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Ensino da Filosofia e Exegese

Desidério Murcho *

Quero partilhar com os leitores algumas ideias sobre o ensino da filosofia analítica. Uma vez que o próprio conceito de filosofia analítica é razoavelmente pouco conhecido, escolhi a exegese como a actividade em relação à qual a filosofia analítica se distingue claramente da continental. O meu objectivo é disponibilizar alguma informação que julgo importante não só para a tomada de decisões de fundo no que respeita ao ensino da filosofia, mas também para a prática docente quotidiana. A ênfase é colocada sobretudo no ensino liceal da filosofia, mas sem perder de vista o ensino universitário.

A pequena cultura filosófica portuguesa pertence a um sector muito específico e minoritário, em termos mundiais, da prática filosófica internacional. É comum designar-se esta forma minoritária de fazer filosofia como 'filosofia continental', porque é sobretudo nos países do continente europeu (França, Portugal, Espanha, Itália e parte da Alemanha) que se cultiva esta forma de fazer filosofia. A filosofia analítica é dominante em países como o Reino Unido, os EUA, a Austrália, alguns países nórdicos europeus e parte da Alemanha. Nos países de forte tradição continental, como a França e a Espanha, o movimento analítico tem vindo a crescer ao longo dos anos, apesar de continuar, nesses países como em Portugal, claramente minoritário.

Toda a gente conhece a filosofia continental: foi o que nos ensinaram e continuam a ensinar no liceu, é o que se ensina nas universidades e a maior parte dos livros e revistas de filosofia são de perfil continental. Uma das características que distinguem a forma analítica de fazer filosofia da forma continental, sobretudo portuguesa, baseia-se na diferente posição que tomam em relação à exegese filosófica. Ao passo que para os continentais a exegese filosófica não se distingue da simples paráfrase, os analíticos distinguem esta da formulação, identificando com esta última o sentido da expressão 'exegese filosófica' mas não com a primeira.

A distinção entre a paráfrase e a formulação pode ser facilmente captada se tivermos em conta que alguém que nada perceba de medicina ou música pode no entanto parafrasear eficientemente um texto de medicina ou música do século XVI, bastando para tal conhecer a língua em que tal texto foi escrito, ao passo que para formular o conteúdo de um texto de medicina ou música do século XVI já é necessário saber medicina ou música, consoante o caso.

Compreende-se assim por que razão outra das características que distinguem a maneira analítica de fazer filosofia da maneira continental consiste na hierarquia conceptual dada à exegese filosófica: para um filósofo analítico só é possível fazer exegese filosófica depois de se saber filosofia, ao passo que os continentais defendem que se aprende filosofia a fazer exegese, o que aos olhos dos analíticos é tão absurdo como defender que se aprende medicina ou música lendo os textos clássicos da medicina ou da música.

Para um filósofo analítico a expressão 'exegese filosófica' significa 'formulação' e não 'paráfrase', pois não podem existir 'paráfrases filosóficas', uma vez que a filosofia pressupõe uma compreensão crítica e a paráfrase apenas pressupõe a capacidade mimética. Esta divisão, entre analíticos e continentais, quanto ao significado da expressão 'exegese filosófica' é a causa última do tipo de ensino da filosofia praticado em Portugal, e que aos olhos dos analíticos não passa de uma caricatura do que é o verdadeiro ensino da filosofia. Nos liceus e nas faculdades, os alunos de filosofia são lançados, sem preparação, para os textos clássicos da filosofia (numa atitude que a um analítico parece autêntico terrorismo intelectual), sendo-lhes exigido em troca um conjunto mais ou menos bacoco de paráfrases em que os mais disparatados erros, as mais gritantes ambiguidades e imprecisões e a mais evidente incompreensão dos problemas, argumentos e teorias que os filósofos discutiram ao longo dos tempos são sinais infelizes de um tipo de ensino que não tem capacidade para formar pessoas que sabem, sobretudo, pensar, mas antes pessoas que sabem, sobretudo, repetir.

A formulação dos problemas, teorias e argumentos da filosofia permite ao aluno perceber os problemas, teorias e argumentos da filosofia, ao passo que a sua paráfrase não lhe permite senão a repetição mecânica das palavras dos filósofos. É por este motivo que a avaliação dos alunos de filosofia, sobretudo no liceu, é um problema latente em Portugal. Uma vez que não são transmitidos aos alunos conteúdos cuja formulação mais ou menos precisa seja possível avaliar de forma justa, mas antes conjuntos de frases que os alunos devem repetir de forma mais ou menos vaga, o professor nunca sabe se está perante um aluno com uma excepcional verve filosófica, se perante alguém que nada percebeu, acabando todos por ser avaliados em função de critérios extra-filosóficos como a qualidade do português, a quantidade de autores referidos por cada frase e a capacidade para citar a bibliografia de forma competente.

O filósofo analítico, por outro lado, sabe exactamente o que está a avaliar, tal como um professor de música ou de medicina. Existem conteúdos filosóficos precisos cuja maior ou menor compreensão, tal como é revelada pela sua formulação escrita e oral, pode ser avaliada de forma justa. Tal como um professor de medicina avalia até que ponto um aluno compreendeu o processo digestivo dos seres humanos e tal como um professor de música avalia até que ponto um aluno compreendeu o conceito de intervalo musical, também o professor de filosofia analítica avalia até que ponto um aluno compreendeu a teoria da referência de Kripke ou os argumentos cépticos da segunda Meditação de Descartes.

Outra das consequências da diferente concepção de exegese filosófica que distingue os analíticos dos continentais é a ausência conspícua de livros de introdução à filosofia, do lado continental, e a sua abundância, do lado analítico. De facto, como escrever um livro de introdução à filosofia quando a concebemos como a arte, mais ou menos delirante, da paráfrase? Se vamos explicar o conceito de frase analítica, temos de parafrasear Kant ou Quine, citando ambos os autores abundantemente; nada mais resta fazer. Não há quaisquer conteúdos conceptuais que possam ser organizados e apresentados didacticamente, do mais simples para o mais complexo, do mais importante para o menos importante. Quando se tem um conceito continental de filosofia nada resta excepto a paráfrase. Mas isso é negar à filosofia o papel crítico que faz parte da sua própria essência, e sem o qual ela se torna um exercício oco culturalmente empobrecedor e, sem dúvida, verdadeiramente redutor.

