mágoa...

    É tão triste a velhice, e tão pequena
    A distância do berço à eternidade,
    Que o nosso coração chega a ter pena
    Das penas que sofreu na mocidade!

    O Raio Verde



    Voltar à página de Correntes do Século XX





    Pórtico | Nota Introdutória | Índice de Autores | Como Colaborar | Outras Ligações | Contacte-nos

    © 1996-2001, Projecto Vercial.
     

    Unknown Gem Type: tlx.tlxinv.guestbook