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O "Livro do Desassossego" de Bernardo Soares e "The Western Canon" de Harold Bloom:
uma aproximação
MARTIM DE GOUVEIA E SOUSA *
O cânone é a "lei", anunciaram-no os gregos desde há muito. E logo, ultrapassada a notação do genuíno e do inspirado na Bíblia , esse luminoso anúncio se reinscreveu na tradição literária e permitiu, em exemplo, demandas tão virtuosas, na busca da expurgação e dos exempla, como as do cânone da lírica camoniana ou do cânone camoniano, do cânone shakespeareano ou do cânone pessoano. Mas sempre se soube que cada leitor emocionado (e muitos dos melhores leitores são eles próprios criadores) vai construindo a sua lista de grandes obras e as vai sacralizando. Para nós, a lei não vem de fora, existe dentro...
Ora, Bernardo Soares, nesse importante e crucial marco da literatura portuguesa que é o Livro do Desassossego**, vai expendendo actos judicativos e valorativos sobre vários autores. Sabendo-se como se sabe que é Bernardo Soares, no meio de todos os heterónimos e sub-heterónimos pessoanos, aquele que mais se aproxima do próprio Pessoa, de imediato se conclui que essas apreciações contribuem em muito para o estabelecimento do seu gosto literário. Será nesse rasto que partiremos no parágrafo seguinte, sabendo de antemão que o gosto literário de um autor consagrado não é forçosamente canónico ou aceitável, e para tal basta que nós (cada um de nós) discordemos. Basta lembrarmo-nos do dissentimento que sempre provocam opiniões sobre os melhores romances ou as melhores obras .
Assim: sobre Fialho de Almeida e Chateaubriand, diz Soares que eles o fazem "raivar tremulamente, quieto de um prazer inatingível" (p. 35), aparecendo o último dos dois recorrentemente neste Livro , numa das quais como "uma alma grande que diminui." (p. 275) ; de Vieira, que "tal página" o "faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida" (ibid.) e que é ele o autor que o enleva e o eleva ( p. 36); do P.e Figueiredo, que a sua linguagem o embala (p. 37); do P.e Freire, que aí recolhe a disciplina; a páginas 43, descreve um ideal: "A sensibilidade de Mallarmé dentro do estilo de Vieira; sonhar como Verlaine no corpo de Horácio; ser Homero ao luar."; não acredita na paisagem como estado de alma do suiço Amiel (pp. 45-46); critica Oscar Wilde por ter demasiada consideração pelo outro e, dessa forma, " pela boca morrem o peixe e Oscar Wilde" (p. 55), logo o louvando cerca de duzentas páginas à frente pela tirada "A maioria da gente é outra gente." (p. 250) ; goza plenamente por se sentir coevo de Cesário Verde: "... tenho em mim, não outros versos como os dele, mas a substância igual à dos versos que foram dele." (p. 61), embora lhe critique o orgulho inútil da apresentação ao médico como o poeta Cesário Verde e não como o Sr. Verde empregado no comércio, uma vez que "o que ele foi sempre, coitado, foi o Sr. Verde empregado no comércio. O poeta nasceu depois de ele morrer, porque foi depois de ele morrer que nasceu a apreciação do poeta." ( p. 70), para logo à frente o erigir como fundante matriz poética (p. 95) e anunciador da sua alegria: "...ó meu Cesário, apareces-me e eu sou enfim feliz porque regressei, pela recordação, à única verdade, que é a literatura." ( p. 106) ; alude a Fialho de Almeida e a temáticas sórdidas, num trecho notável sobre o diálogo umbilical, onde cada um procura namorar-se e engrandecer-se (pp. 63-64); num registo de fina ironia sobre os que governam o mundo e os que são o mundo, Bernardo Soares inclui-se neste último, o dos amorfos, e consigo arrasta "o dramaturgo atabalhoado William Shakespeare, o mestre-escola John Milton, o vadio Dante Alighieri, o moço de fretes (...), o barbeiro (...), o criado" (pp. 84-85; p. 279), todos "criadores da consciência do mundo" (p. 279); a leitura do seu "irmão" Alberto Caeiro, no seu despojamento, na simplicidade, dá-lhe a liberdade e o frémito e a vibração (p. 99); critica o pessimismo trágico e interessado de Vigny (p. 131) e apoda-o de "génio que teve de fugir" (p. 275); o reconhecimento de que "ter já lido os Pickwick Papers ", de Charles Dickens, constitui uma das grandes tragédias