Filosofia
e ciências da natureza: alguns elementos históricos
Aires Almeida
Este texto pretende oferecer ao aluno uma panorâmica geral e introdutória do modo como os filósofos têm encarado as ciências
da natureza ao longo da história, e apresentar simultaneamente alguns elementos básicos da própria história do desenvolvimento
científico. Nestas páginas encontram-se alguns elementos da história da ciência, mas, sobretudo, da história da filosofia
da ciência, assim como elementos de história das ideias em geral e de história da filosofia em particular; isto é, trata-se
em grande parte de uma panorâmica do modo como os filósofos têm encarado a ciência ao longo do tempo, e não tanto uma descrição,
ainda que geral, do desenvolvimento da própria ciência. Os desenvolvimentos científicos surgem apenas como pano de fundo.
Procurar ver como ao longo da história a pergunta filosófica «O que é a ciência da natureza?» seria respondida, pareceu-me
uma boa maneira de orientar este texto. Estas páginas incluem, como ilustração das ideias aqui apresentadas, algumas passagens
dos filósofos e cientistas referidos. Apesar de essas passagens serem escolhidas a pensar na facilidade de compreensão por
parte dos alunos, todo o texto pode ser lido passando por cima delas sem que algo de essencial se perca.
Apesar de o termo "ciência" ser muito abrangente, neste texto iremos sobretudo centrar a nossa atenção nas ciências da
natureza. Pelo facto de as ciências da natureza, e em particular a física e a astronomia, se terem desenvolvido mais cedo
do que as ciências sociais, exerceram e continuam a exercer uma influência assinalável no modo como os filósofos encaram a
ciência acontecendo até muitas vezes que eles usam o termo "ciência" como abreviatura de "física". Ao longo do texto irei
muitas vezes usar o termo «ciência» para falar das ciências da natureza; quando falar das ciências formais como a geometria
ou a matemática em geral, será suficientemente claro que já não estou a falar de ciências da natureza.
1. Os gregos
Mitos e deuses
Quando surgiu a ciência? Esta parece ser uma pergunta simples. Contudo, tem frequentemente dado origem a longas discussões.
Discussões que acabam quase sempre por se deslocar para uma outra pergunta mais básica: o que é a ciência? Mais básica,
pois a resposta para aquela depende da solução encontrada para esta.
Ora, o termo "ciência" nem sempre foi entendido da mesma maneira e ainda hoje as opiniões acerca do que deve ou não ser
considerado como científico continuam divididas. Uma definição rigorosa e consensual de ciência é, pois, algo difícil de estabelecer.
Mas isso não nos deve impedir de avançar. Assim, a melhor maneira de começar talvez seja a de correr o risco de propor
uma definição de ciência que, apesar de imprecisa, nos possa servir como ponto de partida, mesmo que venha depois a ser corrigida:
a ciência da natureza é o estudo sistemático e racional, baseado em métodos adequados de prova, da natureza e do seu funcionamento.
Muitas das perguntas mais elementares que os seres humanos colocam a si próprios desde que são seres humanos são perguntas
que podem dar origem a estudos científicos. Eis alguns exemplos dessas perguntas: Porque é que chove? O que é o trovão?
De onde vem o relâmpago? Por que razão crescem as ervas? Por que razão existem os montes? Por que razão tenho fome? Por que
razão morrem os meus semelhantes? Porque é que cai a noite e a seguir vem o dia de novo? O que são as estrelas? Por que razão
voam os pássaros?...
Mas estas perguntas podem dar origem também a outro tipo de respostas que não as científicas; podem dar origem a respostas
de carácter religioso e mítico. Essas respostas têm a característica de não se basearem nos métodos mais adequados e de não
serem o produto de estudos sistemáticos. Uma resposta mítica ou religiosa apela à vontade de um Deus ou de deuses e conta
uma história da origem do universo. Essa resposta não se baseia em estudos sistemáticos da natureza, mas antes na observação
diária não sistemática; e não são estudos racionais dado que não encorajam a crítica, mas antes a aceitação religiosa. Isto
não quer dizer que as respostas míticas e religiosas não tivessem qualquer valor. Por exemplo, é óbvio que numa altura em
que a ciência, com os seus métodos racionais de prova, ainda não estava desenvolvida, as explicações míticas e religiosas
eram pelo menos uma maneira de responder à curiosidade natural dos seres humanos. Além disso, as explicações míticas e religiosas
de um dado povo dão a esse povo uma importância central na ordem das coisas. E têm ainda outra característica importante:
essas explicações constituem muitas vezes códigos de conduta moral, determinando de uma forma integrada com a origem mítica
do universo, o que se deve e o que não se deve fazer.
As explicações míticas e religiosas foram antepassados da ciência moderna, não por darem importância central aos seres
humanos na ordem das coisas nem por determinarem códigos de conduta baseados na ordem cósmica, mas por ao mesmo tempo oferecerem
explicações de alguns fenómenos naturais apesar de essas explicações não se basearem em métodos adequados de prova nem na
observação sistemática da natureza.
Os primeiros filósofos-cientistas
A ciência da natureza é diferente do mito e da religião. A ciência baseia-se em observações sistemáticas, é um estudo racional
e usa métodos adequados de prova. Como é natural, os primeiros passos em direcção à ciência não revelam ainda todas as características
da ciência revelam apenas algumas delas. O primeiro, e tímido, passo na direcção da ciência só foi dado no início do séc.