Para terminar, gostava de afirmar claramente que da minha posição favorável à filosofia analítica não se segue que eu ache que a filosofia continental deva acabar. Defendo e sempre defendi a tolerância e a liberdade. Acontece que, da mesma maneira que acho que os partidários da filosofia continental têm o direito de estudar, ensinar e divulgar a sua prática, também acho que os partidários da filosofia analítica têm o mesmo direito. Esta posição não deve confundir-se com um relativismo mais ou menos irresponsável, no qual tudo é igual a tudo; é apenas o resultado de um princípio que me parece sensato: nestas matérias pacíficas, as pessoas têm o direito de estar erradas. Compete ao público fazer a sua escolha.

*Desidério Murcho

Sociedade Portuguesa de Filosofia

Av. da República, 37, piso 4

1050 Lisboa

disputatio@mail.telepac.pt

 

 
Disputatio | A Journal of Philosophy
                           in the Analytic Tradition


Disputatio 2 (May 1997)
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Exercícios Eleáticos1

Fernando Ferreira
Universidade de Lisboa

Parmenides did not write as a cosmologist.
He wrote as a philosophical pioneer of the first water,
and any attempt to put him back into the tradition
that he aimed to demolish is a surrender to the diadoche­writers,
a failure to take him at his word []

G. E. L. Owen 1960, 85-102

§1. A nosso ver, Parménides de Eleia é o mais interessante filósofo pré­socrático. O interesse que lhe descobrimos não está dissociado de uma certa maneira de encarar e fazer filosofia, com as inquietações de índole conceptual, e correspondentes análises, a ocuparem um lugar privilegiado. Concordamos com G. E. L. Owen (vide epígrafe) e M. Furth em reconhecer em Parménides um pioneiro da filosofia portador de «um pensamento surpreendentemente próximo de algumas das preocupações filosóficas contemporâneas» (Furth 1968, 111­32) ainda que localizemos diferentemente deles a proveniência da sua singularidade. A tese central deste estudo é a de que, na raiz do pensamento de Parménides, se encontra uma certa concepção do significado das proposições, completamente inábil em providenciar significado às proposições falsas. No §3 explicamos em que consiste esta concepção - a que chamamos a teoria denotativa do significado das proposições - e no §4 mostramos como ela se articula com o poema de Parménides. Nesta introdução, e para já, socorremo­nos do seguinte extracto do Eutidemo de Platão para transmitir ao leitor o deslumbramento aporético a que as teses eleáticas conduziram:

Eutidemo A teu ver, Ctésipo, achas que é possível mentir?
Ctésipo Sim, por Zeus, a menos que tenha enlouquecido.
Eutidemo, Dizendo a coisa que se diz, ou não a dizendo?
Ctésipo Dizendo­a.
Eutidemo Ora, se se a diz, não se fala senão da realidade que precisamente se diz.
Ctésipo Como poderia isso ser de outra maneira?
Eutidemo Por outro lado, esta realidade de que se fala é uma só e única coisa, entre as outras coisas, das quais está separada.
Ctésipo Sim, perfeitamente.
Eutidemo Portanto, quando se diz uma coisa, diz­se uma coisa que é?
Ctésipo Sim.
Eutidemo Mas, então, se se diz realmente uma coisa que é e coisas que são, diz­se a verdade []

(Eutidemo, 283e­284b)2

Esta troca dialéctica torna patente uma inabilidade radical de dar significado à falsidade. Platão vai encarar esta inabilidade como um problema que urge resolver e, no Sofista, formula o que passamos a denominar de problema da falsidade:
[] estamos interessados num dificílimo trabalho de investigação, pois parecer, mas não ser, e afirmar, sem ser a verdade tudo isto sempre causou muita perplexidade, dantes e agora. É muito difícil, Teeteto, ver como se pode falar de modo a dizer ou a ter a opinião de que o que é falso é e, ao dizê­lo, não cair em contradição. (Sofista, 236e)

Alguns estudiosos reservam para o Sofista um lugar de grande destaque na filosofia. Notavelmente, evidencia­se nessa obra e pela primeira vez o carácter polissémico do verbo «ser». Notavelmente, também, avança­se com um tratamento correcto do conceito de «predicação», ainda que, nas palavras de Peter Geach (1972, 47), ofuscado (mais tarde) por Aristóteles na sua apresentação do cálculo silogístico como uma teoria de dois termos.3 Concomitantemente à análise do conceito de predicação, defendemos que Platão expõe uma teoria do significado que permite lidar com a falsidade. Esta teoria, que está na base da actual teoria condicional do significado das proposições (veja­se §2), não só sobrevive ao cálculo silogístico como constitui um dos seus pressupostos. É elucidativo, sem dúvida, contrastar as seguintes linhas de Aristóteles em Da Interpretação, 17a 27­29, com o diálogo do Eutidemo acima mencionado: «[] é possível afirmar o que pertence como não pertencendo, o que não pertence como pertencendo, o que pertence como pertencendo, e o que não pertence como não pertencendo [...]».4 Sem dúvida que neste meio tempo algo de importante se passou!

A sugestão de que Platão avança, no Sofista, uma teoria do significado alternativa à de Parménides, necessita, é claro, de uma defesa cuidada. Esta defesa inclui a ideia de que o conteúdo verdadeiramente inovador do Sofista apenas ocorre na sua parte final (em 259e­264d). Infelizmente, teremos de deixar este tipo de considerações para um outro estudo. Não obstante, na secção 3 do presente trabalho, faz­se uma alusão bastante explícita à denominada «tese da alteridade» proposta por Platão no Sofista (em 257b­259a); e isto num contexto em que se lhe atribui uma filiação ainda presa a uma teoria denotativa do significado (se bem que bastante mais branda que a original, devida a Parménides). Não avançamos nenhuma justificação para esta filiação: o leitor descrente poderá, no entanto, ignorar esta alusão, já que o argumento conducente à tese central deste estudo não se apoia nela.