da sua vida e de que, por isso, "não posso tornar a relê-lo" (p. 143), uma vez que, como dirá lá bem à frente, "tenho chorado lágrimas verdadeiras sobre esse romance, por não ter vivido naquele tempo, com aquela gente, gente real" (p. 298); alude à personagem Peter Schlemil de Adalbert von Chamisso, que entregara a sombra ao Diabo, para dizer que ele havia entregado a sua substância; ao referir-se à diferença entre o pensado, o projectado, e o real, em testemunho escrito, Bernardo Soares, em frases sucessivas, convoca Homero, Virgílio, Milton, Swift e Verlaine (pp. 228-229); pouco depois, fala-nos das suas semelhanças e dissemelhanças com Poe, Chateaubriand (de novo) e Rousseau (p. 236); mais à frente, aparecem Carlyle e Condillac (pp. 240-242); ao defender a sua posição sobre a tristeza da vida, aí aparece, como voz autoritária, o nome de Heine (p. 247); logo de seguida, falando sobre o pessimismo, surgem Leopardi, Antero, Chateaubriand (uma vez mais) e Vigny ( de novo) (p. 250); de Hugo diz Bernardo Soares ser ele "uma alma pequena que se distende com o vento do tempo."(p. 275), de Michelet estarmos perante "uma mulher que teve de ser homem de génio"(ibid.) e de Rousseau ter ele uma inteligência de Criador e uma sensibilidade de escravo (ibid.); sobre o sábio e poeta persa Omar Khayyam fala o Autor do Livro do Desassossego com agrado e até adesão, ao avançar a lição de que o seu tédio "é o de quem pensou claramente e viu que tudo era obscuro" (p. 276), como verdadeiro "Mestre do desconsolo e da desilusão" (p. 277); relativamente a Shakespeare e a tiradas mais judicativas, avança Bernardo Soares dizendo: "Se tivesse escrito O Rei Lear , levaria com remorsos toda a minha vida de depois. Porque esta obra é tão grande, que enormes avultam os seus defeitos, os seus monstruosos defeitos, as coisas até mínimas que estão entre certas cenas e a perfeição possível delas. Não é o sol com manchas; é uma estátua grega partida." (p. 299) Aliás, "nenhum drama de Shakespeare satisfaz como uma lírica de Heine." (p. 300).
A tese de Harold Bloom erege como centro do cânone literário o vulto de William Shakespeare, o que de certa forma colide com a visão pessoana por sob o filtro de Bernardo Soares. De facto, The Western Canon (The books and school of the ages) (1994), de Harold Bloom***, defende a ideia segundo a qual o autor de Macbeth é o elemento fundamental da tradição literária , agrupando em seu torno o escol universal de autores, a saber: Dante, Chaucer, Cervantes, Montaigne e Molière, Milton, Samuel Johnson, Goethe, Wordsworth e Jane Austen, Whitman, Emily Dickinson, Dickens e George Eliot, Tolstoi, Ibsen, Freud, Proust, Joyce, Woolf, Kafka, Borges, Neruda e Pessoa, e Beckett.
Esta canonização, ancorada toda ela no gosto literário, sugere desde logo que a posição bloomiana tem tanto de corajoso como de confutável - porquê Shakespeare e não Ésquilo ou Homero ou Horácio ou Petrarca ou Dante ou Camões ou Baudelaire ou Broch ou o próprio Pessoa? A par disso, arrasta consigo a curiosidade da refutação poder partir de um texto importante de um autor canónico da sua Chaotic Age**** - não defende Bernardo Soares não interessar tanto Shakespeare como uma lírica de Heine?
O Professor Bloom, ao defender a centralidade de Shakespeare relativamente ao mundo ocidental, afirma ainda que depois do autor de Romeu e Julieta poucas figuras literárias se libertaram da sua anxiety of influence . De que modo se poderá provar essa presença em Fernando Pessoa? Ou será Pessoa um dos poucos refractários a essa influência?
No capítulo intitulado "Shakespeare, Center of the Canon", Bloom justifica essa superioridade com a tirada "Shakespeare and Dante are the center of the Canon because they excel all other Western writers in cognitive acuity, linguistic energy, and power of invention."(p. 46) Mas a magnificência de Shakespeare, que assim sobrepuja Dante, o seu mais próximo, advém-lhe do infinito poder de representação do carácter humano e das suas mutabilidades, o que permite, ainda na esteira do Professor Bloom, que a obra de Shakespeare seja a mais multicultural e, por defluência, a mais pragmática de quantas poderão ser evocadas.