VI a. C. na cidade grega de Mileto, por aquele que é apontado como o primeiro filósofo, Tales de Mileto.
Tales de Mileto acreditava em deuses. Só que a resposta que ele dá à pergunta acerca da origem ou princípio de tudo o que
vemos no mundo já não é mítica; já não se baseia em entidades sobrenaturais.. Dizia Tales que o princípio de todas as coisas
era algo que por todos podia ser directamente observado na natureza: a água. Tendo observado que a água tudo fazia crescer
e viver, enquanto que a sua falta levava os seres a secar e morrer; tendo, talvez, reparado que na natureza há mais água do
que terra e que grande parte do próprio corpo humano era formado por água; verificando que esse elemento se podia encontrar
em diferentes estados, o líquido, o sólido e o gasoso, foi assim levado a concluir que tudo surgiu a partir da água. A explicação
de Tales ainda não é científica; mas também já não é inteiramente mítica. Têm características da ciência e características
do mito. Não é baseada na observação sistemática do mundo, mas também não se baseia em entidades míticas. Não recorre a métodos
adequados de prova, mas também não recorre à autoridade religiosa e mítica.
Este último aspecto é muito importante. Consta que Tales desafiava aqueles que conheciam as suas ideias a demonstrar
que não tinha razão. Esta é uma característica da ciência e da filosofia que se opõe ao mito e à religião. A vontade de discutir
racionalmente ideias, ao invés de nos limitarmos a aceitá-las, é um elemento sem o qual a ciência não se poderia ter desenvolvido.
Uma das vantagens da discussão aberta de ideias é que os defeitos das nossas ideias são criticamente examinados e trazidos
à luz do dia por outras pessoas. Foi talvez por isso que outros pensadores da mesma região surgiram apresentando diferentes
teorias e, deste modo, se iniciou uma tradição que se foi gradualmente afastando das concepções míticas anteriores. Assim
apareceram na Grécia, entre outros, Anaximandro (séc. VI a. C.), Heraclito (séc. VI/V a. C.), Pitágoras (séc. VI a. C.), Parménides
(séc. VI/V a. C.) e Demócrito (séc. V/IV a. C.). Este último viria mesmo a defender que tudo quanto existia era composto de
pequeníssimas partículas indivisíveis (atomoi), unidas entre si de diferentes formas, e que na realidade nada mais
havia do que átomos e o vazio onde eles se deslocavam. Foi o primeiro grande filósofo naturalista, que achava que não havia
deuses e que a natureza tinha as suas próprias leis.
As ciências da natureza estavam num estado primitivo; pouco mais eram do que especulações baseadas na observação avulsa.
Mas as ciências matemáticas começaram também desde cedo a desenvolver-se, e apresentaram desde o início muitos mais resultados
do que as ciências da natureza. Pitágoras, por exemplo, descobriu vários resultados matemáticos importantes, e o nome dele
ainda está associado ao teorema de Pitágoras da geometria (apesar de não se saber se terá sido realmente ele a descobrir este
teorema, se um discípulo da sua escola). A escola pitagórica era profundamente mística; atribuía aos números e às suas relações
um significado mítico e religioso. Mas os seus estudos matemáticos eram de valor, o que mostra mais uma vez como a ciência
e a religião estavam misturadas nos primeiros tempos. Afinal, a sede de conhecimento que leva os seres humanos a fazer ciências,
religiões, artes e filosofia é a mesma.
O maior desenvolvimento das ciências matemáticas teve repercussões importantíssimas para o desenvolvimento da ciência,
para a filosofia da ciência e para a filosofia em geral. Os resultados matemáticos tinham uma característica muito diferente
das especulações sobre a origem do universo e de todas as coisas. Ao passo que havia várias ideias diferentes quanto à origem
das coisas, os resultados matemáticos eram consensuais. Eram consensuais porque os métodos de prova usados eram poderosos;
dada a demonstração matemática de um resultado, era praticamente impossível recusá-lo.
A matemática tornou-se assim um modelo da certeza. Mas este modelo não é apropriado para o estudo da natureza, pois a natureza
depende crucialmente da observação. Além disso, não se pode aplicar a matemática à natureza se não tivermos à nossa disposição
instrumentos precisos de quantificação, como o termómetro ou o cronómetro. Assim, o sentimento de alguns filósofos era (e
por vezes ainda é) o de que só o domínio da matemática era verdadeiramente «científico» e que só a matemática podia oferecer
realmente a certeza. Só Galileu e Newton, já no século XVII, viriam a mostrar que a matemática se pode aplicar à natureza
e que as ciências da natureza têm de se basear noutro tipo de observação diferente da observação que até aí se fazia.