Resta­nos, nesta introdução, adiantar algumas palavras respeitantes ao pano de fundo em que se desenrola o presente estudo. Como já demos a entender, preferimos ver o trabalho de Parménides como o produto de um arrojo intelectual singular que, objectivamente, propugna uma tese filosófica errónea, provoca uma viragem de monta na tradição pré­socrática e, não menos importante, levanta um problema filosófico delicado e difícil. Este problema é resolvido por Platão no Sofista, razão pela qual esta obra pode ser útil na análise do eleatismo. E, com efeito, o leitor atento reparará na influência do Sofista nas considerações que se seguem. Por outro lado, afastamos, e não estamos interessados, nas interpretações do eleata que o colocam entre os metafísicos especulativos que procuram responder a uma enorme Seinsfrage. Nem tão pouco pensamos que evitar estas especulações tornam Parménides, e as discussões em seu redor, menos interessantes. Pelo contrário, mantemos que amiúde não se tem uma genuína apreciação do grande esforço conceptual e do trabalho profundo que a posição de Parménides e a sua análise por Platão envolvem. Por último, estamos convencidos que hoje nos encontramos numa posição incomparavelmente superior à dos antigos para apreciar as subtilezas da questão parmenídea e os obstáculos no caminho da sua superação. Não nos coibimos de fazer uso do arsenal intelectual que, entretanto, se desenvolveu em vinte e quatro séculos e, em particular, dos avanços da análise lógica dos últimos cem anos.

§2. Um novo nome próprio é sempre um caso único: a apreensão do seu significado consiste em aprender a que coisa ele se refere. Em contrapartida, a apreensão do significado duma nova proposição quase nunca é excepcional, sendo esta uma condição necessária à comunicação. Surge, pois, a questão de explicar como é que, havendo um potencial número infinito de proposições nas trocas linguísticas, se apreende quase sempre de modo automático os seus significados. Esta questão pode ser elucidada se observarmos que compreender uma proposição consiste em saber que crença se adquire caso a consideremos verdadeira. Portanto, para compreender uma proposição é necessário saber quais são as suas condições de verdade. É neste ponto que a lógica desempenha um papel notável, ao explicar como é possível que um número finito de regras permita atribuir condições de verdade para um número infinito de proposições.

O cálculo proposicional é um caso exemplar. As suas proposições são obtidas recursivamente através de conectivos proposicionais, o que permite atribuir de forma sistemática os valores de verdade às diversas proposições. Assim, o valor de verdade da disjunção de duas proposições é falso se, e somente se, ambos os valores de verdade das proposições componentes o forem; de modo sobejamente conhecido tratam­se os restantes conectivos (negação, conjunção, implicação, etc.). O caso do cálculo de predicados, em que se usam quantificadores, é mais subtil, podendo ser tratado da forma como Tarski nos ensinou. O ponto a destacar nesta discussão é a análise duma proposição em termos de proposições mais simples.5

Claro que, na raiz destas análises, encontram­se invariavelmente proposições que já não são susceptíveis de ser analisadas em termos de proposições mais simples. Na expressão sintáctica destas proposições atómicas surge uma distinção fundamental entre, por um lado, símbolos predicativos e, por outro lado, constantes individuais, obtendo­se as formas proposicionais atómicas, como a concatenação dum determinado símbolo predicativo com uma sequência ordenada de constantes individuais. Para concretizar estas formas proposicionais e, assim, obter exemplos de proposições, substitui­se nas formas proposicionais atómicas o símbolo predicativo por uma expressão predicativa (um verbo ou uma forma verbal) e as constantes individuais por nomes próprios, pronomes ou descrições definidas. Eis alguns exemplos: «O Pedro estuda», «A Maria gosta do Pedro», «O António apresentou o Pedro à Maria». Agora, desde que se compreenda a noção de predicação verdadeira, e.g., a de um conceito se aplicar a um caso individual, obtém­se a condição de verdade para a forma proposicional Pa: ela é verdadeira se, e somente se, o conceito associado a P se aplica ao objecto a que a se refere.

Nesta breve discussão do significado das proposições à luz da lógica moderna há duas características notáveis a apontar. A primeira, de carácter estrutural, explica como um número finito de regras é suficiente para atribuir condições de verdade a um número infinito de proposições. A segunda, mais fundamental para o presente estudo, é o carácter condicional da atribuição dos valores de verdade às proposições, excluindo­as de qualquer papel denotativo. A uma teoria do significado que incorpora esta última característica chamamos uma teoria condicional do significado das proposições.

Resta­nos, nesta secção, discutir o seguinte: há linguagens que dividem as proposições em duas classes mutuamente exclusivas: as afirmativas e as negativas, sendo estas as negações daquelas. (Um exemplo típico é a linguagem do cálculo silogístico, em que há duas formas proposicionais afirmativas e outras duas negativas.) Admitindo como adquirida a atribuição de significado às proposições afirmativas, levanta­se a questão de atribuir significado às correspondentes proposições negativas: é o que denominamos de problema da negatividade. Esta questão tem uma solução trivial em teorias condicionais do significado: a condição de verdade (respectivamente, de falsidade) duma proposição negativa é a condição de falsidade (respectivamente, de verdade) da correspondente proposição afirmativa.

§3. A uma teoria em que as proposições são nomes de factos e cujos significados resultam dos factos que nomeiam, chamamos uma teoria denotativa do significado das proposições. Por exemplo, o significado da proposição «César atravessou o Rubicão» adviria do facto histórico da travessia do Rubicão por César. Uma tal teoria pressupõe uma ontologia de factos (que pode, ou não, conviver com uma ontologia de objectos) e desloca as dificuldades da atribuição de significado para o problema da referência. Não estamos interessados nestas dificuldades, queremos dar antes atenção à maneira como as teorias denotativas do significado lidam com os problemas da falsidade e da negatividade. No que diz respeito à falsidade, as teorias denotativas falham miseravelmente a provisão de significado: e.g., Otelo acredita falsamente que Desdémona ama Cássio, mas «Desdémona ama Cássio» é uma proposição sem significado, pois o amor de Desdémona por Cássio não existe. Como corolário desta incapacidade das teorias denotativas em solucionar o problema da falsidade, a colecção das proposições com significado não é fechada debaixo da operação de negação. Perde­se, pois, a faculdade das proposições se poderem contradizer. Diferentemente, e como veremos, o problema da negatividade pode ser enfrentado pelas teorias denotativas, se bem que, por vezes, à custa duma certa largueza ontológica. Os exemplos que se seguem discutem este tema.