Ora, a posição de Bernardo Soares, fundada no interesse, e com atinências claras com a lista do ilustre professor, só aparentemente se opõe à de Harold Bloom. A asserção segundo a qual a obra de Shakespeare nos faz pensar na perfeição possível e a convocação imagética da estátua grega partida são razão suficiente para pensarmos Bernardo Soares (Pessoa) um admirador incondicional de Shakespeare. Que beleza maior que a defeituosa perfeição ou a perfeição embaciada?
Incluindo-o no pequeno rol dos que são o mundo - e essa lista, como vimos, só inclui mais Milton, Dante, o moço de fretes, o barbeiro e o criado -, é justo que se aplique a Bernardo Soares, o quase-Pessoa , aquele curioso fragmento de Álcman que diz: <<De quantos pássaros há, conheço / as melodias.>> (frg. 93 Diehl). E terá sido na música primigénia de Shakespeare, nessa morte do texto por excesso de vida, na obra definitiva que ele de si criou sem que o soubesse, que Bernardo Soares (Pessoa), precedendo-o, se encontrou com Harold Bloom. Num abraço profundo, como um sorvo original...
______________
* Equiparado a Assitente do 1º Triénio da ESEV.
** Utilizaremos para as citações o volume Obras em Prosa-I , de Fernando Pessoa, que inclui este título. Trata-se da edição organizada por João Gaspar Simões para o Círculo de Leitores (1987).
*** Harold Bloom é professor de Humanidades na Universidade de Yale e professor de Inglês na Universidade de Nova Iorque. Autor de um ensaísmo vigoroso e arrojado, ninguém ficará indiferente a obras como: Shelley's Mythmaking (1959), The Visionary Company (1961), Blake's Apocalypse (1963), Commentary on David V. Erdman's Edition of "The Poetry and Prose of William Blake" (1965), Yeats (1970), The Ringers in the Tower: Studies in Romantic Tradition (1971); The Anxiety of Influence (1973); Kabbalah and Criticism (1975); A Map of Misreading (1975); Poetry and Repression (1976); Figures of Capable Imagination (1976); Wallace Stevens: The Poems of Our Climate (1977) ; The Flight to Lucifer: A Gnostic Fantasy (1979), The Breaking of the Vessels (1982), Agon: Towards a Theory of Revisionism (1982); The Strong Light of the Canonical (1987); Poetics of Influence (1988); Ruin the Sacred Truths (1989); The Book of J (1990); The American Religion (1992).
**** Lembremos que, na obra sobre que reflectimos, Bloom, baseado em Vico e na sua Ciência Nova , divide o espectro literário em "Theocratic Age" (criação literária anterior a Dante), "Aristocratic Age" (de Dante a Goethe), "Democratic Age" (depois de Goethe ao advento do século) e "Chaotic Age" (do início do século ao final do século).
SUMÁRIO
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José Leon Machado: ensaios
A casa por fabricar: uma leitura do poema «Andaime» de Fernando Pessoa
1. Fala-se de Fernando Pessoa como se fala de um nosso amigo próximo. Anda na boca de toda a gente: desde os simples empregados de escritório até aos políticos que o citam nos seus discursos parlamentares ou nos comícios partidários. É pau para toda a colher. Pintam-no nas paredes e nos postes eléctricos, pelas ruas, vêm fotos nos jornais, fazem-se programas de rádio e televisão, usam-no até para vender máquinas de escrever.
Porém, este conhecimento, este andar de boca em boca é superficial. Poucos sabem realmente quem foi Fernando Pessoa, poucos lêem e compreendem a sua obra. Ele próprio passara a existência a tentar descobrir quem vivia dentro de si, que significado haveria por detrás dos seus pensamentos. A pergunta «quem não sou?» é posta ao longo de toda a sua obra.
É nossa pretensão neste estudo definir algumas fronteiras de Pessoa ortónimo, servindo-nos de um dos seus poemas menos «badalados»: "O Andaime". Sabemos que o devaneio lírico e a musicalidade caracterizam a forma de ser poeta na perspectiva ortónima. A dificuldade maior será abrir sendas pela imensidade florestal que é toda a obra poética deste grande da nossa literatura. Ele é tudo e em todos os heterónimos há afinidades, semelhanças que, no fundo, o tornam único.