Platão e Aristóteles
Uma das preocupações de Platão (428-348 a.C.) foi distinguir a verdadeira ciência e o verdadeiro conhecimento da mera opinião
ou crença. Um dos problemas que atormentaram os filósofos gregos em geral e Platão em particular, foi o problema do fluxo
da natureza. Na natureza verificamos que muitas coisas estão em mudança constante: as estações sucedem-se, as sementes transformam-se
em árvores, os planetas e estrelas percorrem o céu nocturno. Mas como poderemos nós ter a esperança de conseguir explicar
os fenómenos naturais, se eles estão em permanente mudança? Para os gregos, isto representava um problema por alguns dos motivos
que já vimos: não tinham instrumentos para medir de forma exacta, por exemplo, a velocidade; e assim a matemática, que constituía
o modelo básico de pensamento científico, era inútil para estudar a natureza. A matemática parecia aplicar-se apenas a domínios
estáticos e eternos. Como o mundo estava em constante mudança, parecia a alguns filósofos que o mundo não poderia jamais ser
objecto de conhecimento científico.
Era essa a ideia de Platão. Este filósofo recusava a realidade do mundo dos sentidos; toda a mudança que observamos diariamente
era apenas ilusão, reflexos pálidos de uma realidade supra-sensível que poderia ser verdadeiramente conhecida. E a geometria,
o ramo da matemática mais desenvolvida do seu tempo, era a ciência fundamental para conhecer o domínio supra-sensível. Para
Platão, só podíamos ter conhecimento do domínio supra-sensível, a que ele chamou o domínio das Ideias ou Formas; do mundo
sensível não podíamos senão ter opiniões, também elas em constante fluxo. O domínio do sensível era, para Platão, uma forma
de opinião inferior e instável que nunca nos levaria à verdade universal, eterna e imutável, já que se a mesma coisa fosse
verdadeira num momento e falsa no momento seguinte, então não poderia ser conhecida.
Podemos ver a distinção entre os dois mundos, que levaria à distinção entre ciência e opinião, na seguinte passagem de
um dos seus diálogos:
Há que admitir que existe uma primeira realidade: o que tem uma forma imutável, o que de nenhuma maneira nasce nem perece,
o que jamais admite em si qualquer elemento vindo de outra parte, o que nunca se transforma noutra coisa, o que não é perceptível
nem pela vista, nem por outro sentido, o que só o entendimento pode contemplar. Há uma segunda realidade que tem o mesmo nome:
é semelhante à primeira, mas é acessível à experiência dos sentidos, é engendrada, está sempre em movimento, nasce num lugar
determinado para em seguida desaparecer; é acessível à opinião unida à sensação.
Platão, Timeu
Conhecer as ideias seria o mesmo que conhecer a verdade última, já que elas seriam os modelos ou causas dos objectos sensíveis.
Como tal, só se poderia falar de ciência acerca das ideias, sendo que estas não residiam nas coisas. Procurar a razão de ser
das coisas obrigava a ir para além delas; obrigava a ascender a uma outra realidade distinta e superior. A ciência, para Platão
não era, pois, uma ciência acerca dos objectos que nos rodeiam e que podemos observar com os nossos sentidos. Neste aspecto
fundamental é que o principal discípulo de Platão, Aristóteles (384-322 a.C.), viria a discordar do mestre.
Aristóteles não aceitou que a realidade captada pelos nossos sentidos fosse apenas um mar de aparências sobre as quais
nenhum verdadeiro conhecimento se pudesse constituir. Bem pelo contrário, para ele não havia conhecimento sem a intervenção
dos sentidos. A ciência, para ele, teria de ser o conhecimento dos objectos da natureza que nos rodeia.
É verdade que os sentidos só nos davam o particular e Aristóteles pensava que não há ciência senão do universal. Mas, para
ele, e ao contrário do seu mestre, o universal inferia-se do particular. Aristóteles achava que, para se chegar ao conhecimento,
nos devíamos virar para a única realidade existente, aquela que os sentidos nos apresentavam.
Sendo assim, o que tínhamos de fazer consistia em partir da observação dos casos particulares do mesmo tipo e, pondo de
parte as características próprias de cada um (por um processo de abstracção), procurar o elemento que todos eles tinham em
comum (o universal). Por exemplo, todas as árvores são diferentes umas das outras, mas, apesar das suas diferenças, todas
parecem ter algo em comum. Só que não poderíamos saber o que elas têm em comum se não observássemos cada uma em particular,
ou pelo menos um elevado número delas. Ao processo que permite chegar ao universal através do particular chama-se por vezes
«indução». A indução é, pois, o método correcto para chegar à ciência, tal como escreveu Aristóteles:
É evidente também que a perda de um sentido acarreta necessariamente o desaparecimento de uma ciência, que se torna impossível
de adquirir. Só aprendemos, com efeito, por indução ou por demonstração. Ora a demonstração faz-se a partir de princípios
universais, e a indução a partir de casos particulares. Mas é impossível adquirir o conhecimento dos universais a não ser
pela indução, visto que até os chamados resultados da abstracção não se podem tornar acessíveis a não ser pela indução. (...)
Mas induzir é impossível para quem não tem a sensação: porque é nos casos particulares que se aplica a sensação; e para estes
não pode haver ciência, visto que não se pode tirá-la de universais sem indução nem obtê-la por indução sem a sensação.»
Aristóteles, Segundos Analíticos
Aristóteles representa um avanço importante para a história da ciência. Além de ter fundado várias disciplinas científicas
(como a taxionomia biológica, a cosmologia, a meteorologia, a dinâmica e a hidrostática), Aristóteles deu um passo mais na
direcção da ciência tal como hoje a conhecemos: pela primeira vez encarou a observação da natureza de um ponto de vista mais
sistemático. Ao passo que para Platão a verdadeira ciência se fazia na contemplação dos universais, descurando a observação
da natureza que é fundamental na ciência, Aristóteles dava grande importância à observação.