1.º Exemplo:

Sintaxe: Há dezasseis proposições: xB, xP, yB, yP, wB, wP, zB, zP, ~xB, ~xP, ~yB, ~yP, ~wB, ~wP, ~zB e ~zP. As primeiras oito proposições são afirmativas e as outras são as respectivas negações.

Ontologia: É constituída por quatro factos, x, y, w, z:

Discussão: A atribuição de significado é a que naturalmente decorre de se pensar em x, y, w e z como nomes para os quadrados e em B e P como nomeando as qualidades «branco» e «preto». Assim, das proposições afirmativas, quatro têm significado xP, yB, wP, zP e denotam os factos acima exibidos (por ordem, da esquerda para a direita). As restantes quatro proposições afirmativas são destituídas de significado, pois não denotam. Que significado atribuir às proposições negativas verdadeiras ~xB, ~yP, ~wB e ~zB? O mais natural é atribuir­lhes os mesmíssimos factos que se atribuem a xP, yB, wP e zP (respectivamente). Esta atribuição levanta, porém, um problema: a inexistência de qualquer diferença de significado entre, por exemplo, xP e ~xB (entre «x é preto» e «x não é branco»). Num mundo a preto e branco (como o acima) tal é defensável. Mas num mundo em que existam outras cores e maneiras de as nomear, é uma posição dificilmente sustentável. Imagine­se que o último quadrado é azul e que nomeamos esta cor por A. Qual o significado de ~xA? O mesmo que o de ~xB? E qual o significado de ~zB? O de zA (o quadrado azul)? Voltaremos a estas questões mais tarde.

2.º Exemplo:

Sintaxe: O alfabeto é constituído por nove constantes 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9, três sinais especiais «,» (vírgula), «{» (chaveta esquerda) e «}» (chaveta direita), e duas cópulas «Î» e «Ï». Um núcleo de termo é uma palavra com um número ímpar de caracteres em que as posições pares são ocupadas por vírgulas e as posições ímpares por constantes. Por comodidade, e para que o número de núcleos de termos seja finito, exigimos que cada constante ocorra, quando muito, uma só vez em cada núcleo de termo. Também incluímos, excepcionalmente, a palavra vazia (i.e., de comprimento zero) entre os núcleos de termo. Um simples cálculo obtém 986 410 núcleos de termos. Um termo é a concatenação duma chaveta esquerda, com um núcleo de termo e uma chaveta direita (por esta ordem): {4,6,7}, {5}, {} e {6,4,7} são exemplos de termos. Uma proposição é a concatenação duma constante, com uma cópula e com um termo (por esta ordem): por exemplo, 5 Î {4,6,7} ou 4 Ï {7,9}. Se se usa a cópula tem­se uma proposição afirmativa; caso contrário, uma negativa. Ao todo são 17 755 380 proposições, das quais metade não vão ser providenciadas com significado (não vão denotar).

Ontologia: Os factos da forma n Î X (n é um elemento de X), onde n é um número natural menor que dez e X é um subconjunto de {1,2,3,4,5,6,7, 8,9}. Estamos perante uma ontologia com 2 304 factos.

Discussão: Utilizámos uma notação que torna clara a atribuição de significado que temos em mente para as proposições afirmativas. Por exemplo, o significado de 6 Î {4,6,7} é o facto de que 6 Î {4,6,7}. Note­se que a proposição 6 Î {6,4,7}, que é diferente da acima, tem exactamente o mesmo significado, como é desejável. Há uma maneira natural de estender a atribuição de significado às proposições negativas verdadeiras: por exemplo, o significado de 2 Ï {4,6,7} é o facto 2 Î {1,2,3,5,8,9}. Esta atribuição de significado parece ser pouco problemática; observe­se, porém, que atribui o mesmo significado a 2 Î {1,2,3,5,8,9} e a 2 Ï {4,6,7}.

3.º Exemplo:

O exemplo que se segue baseia­se no anterior, com a diferença de que o número de constantes é infinito, uma para cada número natural.6 A sintaxe é semelhante e a ontologia de factos consiste, agora, em todos as verdades da forma n X, onde n é um número natural qualquer e X é um subconjunto finito do conjunto ù dos números naturais. São À0 proposições e factos.

Nesta situação surge com agudeza o problema da negatividade: não há uma maneira natural de atribuir significado a 2 Ï {4,6,7}. Seria arbitrário atribuir a esta proposição, como anteriormente, o facto de que 2 Î {1,2,3,5, 8,9}. Porque não, em vez disso, 2 Î {1,2,3,5,8,9,10,11,25}? Ou 2  Î {2,3, 5}? O natural seria dizer que o significado de 2 Ï {4,6,7} é o facto de que 2  Î {1,2,3,5,8,9,10,11,12,13,14,...}, mas a nossa ontologia não comporta este facto, visto que o conjunto referido é infinito. Esta observação, porém, tem o mérito de sugerir o modo de enfrentar o problema da negatividade. A ideia é aumentar a ontologia de factos, tanto para poder fazer atribuições de significado verosímeis como para poder efectuar certas distinções relevantes. Vamos considerar como factos todas as verdades da forma n X, onde X pode ser um subconjunto qualquer (finito ou infinito) dos números naturais. Este aumento ontológico resolve­nos os problemas com o bónus adicional de que, ao contrário do 2.o exemplo, as proposições afirmativas nunca têm o mesmo significado das negativas. Não obstante, o leitor atento reparará que o aumento é um pouco extravagante pois adiciona 2À0 factos a uma ontologia original de À0 factos. É possível ser­se bastante mais económico... Basta considerar a (sub)ontologia constituída pelas situações da forma n Î X, com X restrito aos subconjuntos finitos ou co­finitos (i.e., de complementar finito) de ù.

Um modo alternativo, e habilidoso, de obter esta última ontologia (e a correspondente atribuição de significado), é efectuar aquilo que denominamos por manobra de Platão. Esta manobra consiste em adicionar à ontologia de objectos um novo ente, que notamos por «outro», e em aumentar a ontologia de factos de acordo com as seguintes especificações. Um facto tem a forma n e X, sendo n um número natural e X um subconjunto finito de ù È {outro}, em que:

n e X se, e somente se,
ou n Î X e outro Ï X
ou n Ï X e outro Î X.