É característico de Pessoa ortónimo a abundância de aliterações e de rimas internas. A linguagem é sóbria e intimista. A nível temático, a maior parte das composições que constituem o Cancioneiro, chora uma felicidade passada, para lá da infância. A inquietação metafísica perpassa por cada verso, bem medido, longe do caudal impetuoso e aparentemente desgovernado de Álvaro de Campos.
É isso que tentaremos verificar no poema "O Andaime", publicado na revista Presença em Junho de 1931.
2. Fernando Pessoa intitulou o poema de "O Andaime", aparecendo a mesma palavra na última estrofe da composição. Andaime é um vocábulo de origem árabe que os dicionários descrevem como uma armação de madeira ou ferro de que se servem os pedreiros para construir um edifício, sendo desmontada após a construção. É também utilizado para restauro de paredes de edifícios arruinados. Porquê o andaime nesta composição? Diz António Quadros que há sempre na poesia de Pessoa «um trilho para as alturas, uma temática de levitação para além de tudo» (Quadros, 1987: 62). Palavras como sol, sobe e o próprio andaime são disso testemunhas no poema em análise.
O andaime é um meio de fazer erguer, para elevar às alturas, as paredes de uma casa. No poema, a casa é a vida do poeta. Contrapõe-se a altura do sol e do andaime à planura do rio e do mar. a «casa por fabricar» é o que nunca chegou a ser; o andaime as esperanças irrealizáveis, o projecto inconcluso, a ilusão que se revelou numa mentira. O andaime, afinal, não serviu para construir a casa; era inútil como a vida e seus anseios.
A casa, na simbologia geral, é o centro do mundo e significa o ser interior, o refúgio íntimo de cada homem. Nesta composição, o poeta sente-se vazio, pois a casa não chegou a ser edificada. O seu interior, a sua alma, é um vácuo enorme rodeado por um andaime inútil.
Fernando Pessoa tem uma imaginação aquática por excelência. É quase obsessivo o tema da água na sua obra. Lembremo-nos das odes de Álvaro de Campos, um engenheiro naval, e da Mensagem. No poema em análise temos o rio, as ondas, as águas lentas e mansas, o mar.
O rio, como escoamento das águas, é símbolo de fertilidade, de morte e de renovação. A corrente é a vida; a água descendo para o oceano e o ajuntamento das águas o retorno à indiferenciação (cf. Chevalier, 1982: 449). O poeta recorda o seu passado olhando as ondas do rio. Elas lembram-lhe a vida «vivida em vão». O «correr vazio» do rio é como a própria vida. O poeta está na margem sossegado e não encontra nenhuma razão para explicar o seu sossego. Antes pelo contrário, deveria estar agitado, inconformado com aquilo em que se tornou. Olha com indiferença as ondas, ouvindo o «som morto das águas». Tudo passa, tudo vai, como a corrente do rio. A velha ideia heraclitiana está aqui bem presente. No fragmento 12 da edição de Diels, diz Heraclito: «ceux qui entrent dans les mêsmes fleuves reçoivent le courant d'autres et d'autres eaux et les âmes s'exhalent des substance humides».
As ondas indicam uma ruptura com a vida habitual, uma mudança nas ideias, atitudes, nos comportamentos do sujeito (Chevalier, 1982: 450). O poeta de "O Andaime" descreve-as tão leves que nem são «ondas sequer». O corte entre o passado e a tomada de consciência no presente é radical. Todo o seu passado foi um grande erro, um engano colossal.
As águas lentas e mansas remetem-nos para a obra de Bachelard, L'Eau et les Rêves. Diz Bachelard que a água leva «au loin, l'eau passe comme les jours» (Bachelard: 125). «Elle este une substance pleine de réminiscenses et de rêveries divinatrices» (Ibidem: 122). É a mestra da linguagem fluida, da linguagem sem choques, contínua, da linguagem que abranda o ritmo, que transforma em matéria uniforme os ritmos diferentes (cf. Ibidem: 250). Paul Claudel dizia que tudo o que o coração deseja se pode reduzir à figura da água.