Aristóteles desenvolveu teorias engenhosas sobre muitas áreas da ciência e da filosofia. A própria filosofia da ciência
foi pela primeira vez estudada com algum rigor por ele. Aristóteles achava que havia vários tipos de explicações, que correspondiam
a vários tipos de causas. Um desses tipos de causas e de explicações era fundamental, segundo Aristóteles: a explicação teleológica
ou finalista. Para Aristóteles, todas as coisas tendiam naturalmente para um fim (a palavra portuguesa «teleologia» deriva
da palavra grega para fim: telos), e era esta concepção teleológica da realidade que explicava a natureza de
todos os seres. Esta concepção da ciência como algo que teria de ser fundamentalmente teleológica iria perdurar durante muitos
séculos, e constituir até um obstáculo importante ao desenvolvimento da ciência. Ainda hoje muitas pessoas pensam que a ciência
contemporânea descreve o modo como os fenómenos da natureza ocorrem, mas que não explica o porquê desses fenómenos; isto é
uma ideia errada, que resulta ainda da ideia aristotélica de que só as explicações finalistas são verdadeiras explicações.
Devido a um conjunto de factores, a Grécia não voltou a ter pensadores com a dimensão de Platão e Aristóteles. Mesmo assim
apareceram ainda, no séc. III a. C., alguns contributos para a ciência, tais como os Elementos de Geometria de
Euclides, as descobertas de Arquimedes na Física e, já no séc. II, Ptolomeu na astronomia.
2. A idade média
Crer para compreender
Entretanto, o mundo grego desmoronou-se e o seu lugar cultural viria, em grande parte, a ser ocupado pelo império romano.
Entretanto, surge uma nova religião, baseada na religião judaica e inspirada por Jesus Cristo, que a pouco e pouco foi ganhando
mais adeptos. O próprio imperador romano, Constantino, converteu-se ao cristianismo no início do século IV, acabando o cristianismo
por se tornar a religião oficial do Império Romano. Inicialmente pregada por Cristo e seus apóstolos, a sua doutrina veio
também a ser difundida e explicada por muitos outros seguidores, estando entre os primeiros S. Paulo e os padres da igreja
dos quais se destacou S. Agostinho (354-430).
Tratava-se de uma doutrina que apresentava uma mensagem apoiada na ideia de que este mundo era criado por um Deus único,
omnipotente, omnisciente, livre e infinitamente bom, tendo sido nós criados à sua imagem e semelhança. Sendo assim, tanto
os seres humanos como a própria natureza eram o resultado e manifestação do poder, da sabedoria, da vontade e da bondade divinas.
Como prova disso, Deus teria enviado o seu filho, o próprio Cristo, e deixado a sua palavra, as Sagradas Escrituras. Por sua
vez, os seres humanos, como criaturas divinas, só poderiam encontrar o sentido da sua existência através da fé nas palavras
de Cristo e das Escrituras. Uma das diferenças fundamentais do cristianismo em relação ao judaísmo consistia na crença de
que Jesus era um deus incarnado, coisa que o judaísmo sempre recusou e continua a recusar.
A religião cristã acabou por ser a herdeira da civilização grega e romana. Aquando da derrocada do império romano, foram
os cristãos e os árabes , espalhados por diversos mosteiros, que preservaram o conhecimento antigo. Dada a sua formação essencialmente
religiosa, tinham tendência para encarar o conhecimento, sobretudo o conhecimento da natureza, de uma maneira religiosa. O
nosso destino estava nas mãos de Deus e até a natureza nos mostrava os sinais da grandeza divina. Restava-nos conhecer a vontade
de Deus. Só que, para isso, de nada serve a especulação filosófica se ela não for iluminada pela fé. E o conhecimento científico
não pode negar os dogmas religiosos, e deve até fundamentá-los. A ciência e a filosofia ficam assim submetidas à religião;
a investigação livre deixa de ser possível. Esta atitude de totalitarismo religioso irá acabar por ter consequências trágicas
para Galileu e para Giordano Bruno (1548-1600), tendo este último sido condenado pela Igreja em função das suas doutrinas
científicas e filosóficas: foi queimado vivo.
As teorias dos antigos filósofos gregos deixaram de suscitar o interesse de outrora. A sabedoria encontrava-se fundamentalmente
na Bíblia, pois esta era a palavra divina e Deus era o criador de todas as coisas. Quem quisesse compreender a natureza, teria,
então, que procurar tal conhecimento não directamente na própria natureza, mas nas Sagradas Escrituras. Elas é que continham
o sentido da vontade divina e, portanto, o sentido de toda a natureza criada. Era isso que merecia verdadeiramente o nome
de «ciência».