Por exemplo, o significado de 2 Î {4,6,7} é 2 e {4,6,7,outro}. Esta ontologia tem a mesma forma da anterior, como fica patente pela correspondência que a cada facto n Î X, sendo X um subconjunto finito de ù, faz corresponder o facto n e X; e a cada facto n Î X, sendo X um subconjunto co­finito de ù, faz corresponder o facto n e Y È {outro}, onde Y é o conjunto complementar (em ù) de X.

1.o Exemplo (revisitado):

A manobra de Platão permite solucionar o problema da negatividade levantado na discussão do 1.o exemplo. Podemos considerar que nesse exemplo temos uma ontologia com sete entes (os quadrados x, y, w, z e as cores branca, preta e azul) e que cada um dos quatro factos é um «entrelaçamento» dum quadrado com uma cor: e.g., o terceiro facto é o entrelaçamento do quadrado w com a cor preta. Como no exemplo precedente, vamos adicionar um novo ente «outro» aos sete iniciais e aumentar (correspondentemente) a ontologia de quatro factos para uma de doze. Os factos originais são,

1) o entrelaçamento do quadrado x com a cor preta,
2) o entrelaçamento do quadrado y com a cor branca,
3) o entrelaçamento do quadrado w com a cor preta,
4) o entrelaçamento do quadrado z com a cor azul,
e os novos são,
5) o entrelaçamento do quadrado x com a cor branca e com o ente outro,
6)o entrelaçamento do quadrado x com a cor azul e com o ente outro,
7) o entrelaçamento do quadrado y com a cor preta e com o ente outro,
8) o entrelaçamento do quadrado y com a cor azul e com o ente outro,
9) o entrelaçamento do quadrado w com a cor branca e com o ente outro,
10) o entrelaçamento do quadrado w com a cor azul e com o ente outro,
11) o entrelaçamento do quadrado z com a cor branca e com o ente outro,
12) o entrelaçamento do quadrado z com a cor preta e com o ente outro.
Esta nova ontologia permite lidar efectuando as distinções de significado relevantes com as proposições negativas verdadeiras. Por exemplo, o significado de ~xA é o entrelaçamento n.o 6, o de ~xB o n.o 5, e o de ~zB o n.o 11.

Como se viu, uma teoria denotativa do significado das proposições pode fazer face ao problema da negatividade, se bem que à custa dum aumento da ontologia de factos. Este aumento é (na maior parte das vezes) incontornável, desde que se queiram fazer certas distinções de significado. No 1.o exemplo, com quatro quadrados e três cores, há vinte e quatro proposições, às quais metade, doze, nos propomos atribuir significado. Mantendo apenas os quatro factos da ontologia original, e sendo o significado duma proposição o facto que denota, terá necessariamente de haver proposições distintas com o mesmo significado. Por isso o aumento é inescapável. Este aumento é, no entanto, extremamente insatisfatório e corresponde a vazar para o domínio da ontologia o que, nas teorias condicionais do significado, se explica por meio de ficções lógicas (a negação, neste caso).

§4. A secção precedente tornou clara a razão por que uma teoria denotativa não obsta a que as proposições com significado se apresentem com uma de duas roupagens: a afirmativa ou a negativa. Atentemos, porém, a uma teoria denotativa de cariz monista, em que as proposições com significado vêm sempre com a mesma roupagem (a afirmativa). Neste caso, a negatividade conflui com a falsidade, com a falta de significado (denotação). É o que acontece com a teoria do significado implícita no poema de Parménides:

Vamos, vou dizer­te, e tu escuta e fixa as minhas palavras, quais os únicos caminhos que há para pensar: um, que é e que não é para não ser, é a viagem da Persuasão (pois acompanha a Verdade); o outro, que não é e que forçosamente é para não ser, esse te indico ser uma trilha de que nunca vêm notícias, pois não poderás conhecer o­que­não­é (pois isso não se pode consumar) nem indicá­lo []7
Neste fragmento, Parménides utiliza a imagética da viagem para introduzir os dois «únicos caminhos que há para pensar»: o estin (é), em 2.3, e o ouk estin (não é), em 2.5. Concordamos com Mourelatos, vendo nesta imagética um papel maior do que o mero artifício expositivo e/ou estilístico: por exemplo, a imagética sugere que para além dos caminhos existe uma viagem. Devemos, pois, interpretar cada um dos dois caminhos do poema como um suporte proposicional que enquadra e torna possível a investigação.8 Numa linguagem moderna isto equivale a encarar cada via como a raiz de carácter sintáctico que chancela a partição das proposições em duas classes distintas e mutuamente exclusivas: as afirmativas e as negativas. A investigação terá depois de se processar segundo uma estratégia que envolva um destes (ou ambos os) caminhos. Já não concordamos com Mourelatos em que se deva manter a mesma interpretação de suporte proposicional para as ocorrências do infinitivo mê einai (não ser) no fragmento em consideração. Nestes casos, einai tem uma função veriditiva,9 portanto semântica e metalinguística, com o papel de esclarecer qual a matéria de investigação adequada a cada uma das vias. Eis uma versão moderna dos versos 3 e 5:
se P é afirmativa então não é possível que P não seja o caso;
se P é negativa então é necessário que P não seja o caso,
(onde P é uma variável proposicional). As predicações são de carácter diferente nos antecedentes e consequentes destas duas implicações: nos antecedentes, as predicações («P é afirmativa»; «P é negativa») são de natureza sintáctica, enquanto nos consequentes são de natureza semântica («P não é o caso»). Esta relação entre forma sintáctica - representada em Parménides pelos caminhos e semântica (ser, ou não, o caso) é uma ideia revolucionária que lhe vai permitir atacar obliquamente certas cosmogonias, não através da crítica às propostas particulares que estas defendam, mas, sim, incidindo nas formas tomadas pelas proposições que as narram (veja­se adiante). A filosofia, depois de Parménides, já não seria a mesma.