As águas calmas e lentas simbolizam o desejo da morte: «pour certaines âmes, l'eau tient vraiment la mort dans sa substance. Elle comunique une rêverie où l'horreur est lente et tranquile» (Bachelard: 122; cf. Ibidem: 66). As águas mansas funcionam como um convite à morte. Para Heraclito, a morte era a própria água. É expressivo o uso do adjectivo morto no poema de Pessoa, associado ao som das águas e ao eu do poeta.
O mar é símbolo da dinâmica da vida. Tudo sai do mar e a ele regressa. Aí se nasce e aí se morre. É a encarnação da Grande Mãe, de que fala Gilbert Durand. O poeta pede às ondas que o levem «Para o olvido do mar». É o desejo do retorno ao seio materno, à indiferenciação. Só o mar é remédio, só as suas águas o podem envolver no esquecimento.
O complexo de Caronte, assim designado por Bachelard, parece reflectir-se neste poema de Fernando Pessoa. O apelo que o poeta faz às ondas para que o levem, lembra um outro de Baudelaire em Les Fleures du Mal: «O mort, vieux capitaine, il est temps! Levons l'ancre!» Tudo o que de lento há na morte é marcado pela figura do barqueiro horrível. As ondas, o rio que corre, são o caminho de Caronte a transportar a alma do poeta para o mar alto, o túmulo do «olvido». O rio não é o objectivo, mas o meio para alcançar a paz plena do mar e do indefinido.
Na Teogonia de Hesíodo, a água doce estagnada dos rios e a água fecunda e furiosa do oceano antagonizam-se. a paz que o poeta deseja não é o marasmo, a inércia que sobre si se abate quando olha o rio preguiçoso. É a paz espumante do oceano, larga e abrupta numa eterna aventura desigual e única. Talvez do mar renasça um novo ser e a vida recomece, menos ilusória, menos enganadora.
Sabemos que o sonho é um veículo de criação de símbolos. Fernando Pessoa é um sonhador. Ele próprio o diz: «Toda a minha vida foi de passividade e de sonho».
O cepticismo pela vida real transforma-se, no poema "O Andaime", num cepticismo pela vida de sonho. O poeta encara o passado como um sonho vão. Nada do que sonhara se realizou, a sua vida foi uma inteira desilusão. O estado natural do poeta era o sonho. Como a realidade era dolorosa, efémera, rotineira, refugiava-se na fantasia. O alívio, diz João Mendes, procurava-o «no sonho, não só como evasão da vida angustiada e sem solução; mas porque de facto o sonho se torna mais verdadeiro que a realidade concreta» (Mendes, 1983: 287). Porém, em "O Andaime", o poeta descobre que também o sonho é enganador e absurdo. A vida e o sonho são ambos sonhos. Nada é útil para resolver o conflito interior. Resta a morte, o «olvido». A futilidade da vida consciente e o absurdo do inconsciente obrigam o poeta a preferir o seio do mar.
A infância é símbolo da inocência e da simplicidade, o estado anterior ao erro. A saudade do tempo de criança é uma constante que atravessa toda a obra de Fernando Pessoa. Sabemos que até aos seis anos ele fora exclusivamente o «menino de sua mãe» e que, a partir daí, tivera de repartir com os seus irmãos recém-chegados essa exclusividade. Tal evento «repercutiu-se-lhe profundamente na alma, tornando-se uma criança e depois um jovem ensimesmado, solitário, introspectivo, melancólico, que procurou sucessivos escapes para a situação ressentida como de abandono e dupla orfandade» (Quadros, 1987: 24). Também no poema "O Andaime" parece delinear-se esta problemática, implicitamente no desejo de retorno ao seio materno atrás explicitado, e na alusão à «bola de criança». Na quintilha terceira, o poeta compara a sua esperança e o seu desejo a uma bola. A bola atirada por uma criança ao alto sobe mais do que a esperança que sente, do que o desejo que tem. As crianças são solícitas. Ele, ao contrário, é morno, quase frio, impotente de vontade. Talvez quando criança fosse mais perseverante nos seus desejos e esperanças.
As recordações afluem-lhe à memória com a correnteza fluvial. Mas essa correnteza leva, juntamente com as esperanças, os sonhos irrealizáveis. O poeta está de mãos vazios perante o rio que corre. Ressalta um sentimento de fatalidade angustiante, «de fracasso metafísico, de queda de um sonho anterior» (Quadros, 1987: 56). As esperanças estão mortas porque já não acredita nelas; mas hão-de morrer porque ainda não as esqueceu. O poeta sente-se um morto, como cadáver que deu à margem do rio.