Compreender a natureza consistia, no fundo, em interpretar a vontade de Deus patente na Bíblia e o problema fundamental
da ciência consistia em enquadrar devidamente os fenómenos naturais com o que as Escrituras diziam. Assim se reduzia a ciência
à teologia, tal como é ilustrado na seguinte passagem de S. Boaventura (1217-1274), tirada de um escrito cujo título é, a
este respeito, elucidativo:
E assim fica manifesto como a "multiforme sabedoria de Deus", que aparece claramente na Sagrada Escritura, está oculta
em todo o conhecimento e em toda a natureza. Fica, igualmente, manifesto como todas as ciências estão subordinadas à teologia,
pelo que esta colhe os exemplos e utiliza a terminologia pertencente a todo o género de conhecimentos. Fica, além disso, manifesto
como é grande a iluminação divina e de que modo no íntimo de tudo quanto se sente ou se conhece está latente o próprio Deus.
S. Boaventura, Redução das Ciências à Teologia
Investigações recentes revelaram que, apesar do que atrás se disse, houve mesmo assim algumas contribuições que iriam ter
a sua importância no que posteriormente viria a pertencer ao domínio da ciência. Mas o mundo medieval é inequivocamente um
mundo teocêntrico e a instituição que se encarregou de fazer perdurar durante séculos essa concepção foi a Igreja. A Igreja
alargou a sua influência a todos os domínios da vida. Não foi apenas o domínio religioso, foi também o social, o económico,
o artístico e cultural, e até o político. Com o poder adquirido, uma das principais preocupações da Igreja passou a ser o
de conservar tal poder, decretando que as suas verdades não estavam sujeitas à crítica e quem se atrevesse sequer a discuti-las
teria de se confrontar com os guardiães em terra da verdade divina.
Compreender para crer
Todavia, começou a surgir, por parte de certos pensadores, a necessidade de dar um fundamento teórico, ou racional, à fé
cristã. Era preciso demonstrar as verdades da fé; demonstrar que a fé não contradiz a razão e vice-versa. Se antes se dizia
que era preciso «crer para compreender», deveria então juntar-se «compreender para crer». A fé revela-nos a verdade, a razão
demonstra-a. Assim, fé e razão conduzem uma à outra.
Foi esta a posição do mais destacado de todos os filósofos cristãos, S. Tomás de Aquino (1224-1274). S. Tomás veio dar
ao cristianismo todo um suporte filosófico, socorrendo-se para tal dos conceitos da filosofia aristotélica que se vê, deste
modo, cristianizada. Tanto os conceitos metafísicos de Aristóteles ¾ nomeadamente que tudo quanto
existe tem uma causa primeira e um fim último ¾ como a sua cosmologia (geocentrismo reformulado por
Ptolomeu: o universo é formado por esferas concêntricas, no meio do qual está a Terra imóvel) foram utilizados e adaptados
à doutrina cristã da Igreja por S. Tomás. Aristóteles passou a ser estudado e comentado nas escolas (que pertenciam à Igreja,
funcionando nos seus mosteiros) e tornou-se, a par das Escrituras, uma autoridade no que diz respeito ao conhecimento da natureza.
A alquimia
Além do que ficou dito, há um aspecto que não pode ser desprezado quando se fala da ciência na Idade Média e que é a alquimia.
As práticas alquímicas, apesar do manto de segredo com que se cobriam, eram muito frequentes na Idade Média. O alquimista
encarava a natureza como algo de misterioso e fantástico, o que não era estranho ao espírito medieval, em que tudo estava
impregnado de simbolismo. Cabia-lhe decifrar e utilizar esses símbolos para descobrir as maravilhas da natureza. Desse modo
ele poderia não só penetrar nos seus segredos como também manipulá-la e, por exemplo, transformar os metais vis em metais
preciosos. Por tudo isso, os alquimistas foram vistos, por muitos, como verdadeiros agentes do demónio. O anonimato seria
a melhor forma de prosseguir nas suas práticas, as quais eram consideradas como ilícitas em relação aos programas oficiais
das escolas da época. Daí a existência das chamadas sociedades secretas, do ocultismo e do esoterismo, onde a própria
situação de anonimato ia a par do mistério que cobre todas as coisas.
Há quem defenda que tudo isso, ao explorar certos aspectos da natureza proibidos pelas autoridades religiosas deu também
o seu contributo à ciência, nomeadamente à química, que, na altura, ainda não tinha surgido. Mas esta tese tem poucos exemplos
em que se apoiar e parece até que o verdadeiro espírito científico moderno teve de se debater com a resistência dos fantasmas
irracionais associados à alquimia e outras práticas do género pouco dadas à compreensão racional dos fenómenos naturais. A
alquimia continuou a praticar-se e chegou mesmo a despertar o interesse de algumas das mais importantes figuras da história
da ciência, como foi o caso de Newton. O mais conhecido praticante da alquimia foi Paracelso (1493-1541), em pleno período
renascentista.
3. A ciência moderna
Os precursores
Não é possível dizer exactamente quando terminou a Idade Média e começou o período que se lhe seguiu. Há, todavia, uma
data que é frequentemente apontada como referência simbólica da passagem de uma época à outra. Essa data é 1453, data que
marca a queda do Império Romano do Oriente.
O início do Renascimento trouxe consigo uma longa série de transformações que seria impossível referir aqui na sua totalidade.