Como vimos, o fragmento 2 insinua uma teoria denotativa do significado que identifica a falsidade com a negatividade. Como consequência, o segundo caminho existe somente como possibilidade formal, já que percorrê­lo acarretaria forjar proposições negativas que relatam o­que­não­é, as quais não têm significado (não denotam). É uma via «de que nunca vêm notícias» e Parménides classifica­a de «não verdadeira» (frag. 8.17 8 do poema de Parménides). Por outro lado, a viagem da Persuasão é, ao que se saiba, viável e tem como propósito relatar o que é o caso acompanhar a verdade (alêtheia). O fragmento 3, que um número significativo de estudiosos considera ser o segundo hemistíquio do verso 2.8, conclui: «pois o mesmo é para pensar e para ser». Esta frase identifica o significado (denotação) das proposições genuínas com o que é o caso. A seguinte tabela sumaria estas discussões:

 
suporte da investigação
matéria da investigação
resultados da investigação
1.o caminho
é
o que é o caso
relatos de verdade
2.o caminho
não é
o que não é o caso
nenhuns

No poema nunca se sugere que alguém procure investigar o que não é o caso, seja tomando o primeiro caminho, seja o segundo. Não obstante, Parménides discute o «costume muito experimentado» (frag. 7.3) duma «multidão indecisa» (frag. 6.7) de viajantes «bicéfalos» (frag. 6.5) que, ocasionalmente, se atrevem pela segunda via com o propósito de investigar o que é o caso. Parménides chama regressiva (palintropos, frag. 6.9) a este tipo de viagens presumivelmente porque amiúde se volta para trás para tomar o outro caminho e acusa­as de estarem na origem das «crenças dos mortais» (1.30). Esta maneira de viajar tem por base a ideia segundo a qual se pode ter acesso à verdade, não apenas através do primeiro caminho, mas também através do segundo. Ora, tal é um engano: como já observámos, a teoria do significado implícita no poema de Parménides destitui a negatividade de quaisquer pretensões à verdade (e ao significado). É isso mesmo que o eleata confirma quando insiste que «nunca isto será demonstrado: que o­que­não­é é» (frag. 7.1).10

No fragmento 8, Parménides enceta a tarefa de explorar o primeiro caminho. Os primeiros quatro versos são:

[...] Resta­nos falar de um só caminho: que é; neste caminho há inúmeros sinais: que o­que­é é ingénito e indestrutível, inteiro de um só tipo, imóvel e completo.

Não existe um consenso entre os especialistas sobre o que o sujeito to eon (traduzido por «o­que­é») refere, apenas que esta questão está estreitamente ligada à interpretação que se dá ao esti e ao einai do fragmento 2. De acordo com a leitura que avançámos com o «ser» a desempenhar, conforme o contexto, um papel de suporte proposicional ou um papel veriditivo - é natural explicar o­que­é como uma variável que toma valores em «factos». Esta sugestão partilha com a interpretação existencial do «ser» parmenídeo o mérito de justificar amenamente a «não consumação» inerente ao segundo caminho, pois o domínio denotativo da variável «o­que­não­é» seria vazio.11

A interpretação «factual» de o­que­é no fragmento 8 levanta, porém, a questão pertinente de explicar o que se entende por um facto ingénito, indestrutível, inteiro de um só tipo, imóvel e completo. Convenientemente, estas cinco qualificações exibem um paralelismo conspícuo com as formas verbais que se encontram, mais adiante, nos versos 38­41 do mesmo fragmento:

[...] Logo, tudo isto são meros nomes, que os homens instituíram, confiantes de que eram reais: originar­se e destruir­se, ser e não ser, mudar de lugar e alterar a cor brilhante.
Este paralelismo, em conjugação com os argumentos de Parménides nos versos intermédios 5­37, leva­nos a supor que cada uma das cinco propriedades avançadas em 3­4 se devam interpretar em função da crítica ao uso das correspondentes formas verbais em 40­41. Dizer que o­que­é é ingénito proíbe o uso do verbo gignesthai (originar­se, vir­a­ser) nos relatos de verdade. De facto, a maneira de regimentar um relato deste tipo dentro do esquema constituído pelos dois «únicos caminhos que há para pensar» envolve forçosamente uma passagem pela via negativa: relatar a origem de o­que­é exige uma proposição negativa e uma afirmativa. Por exemplo, se os céus e os mundos têm origem12 então um primeiro relato rezaria «não há céus nem mundos», e outro, posterior, «há céus e mundos». Apresentamos, abaixo, quatro exemplos coloquiais que intentam patentear as ligações entre as propriedades de to eon enumeradas em 3­4, os verbos proscritos em 40­41 e o surgimento da via negativa na arregimentação a que o fragmento 2 obriga:

propriedade
verbo proscrito
relato anterior
relato posterior
ingénito
o fogo originou­se na floresta
não há fogo na floresta
fogo na floresta
imperecível
todo o animal perece
o animal vive
o animal não está vivo
imóvel
a lua move­se
a lua está ali
a lua não está ali
completo
a cor das folhas altera­se
a folha é verde
a folha não é verde

Estas quatro propriedades previnem vários tons de mudança nos relatos de verdade. As duas primeiras afastam as tonalidades mais fortes: geração e destruição; no poema também se parece pôr em causa uma mudança de matiz mais moderado a transformação de uma coisa noutra («jamais a força da persuasão permitirá que de o­que­é surja algo para além dele próprio»13). As duas últimas propriedades previnem as mudanças de lugar (movimento) e de qualificação (i.e., alterações predicativas). Escolhemos deliberadamente fazer uma pausa antes de exemplificarmos a propriedade houlon mounogenes (inteiro de um só tipo) e a correspondente forma verbal einai te kai ouchi (ser e não ser). Neste caso defrontamo­nos com uma situação interpretativa mais difícil do que as anteriores, tanto devido a razões extrínsecas como intrínsecas: por um lado a qualificação de o­que­é como houlon mounogenes tem proporcionado uma base de apoio a certas interpretações monistas do pensamento de Parménides; por outro lado, e ao contrário das outras quatro formas verbais, constata­se a ausência duma temporalidade inerente a einai te kai ouchi.14 Seguindo o método utilizado acima, devemos interpretar a propriedade houlon mounogenes como proibindo o uso da expressão «ser e não ser» num relato de verdade. O seguinte exemplo coloquial ajuda a esclarecer o que se tem em mente: a propriedade «inteiro de um só tipo» proíbe relatos da forma «o ar está quente (aqui dentro) mas (lá fora) não está». Assim, numa situação predicativa, a censura de Parménides dirige­se à menção de divisões no sujeito (i.e., Parménides não admite as qualificações múltiplas, simultâneas e contraditórias que os termos de massa 15 podem ter); mais fortemente, dirige­se mesmo a quaisquer variações internas ao sujeito (veja­se 8.23­24).16