Mantinha-o uma visão irreal, impossível: «Só no palco era rainha / Despiu-se e o reino acabou». Ele encontrou-se, «Quando estava já perdido». É como chegar atrasado a um encontro que não foi marcado. Tal como um louco, teimava no que não tinha solução. A sensação de loucura é própria de alguém que choca com a realidade e que não a aceita ou a compreende de uma forma desviante. Agora cai em si e vê o engano. Apenas um sonho liga o seu pensamento ao corpo: ser muro de jardim.
A simbologia do muro e do jardim tem a sua importância para a compreensão do poema. O muro simboliza a comunicação cortada, interrompida. Pode servir para defesa, protecção, mas é ao mesmo tempo símbolo de cárcere. O jardim simboliza o paraíso terrestre, celeste ou cósmico. Aparece nos sonhos como a expressão de um desejo puro. O muro de jardim mantém as forças internas que florescem. Não se penetra no jardim senão por uma porta estreita (Cf. Chevalier, 1982: 531-533). Contudo, o poeta fala de um «deserto jardim». Não tem árvores nem canteiros de flores. Está deserto como a sua própria alma. Deste modo, o paraíso que o jardim simboliza torna-se o vazio, a ausência da felicidade; o muro o corte, o impedimento de realizar o sonhado. O corpo do poeta é o muro da alma, o guardião, a defesa do que já nada há para guardar. O jardim é a sua alma árida e deserta, sem sonhos, sem vida, sem passado, sem futuro.
3. A intertextualidade é, como a considera Bakhtine, descobrir num texto outras vozes escondidas. É a presença polifónica de várias vozes num texto literário. Formulado este conceito por Julia Kristeva nos anos 60, já Baudelaire, no século XIX, se referira implicitamente a ele. Baudelaire considerava o cérebro humano como sendo constituído por camadas que se inter-relacionam. Do mesmo modo um texto literário é contituído por camadas, externas ou internas ao escritor, que se inter-relacionam (Silva, 1986: 624 e seguintes).
Há vários tipos de intertextualidade. Os que nos interessam para a busca de analogias no poema "O Andaime" são a hetero-autoral, que é a relação de um texto literário com textos de outros escritores; e a homo-autoral. Nesta, o autor espelha a sua própria obra.
A intertextualidade pressupõe sempre outros textos. Procuraremos sugerir, nos próximos parágrafos, a possível analogia de "O Andaime" com vários textos do mesmo autor e de outros autores.
Se compararmos esta composição com a "Sôbolos Rios" de Camões, deparamos com uma afinidade na forma estrófica, métrica e rítmica. A afinidade do vocabulário e de certa temática parece-nos igualmente similar. Expressões em "Sôbolos Rios" como lembranças, tempo passado, rio corrente, sonho imaginado, Quantos enganos / Faz o tempo às esperanças, um gosto que hoje se alcança, desejo em desejo, por sol, por neves, mal presente, são rios estas águas e a morte indicam uma franca analogia com o poema de Fernando Pessoa.
Camões adapta o que diz o salmo 136, Super Flumina Babylonis, à sua própria vida. No salmo, os judeus, «desterrados na Babilónia, choram o tempo em que viveram felizes na sua terra (Saraiva, 1980: 100). Assim, o poeta, na margem do rio, chora o tempo passado e o seu mal presente. Reconhece, contudo, que o que passou não lhe dá contentamento nenhum. Ficou-lhe apenas a lembrança de uma esperança perdida. Aquilo que ele pensava ser um grande bem é apenas desilusão. A luz, a resolução da crise, vem-lhe do amor e da misericórdia divina, da Jerusalém celeste.
Fernando Pessoa, da mesma forma, olha as águas correntes e nelas revê os enganos da sua vida passada. Todavia, não resolve o conflito interior por uma saída escatológica, tal como em Camões. A sua única saída é o «olvido do mar», o deixar-se arrastar pelas águas, sem desejos, sem esperanças, ansiando apenas o esquecimento, o aniquilamento total.
Este é um dos exemplos mais característicos da intertextualidade hetero-autoral. Cremos que Fernando Pessoa, conscientemente ou não, foi influenciado pelo texto de "Sôbolos Rios" no momento em que compunha o poema "O Andaime".