Algumas dessas transformações mostraram os seus primeiros indícios ainda no período medieval e tiveram muito que ver com,
entre outros factos, o aparecimento de novas classes que já não estavam inseridas na rígida estrutura feudal, própria do mundo
rural medieval. Essas classes são as dos mercadores e artífices, as quais dependem essencialmente do comércio marítimo. Fora
da tradicional hierarquia feudal, muitas pessoas prosperam nas cidades. Cidades que se desenvolvem e onde começa a surgir
também uma indústria, sobretudo ligada à manufactura de produtos ¾ com a valorização dos artesãos
¾ e à construção naval. Isso trouxe consigo um inevitável progresso técnico que viria a colocar novos
problemas no domínio da ciência. Para tal contribuíram, além do comércio naval atrás referido, também os descobrimentos marítimos.
Descobrimentos em que Portugal ocupa um lugar de relevo. O mundo fechado do tempo das catedrais começa, assim, a abrir-se,
com as velhas certezas a ruir e os horizontes de um «novo universo» a alargar-se.
O homem renascentista começou a virar-se mais para si do que para os dogmas bíblicos e a interessar-se cada vez mais pelas
ideias, durante tantos séculos esquecidas, dos grandes filósofos gregos, de modo a fazer renascer os ideais da cultura clássica
¾ daí o nome de Renascimento. Esta é uma nova atitude a que se chamou «humanismo». O protótipo do
homem renascentista é Leonardo da Vinci, pintor, escultor, arquitecto, engenheiro, escritor, etc., a quem tudo interessa.
Muitas verdades intocáveis são revistas e caem do seu pedestal. O que leva, inclusivamente, à contestação da autoridade religiosa
do Papa, como acontece com Lutero (1483-1546), dando origem ao protestantismo e à reforma da Igreja.
As mudanças acima apontadas irão estar na base de um acontecimento de importância capital na história da ciência: a criação,
por Galileu (1564-1642), da ciência moderna. Com a criação da ciência moderna foi toda uma concepção da natureza que
se alterou, de tal modo que se pode dizer que Galileu rompeu radicalmente com a tradicional concepção do mundo incontestada
durante tantos séculos.
É claro que Galileu não esteve sozinho e podemos apontar pelo menos dois nomes que em muito ajudaram a romper com essa
tradição e contribuíram de forma evidente para a criação da ciência moderna: Copérnico (1473-1543) e Francis Bacon (1561-1626).
Por um lado, Copérnico com a publicação do seu livro A Revolução das Órbitas Celestes veio defender uma teoria que
não só se opunha à doutrina da Igreja, como também ao mais elementar senso comum, enquadrados pela autoridade da filosofia
aristotélica largamente ensinada nas universidades da época: essa teoria era o heliocentrismo.
O heliocentrismo, ao contrário do geocentrismo até então reinante, veio defender que a Terra não se encontrava imóvel no
centro do universo com os planetas e o Sol girando à sua volta, mas que era ela que se movia em torno do Sol. Ao defender
esta teoria, Copérnico baseava-se na convicção de que a natureza não devia ser tão complicada quanto o esforço que era necessário
para, à luz do geocentrismo aristotélico, compreender o movimento dos planetas, as fases da Lua e as estações do ano.
Seriam Galileu, graças às observações com o seu telescópio, e o astrónomo alemão Kepler (1571-1630), ao descobrir as célebres
leis do movimento dos planetas, a completar aquilo que Copérnico não chegou a fazer: apresentar as provas que davam definitivamente
razão à teoria heliocêntrica, condenando a teoria geocêntrica como falsa. Nada disto, porém, aconteceu sem uma grande resistência
por parte dos «sábios» da altura e da Igreja, tendo esta ameaçado e mesmo julgado Galileu por tal heresia.
Por outro lado, Bacon propôs na sua obra Novum Organum um novo método para o estudo da natureza que viria a tornar-se
uma marca distintiva da ciência moderna. Bacon defende a experimentação seguida da indução.
Mas não vimos atrás que também Aristóteles defendia a indução? É verdade que já há cerca de dois mil anos antes Aristóteles
propunha a indução como método de conhecimento. Só que, para este, a indução não utilizava a experimentação. Se Aristóteles
tivesse recorrido à experimentação, facilmente poderia concluir que, ao contrário do que estava convencido, a velocidade da
queda dos corpos não depende do seu peso. Para Aristóteles, a indução partia da simples enumeração de casos particulares observados,
enquanto que Bacon falava de uma observação que não era meramente passiva, até porque o homem de ciência deveria estar atento
aos obstáculos que se interpõem entre o espírito humano e a natureza. Assim, seria necessário eliminar da observação vulgar
as falsas imagens ¾ que tinham diferentes origens e a que Bacon dava o nome de idola ¾
e pôr essa observação à prova através da experimentação.
A par do que ficou dito, Bacon falava de uma ciência já não contemplativa como a anterior, mas uma ciência «activa
e operativa» que visava possibilitar aos seres humanos os meios de intervir na natureza e a dominar. Esta ciência dos
efeitos traz consigo o germe da interdependência entre ciência e tecnologia.
O nascimento da ciência moderna: Galileu
O que acaba de se referir contribuiu para o aparecimento de uma nova ciência, mas o seu fundador, como começou por
se assinalar, foi Galileu.