§5. A decifração dos sinais do primeiro caminho leva a certas conclusões, não de primeira ordem, mas de segunda. Parménides não adianta nenhuns relatos de verdade, apenas defende que esses relatos, a serem genuínos, têm que obedecer a certos requisitos. Como diz Curd (1991), as preocupações de Parménides são de índole metodológica. Claro que os requisitos que o eleata aduz no que respeita à forma dos relatos condiciona, oblíqua e fortemente, a visão do que é relatado. É consensual que implica um mundo radicalmente fixo, irrevogável e alheio a qualquer mudança, por mais pequena que seja, classificando­se o­que­é de uno (hen), coeso (suneches) (vide frag. 8.6), definido ou limitado17 e, acrescentamos, definitivo. Nada de portas abertas ou entreabertas à mudança: «a forte Necessidade retém (o­que­é) nos liames do definido».

A interpretação de Parménides como um monista perpassa todos os tratamentos tradicionais do seu pensamento. Porém, este amplo consenso em torno do monismo parmenídeo tem sido posto em causa (nomeadamente quanto ao seu sentido) por vários autores, notavelmente J. Barnes, A. Mourelatos e P. Curd. Às passagens do poema que servem de sustento a certas teses monistas têm sido dadas leituras alternativas. Da nossa interpretação não decorre qualquer compromisso monista tradicional, seja numérico, material ou predicativo.18 Tomemos, por exemplo, a passagem que classifica o­que­é de uno: esta passagem deve ser interpretada como adiantando uma visão atómica dos factos; ou, mudando de perspectiva (e caindo num certo anacronismo), como propugnando a tese de que as proposições genuínas constituem unidades insusceptíveis de análise em termos de subproposições. A visão de Parménides é, pois, compatível com uma multiplicidade de factos, ainda que estes tenham de ser absolutamente desconexos entre si. Com a palavra «desconexos» pretendemos transmitir a noção de que os factos ou, se preferirmos, as proposições que os denotam não se podem combinar para dar origem a outros factos (proposições): a lógica (combinatorial) é completamente alheia ao pensamento de Parménides.19

A forma e, principalmente, o conteúdo particular dos «relatos de verdade» ficam, em certa medida, indeterminados nas teses de Parménides. Se bem que seja bastante plausível que Parménides tenha tido em mente relatos que hoje concordaríamos condizerem com a forma predicativa, não é de excluir que os relatos não pudessem também assumir outras formas, e bem mais complexas. Tomemos a proposição «sete é um número primo» ou «o sol é brilhante»: são relatos predicativos, consentâneos com os cinco requisitos parmenídeos. Considere­se, agora, a proposição «num triângulo rectângulo o quadrado da hipotenusa é a soma dos quadrados dos catetos». Esta proposição é muito mais complexa já não é predicativa mas preenche facilmente todos os requisitos parmenídeos, apenas com o possível falhanço do terceiro. Porém, a nosso ver, alimentar a ideia deste falhanço implica sustentar uma visão muito forte do que se entende por «inteiro de um só tipo» e «não divisível». Tal visão está, a nosso ver, ausente do poema. Damos preferência, até ver, a uma interpretação minimalista.

Fernando Ferreira
Faculdade de Ciências, Departamento de Matemática
Rua Ernesto de Vasconcelos, Bloco C1, piso 3
1700 Lisboa
ferferr@ptmat.lmc.fc.ul.pt


Referências

Barnes, J. 1979 The Presocratic Philosophers, Vol. I. Londres: Routledge & Keagan Paul, 2.ª ed.

Coxon, A. H. 1986 The Fragments of Parmenides. Assen: Van Gorcum.

Curd, Patricia 1991 Parmenidean Monism. Phronesis, vol. XXXVI/3, 241­64.

Furth, Montgomery 1968 Elements of Eleatic Ontology. Journal of the History of Philosophy, 6.

Gallop, D., 1984 Parmenides of Elea: Fragments. Toronto: University of Toronto.

Geach, Peter 1972 Logic Matters. Oxford: Blackwell, 2.a ed.

Kahn, Charles 1969 The Thesis of Parmenides. The Review of Metaphysics, 22, 700­24.

Kirk, G. e Raven, John 1957 The Presocratic Philosophers. Cambridge: Cambridge University Press.

Kneale, William e Kneale Martha 1972 O Desenvolvimento da Lógica. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

Mourelatos, Alexander 1970 The Route of Parmenides. New Haven: Yale University Press.

Mourelatos, Alexander 1979 Some Alternatives in Interpreting Parmenides. The Monist 62 (1979), pp. 3­14.

Owen, G. E. L. 1960 Eleatic Questions. Classical Quarterly, 10.

Pereira, M. H. Rocha 1990 Hélade: Antologia da cultura grega. Coimbra: Instituto de Estudos Clássicos, 5.a ed.

Quine, W. O. 1960 Word and Object. Boston: MIT Press.

Santos, J. Trindade 1992 Antes de Sócrates. Lisboa: Gradiva, 2.a ed.