Da intertextualidade homo-autoral há inúmeros exemplos, tanto no Fernando Pessoa ortónimo como no heterónimo. Centrar-nos-emos no ortónimo.
Entre 1928 e 1933 Fernando Pessoa compôs pelo menos cinco poemas tendo a paisagem fluvial como cenário. Um deles é "O Andaime". A identidade vocabular e simbólica entre este e, por exemplo "Na Ribeira deste Rio" e "Bóiam Leves" é flagrante. No primeiro, o poeta passa os dias junto ao rio, olha-o, vê «os rastros que ele traz» e o «que ficou para trás». Vê e medita, não no rio que passa, mas no que vai pensando. Na segunda composição, as águas paradas absorvem a imaginação do poeta. Os seus pensamentos de mágoa «bóiam leves», como Ofélia morta. «São coisas vestindo nadas», «vestígios do que não foi».
No poema sem data "Na Quinta entre Ciprestes", o devir heraclitiano está também presente: «No rio ao pé dos salgueiros / Passam as águas em vão». Trazem consigo tristezas de outras gentes que, juntas com as do poeta, aumentam o seu caudal.
Em 1933 escreve "Entre o Sono e o Sonho". O poeta, neste poema, diz que entre si e aquilo que supõe ser «corre um rio». Esse rio é o passado, a vida que foi: «Chegou onde hoje habito / A casa que hoje sou». O passado dormente morre no rio que desliza.
4. Abordámos no nosso estudo alguns pontos que nos parecem importantes para uma maior clarividência de um dos poemas que consideramos fundamental para o entendimento da poética de Fernando Pessoa. Longe dos moldes modernistas, o poema "O Andaime" ressente-se de certa atmosfera simbolista. Da abordagem simbólica e temática, concluímos da presença no poeta de um cepticismo perante a vida real e de sonho, ambas enganadoras e fúteis, e do desejo da morte. A longa composição de Camões "Sôbolos Rios" não terá sido de todo estranha a Fernando Pessoa quando da construção de "O Andaime", uma vez que há ressaibos análogos em ambos os poemas. A temática do rio que corre como vida que passa em retrospectiva é uma recorrência em muitas das composições poéticas da obra ortónima de Fernando Pessoa.
Fernando Pessoa não é um poeta apenas para ser falado. A fama corrompe e a moda passa. Saber ler Pessoa é descobrir os seus dramas e, por ele, tentar compreende os nossos. Foi um homem vulgar, correspondente comercial de firmas medíocres. Porém, soube olhar para dentro de si, para a rua onde passava, o quarto onde dormia, o mar que se fixava no horizonte, e descobriu o para lá: «Vi todas as coisas e maravilhei-me de tudo / Mas tudo sobrou ou foi pouco».
BIBLIOGRAFIA
BACHELARD, Gaston (19--), L'Eau et les Rêves, 6ª ed., Paris, Librairie José Corti.
CHEVALIER, Jean e Alain GHEERBRANT (1982), Dictionnaire des Symboles, Paris, Éditions Robert Laffont.
MENDES, João (1983), Literatura Portuguesa IV, 2ª ed., Lisboa, Editorial Verbo.
PESSOA, Fernando (1958), Poesias, 5ª ed., Lisboa, Edições Ática (daqui se extraiu o poema "O Andaime", pp. 232-234).
QUADROS, António (1987), «Introdução à Vida e Obra Poética de Fernando Pessoa», em Poemas de Alberto Caeiro, Mem Martins, Publicações Europa-América.
SARAIVA, António José (1980), Luís de Camões, 3ª ed., Amadora, Livraria Bertrand.
SILVA, Aguiar Vítor Manuel de (1986), Teoria da Literatura, 7ª ed., Coimbra, Livraria Almedina.
José Leon Machado, 1991
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Luís Vaz de Camões
A fermosura desta fresca serra
A fermosura desta fresca serra E a sombra dos verdes castanheiros, O manso caminhar destes ribeiros, Donde toda a tristeza se desterra;
O rouco som do mar, a estranha terra, O esconder do sol pelos outeiros, O recolher dos gados derradeiros, Das nuvens pelo ar a branda guerra;
Enfim, tudo o que a rara Natureza Com tanta variedade nos of'rece, Me está, senão te vejo, magoando.
Sem ti, tudo me enjoa e me aborrece; Sem ti, perpetuamente estou passando Nas mores alegrias mor tristeza. |
Remetente : Paulo Torquato Tasso
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