Há três tipos de razões que fizeram de Galileu o pai de uma nova forma de encarar a natureza: em primeiro lugar, deu autonomia
à ciência, fazendo-a sair da sombra da teologia e da autoridade livresca da tradição aristotélica; em segundo lugar, aplicou
pela primeira vez o novo método, o método experimental, defendendo-o como o meio adequado para chegar ao conhecimento; finalmente,
deu à ciência uma nova linguagem, que é a linguagem do rigor, a linguagem matemática.
Ao dar autonomia à ciência, Galileu fê-la verdadeiramente nascer. Embora na altura se lhe chamasse «filosofia da natureza»,
era a ciência moderna que estava a dar os seus primeiros passos. Antes disso, a ciência ainda não era ciência, mas sim teologia
ou até metafísica. A verdade acerca das coisas naturais ainda se ia buscar às Escrituras e aos livros de Aristóteles.
E não foi fácil a Galileu quebrar essa dependência, tendo que se defender, após a publicação do seu livro Diálogo dos
Grandes Sistemas, das acusações de pôr em causa o que a Bíblia dizia. Esta carta de Galileu é bem disso exemplo:
Posto isto, parece-me que nas discussões respeitantes aos problemas da natureza, não se deve começar por invocar a autoridade
de passagens das Escrituras; é preciso, em primeiro lugar, recorrer à experiência dos sentidos e a demonstrações necessárias.
Com efeito, a Sagrada Escritura e a natureza procedem igualmente do Verbo divino, sendo aquela ditada pelo Espírito Santo,
e esta, uma executora perfeitamente fiel das ordens de Deus. Ora, para se adaptarem às possibilidades de compreensão do maior
número possível de homens, as Escrituras dizem coisas que diferem da verdade absoluta, quer na sua expressão, quer no sentido
literal dos termos; a natureza, pelo contrário, conforma-se inexorável e imutavelmente às leis que lhe foram impostas, sem
nunca ultrapassar os seus limites e sem se preocupar em saber se as suas razões ocultas e modos de operar estão dentro das
capacidades de compreensão humana. Daqui resulta que os efeitos naturais e a experiência sensível que se oferece aos nossos
olhos, bem como as demonstrações necessárias que daí retiramos não devem, de maneira nenhuma, ser postas em dúvida, nem condenadas
em nome de passagens da Escritura, mesmo quando o sentido literal parece contradizê-las.
Galileu, Carta a Cristina de Lorena
Foi também Galileu quem, na linha de Bacon, utilizou pela primeira vez o método experimental, o que lhe permitiu chegar
a resultados completamente diferentes daqueles que se podiam encontrar na ciência tradicional. Um exemplo do pioneirismo de
Galileu na utilização do método experimental é o da utilização do famoso plano inclinado, por si construído para observar
em condições ideais (ultrapassando os obstáculos da observação directa) o movimento da queda dos corpos. Pôde, desse modo,
repetir as experiências tantas vezes quantas as necessárias e registar meticulosamente os resultados alcançados. Tais resultados
devem-se, ainda, a uma novidade que Galileu acrescentou em relação ao método indutivo de Bacon: o raciocínio matemático. A
ciência não poderia mais construir-se e desenvolver-se tendo por base a interpretação dos textos sagrados; mas também não
o poderia fazer por simples dedução lógica a partir de dogmas teológicos:
Ao cientista só se deve exigir que prove o que afirma. (...) Nas disputas dos problemas das ciências naturais, não se deve
começar pela autoridade dos textos bíblicos, mas sim pelas experiências sensatas e pelas demonstrações indispensáveis.
Galileu, Audiência com o Papa Urbano VIII
Tratava-se de uma ciência cujas verdades deveriam ter um conteúdo empírico e que podiam ser não só expressas, mas também
demonstradas numa linguagem já não qualitativa mas quantitativa: a linguagem matemática. Foi o que aconteceu quando Galileu,
graças ao referido plano inclinado, pôs em prática o novo método e começou a investigar o movimento natural dos corpos.
O resultado foi formular uma lei universal expressa matematicamente, o que tornava também possível fazer previsões. Diz ele:
Não há, talvez, na natureza nada mais velho que o movimento, e não faltam volumosos livros sobre tal assunto, escritos
por filósofos. Apesar disso, muitas das suas propriedades (...) não foram observadas nem demonstradas até ao momento. (...)
Com efeito, que eu saiba, ninguém demonstrou que o corpo que cai, partindo de uma situação de repouso, percorre em tempos
iguais, espaços que mantêm entre si uma proporção idêntica à que se verifica entre os números ímpares sucessivos começando
pela unidade.
Galileu, As Duas Novas Ciências
A velocidade da queda dos corpos (queda livre), é de tal modo apresentada que pode ser rigorosamente descrita numa fórmula
matemática. Não seria possível fazer ciência sem se dominar a linguagem matemática. Metaforicamente, é através da matemática
que a natureza se exprime:
A filosofia está escrita neste grande livro que está sempre aberto diante de nós: refiro-me ao universo; mas não pode ser
lido antes de termos aprendido a sua linguagem e de nos termos familiarizado com os caracteres em que está escrito. Está escrito
em linguagem matemática e as letras são triângulos, círculos e outras figuras geométricas, sem as quais é humanamente impossível
entender uma só palavra.