Notas

  1. Este trabalho deve bastante a J. Trindade Santos, que acompanhou, influenciou e criticou - de forma aberta e frontal, como é seu timbre - várias versões do texto. É justo dizer que, sem o estímulo que retirámos das suas críticas, teríamos produzido um outro trabalho, menos satisfatório. Deixo­lhe, pois, um agradecimento especial. Também beneficiámos de algumas sugestões de pormenor por ocasião da leitura e discussão deste ensaio num encontro realizado na Sociedade Portuguesa de Filosofia: o meu obrigado a João Branquinho, António Marques, João Sàágua e António Zilhão.
  2. Consulte­se, também, a passagem 285d­286e.
  3. Há uma dualidade fundamental no conceito de predicação que, na notação da lógica moderna, se espelha na distinção entre símbolos predicativos (letras maiúsculas, P, Q, R, ...) e constantes individuais (letras minúsculas, a, b, c, ...), e de cujas concatenações (Pa, Qc, Ra, ...) se originam as predicações. No cálculo silogístico, Aristóteles vê­se confrontado com a necessidade de os seus termos terem de assumir tanto a posição predicativa como a de sujeito (pense­se no termo médio de Barbara ou nas regras de conversão). Assim, segundo Geach, assiste­se com Aristóteles à transição de uma teoria predicativa (exposta no Sofista, baseada na dualidade nome/verbo) para uma teoria que Geach denomina de two­term theory. E conclui: «Aristotle's going over to the two­term theory was a disaster, comparable only to the Fall of Adam» (Geach 1972, 47).
  4. Em contextos jurídicos, Aristóteles usa o termo hyparchô para designar o facto de um predicado pertencer a um sujeito (Retórica, I 10, 1368b 29­32). Parece­nos ser este o sentido a destacar nesta utilização do verbo. (Agradecemos a J. Trindade Santos esta observação, assim como a tradução da passagem.) Os Kneale, (1972, 64­5), avançam uma explicação linguística interessante para o facto de Aristóteles preferir, por vezes, usar a forma predicativa complicada hyparchô, ao invés de uma forma mais simples.
  5. Para sermos precisos, deveríamos ter dito «em termos de formas proposicionais mais simples».
  6. Ao considerarmos um alfabeto infinito saímos do domínio puramente sintáctico. Porém, como é sobejamente conhecido, o presente aparato pode reformular­se de modo a envolver apenas um número finito de símbolos: basta gerar a infinitude dos números naturais através dos dois símbolos 1 e ' (sucessor).
  7. Esta é a uma tradução do fragmento 2 do poema de Parménides, em que a importância e o assombro da mensagem eleática são veiculados pelo carácter divino da revelação de uma deusa. A tradução é canónica, excepto (talvez) no último hemistíquio do verso 6, que se deve a Mourelatos 1970 («a path from which no tidings ever come»). Para além disso, evitou­se introduzir uma modalidade bastante usual no verso 3. Seguimos a doxografia ortodoxa de Diels­Kranz para nomear os fragmentos do poema. Consultámos, principalmente, as traduções de: Mourelatos 1970; Gallop 1984; Coxon 1986; Barnes 1979; Pereira 1990; Santos 1992 e, também do mesmo autor, umas notas intituladas «Parménides e Platão».
  8. Mourelatos 1979 atribui esta ideia de suporte ou esquema proposicional a Guido Calogero, no seu Studi sull' Eleatismo. Mourelatos patenteia a função esquemática do «é» eleático com o artifício notacional «__ é __», onde os traços envolvem um sujeito e um predicado omissos. Não obstante, observe­se que a nossa interpretação não se compromete somente com a forma proposicional predicativa.
  9. A interpretação veriditiva do «é» parmenídeo aparece no artigo de Kahn 1969.
  10. Esta passagem tem a peculiaridade notável, não espelhada na tradução, de ter a forma nominal do verbo ser no plural: einai mé eonta. A leitura que propomos atribui ao infinitivo einai uma função veriditiva e à forma substantiva plural mé eonta uma função «factual». Consulte­se mais adiante a discussão do fragmento 8.
  11. Entre os defensores desta interpretação contam­se Kirk e Raven 1957; Owen 1960 e Barnes 1979.
  12. A alusão a Anaximandro (DK 12a 9) não é, claro, inocente.
  13. Vide frag. 8.12­3. Não há consenso entre os especialistas sobre a tradução desta passagem. Seguimos a versão de Barnes 1979.
  14. Compare­se com a análise de Owen 1960, 97.
  15. «Mass terms»: consulte­se Quine 1960, secção 19.
  16. Claro que estamos a sugerir que estas linhas e a precedente (a 8.22) discutem a qualificação «houlon mounogenes».
  17. Faz­se alusão às várias ocorrências de palavras de tema peira no poema (e.g., a passagem 8.30­1, traduzida no final do parágrafo). No fragmento 8 este tema vem associado a uma imagem de rigidez coagida. Gostamos de ver nesta coacção o carácter limitativo/definidor duma proposição (notavelmente - no caso predicativo - a limitação do sujeito pelo predicado). Sem dúvida que se pressente nesta rigidez coagida uma crítica ao apeiron de Anaximandro.
  18. Estas três versões do monismo discutem­se em Curd 1991.
  19. Será que esta inabilidade de obter novas proposições a partir duma combinação de outras e, reciprocamente, de analisar proposições como combinação de outras é o assunto do fragmento 4?


 
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ANTOLOGIA DOS POEMAS DURIENSES

I

Descalça vai para a fonte
Leonor pela verdura:
Vai formosa e não segura.

II

Se tivesse umas chinelas
iria melhor...; mas não:
com dinheiro das chinelas
compra um pouco mais de pão.
Virá o dia em que os pés
não sintam a terra dura?
Leonor sonha de mais:
vai formosa e não segura.

Formosa! Não vale a pena
ter nos olhos uma aurora
quando na vida que vida!
o sol se foi embora.
Se os filhos se alimentassem
com a sua formosura...
Leonor pensa de mais:
vai formosa e não segura.

Há verduras pelos prados,
há verduras no caminho;
no olmo de ao pé da fonte
canta, livre, um passarinho,
Mas ela não canta, não,
que a voz perdeu a doçura.
Leonor sofre de mais:
vai formosa e não segura.

Porque sofre? Nunca soube
nem saberá a razão.
Vai encher a talha de água,
só não enche o coração.
Virá um dia... virá...
Os olhos voam na altura
Leonor não anda: sonha.
Vai formosa e não segura.




LEONOR

A Leonor continua descalça,
o que sempre lhe deu certa graça.

Pelo menos não cheira a chulé
e tem nuvem de pó sobre ò pé.

Digam lá se as madames do Alvor
são tão lindas como esta Leonor

Um filhito ranhoso na mão,
uma ideia já podre no pão.

Meia dúzia de sonhos partidos,
a seus pés, como cacos de vidros.

Digam lá se as madames do Alvor
são tão lindas como esta Leonor.


António Cabral, Antologia dos Poemas Durienses, Chaves, Edições Tartaruga, 1999.

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