Galileu, Il Saggiatore
A descrição matemática da realidade, característica da ciência moderna, trouxe consigo uma ideia importante: conhecer é
medir ou quantificar. Nesse caso, os aspectos qualitativos não poderiam ser conhecidos. Também as causas primeiras e os fins
últimos aristotélicos, pelos quais todas as coisas se explicavam, deixaram de pertencer ao domínio da ciência. Com Galileu
a ciência aprende a avançar em pequenos passos, explicando coisas simples e avançando do mais simples para o mais complexo.
Em lugar de procurar explicações muito abrangentes, procurava explicar fenómenos simples. Em vez de tentar explicar de forma
muito geral o movimento dos corpos, procurava estudar-lhe as suas propriedades mais modestas. E foi assim, com pequenos passos,
que a ciência alcançou o tipo de explicações extremamente abrangentes que temos hoje. Inicialmente, parecia que a ciência
estava mais interessada em explicar o «como» das coisas do que o seu «porquê»; por exemplo, parecia que os resultados de Galileu
quanto ao movimento dos corpos se limitava a explicar o modo como os corpos caem e não a razão pela qual caem; mas, com a
continuação da investigação, este tipo de explicações parcelares acabaram por se revelar fundamentais para se alcançar explicações
abrangentes e gerais do porquê das coisas só que agora estas explicações gerais estão solidamente ancoradas na observação
e na medição paciente, assim como na descrição pormenorizada de fenómenos mais simples.
O mecanicismo: Descartes e Newton
A ciência galilaica lançou as bases para uma nova concepção da natureza que iria ser largamente aceite e desenvolvida:
o mecanicismo.
O mecanicismo, contrariamente ao organicismo anteriormente reinante que concebia o mundo como um organismo vivo
orientado para um fim, via a natureza como um mecanismo cujo funcionamento se regia por leis precisas e rigorosas. À maneira
de uma máquina, o mundo era composto de peças ligadas entre si que funcionavam de forma regular e poderiam ser reduzidas às
leis da mecânica. Uma vez conhecido o funcionamento das suas peças, tal conhecimento é absolutamente perfeito, embora limitado.
Um ser persistente e inteligente pode conhecer o funcionamento de uma máquina tão bem como o seu próprio construtor e sem
ter que o consultar a esse respeito.
Um dos grandes defensores do mecanicismo foi o filósofo francês Descartes (1596-1656), que chegou mesmo a escrever o seguinte:
Eu não sei de nenhuma diferença entre as máquinas que os artesãos fazem e os diversos corpos que a natureza por si só compõe,
a não ser esta: que os efeitos das máquinas não dependem de mais nada a não ser da disposição de certos tubos, que devendo
ter alguma relação com as mãos daqueles que os fazem, são sempre tão grandes que as suas figuras e movimentos se podem ver,
ao passo que os tubos ou molas que causam os efeitos dos corpos naturais são ordinariamente demasiado pequenos para poderem
ser percepcionados pelos nossos sentidos. Por exemplo, quando um relógio marca as horas por meio das rodas de que está feito,
isso não lhe é menos natural do que uma árvore a produzir os seus frutos.
Descartes, Princípios da Filosofia
O mecanicismo é o antecessor do fisicalismo, uma doutrina que hoje em dia está no centro de grande parte da investigação
dos filósofos contemporâneos. Tanto o mecanicismo como o fisicalismo são diferentes formas de reducionismo.
O que é o reducionismo? O reducionismo é a ideia, central no desenvolvimento da ciência e da filosofia, de que podemos
reduzir alguns fenómenos de um certo tipo a fenómenos de outro tipo. Do ponto de vista psicológico e até filosófico, o reducionismo
pode ser encarado como uma vontade de diminuir drasticamente o domínio de fenómenos primitivos existentes na natureza. Por
exemplo, hoje em dia sabemos que todos os fenómenos químicos são no fundo agregados de fenómenos físicos; isto é, os fenómenos
químicos são fenómenos que derivam dos físicos daí dizer-se que os fenómenos físicos são primitivos e que os químicos são
derivados. Mas o reducionismo é mais do que uma vontade de diminuir o domínio de fenómenos primitivos: é um aspecto da tentativa
de compreender a natureza última da realidade; é um aspecto importante da tentativa de saber o que explica os fenómenos. Assim,
se os fenómenos químicos são no fundo fenómenos físicos, e se tivermos uma boa explicação e uma boa compreensão do que são
os fenómenos físicos, então teremos também uma boa explicação e uma boa compreensão dos fenómenos químicos, desde que saibamos
reduzir a química à física. O mecanicismo foi refutado no século XIX por Maxwell (1831-79), que mostrou que a radiação electromagnética
e os campos electromagnéticos não tinham uma natureza mecânica. O mecanicismo é a ideia segundo a qual tudo o que acontece
se pode explicar em termos de contactos físicos que produzem «empurrões» e «puxões».
Dado que o mecanicismo é uma forma de reducionismo, não é de admirar que o principal objectivo de Descartes tenha sido
o de unificar as diferentes ciências como se de uma só se tratasse, de modo a constituir um saber universal. Não via
mesmo qualquer motivo para que se estudasse cada uma das ciências em separado, visto que a razão em que se apoia o estudo
de uma ciência é a mesma que está presente no estudo de qualquer outra:
Todas as ciências não são mais do que sabedoria humana, que permanece sempre una e sempre a mesma, por mais diferentes
que sejam os objectos aos quais ela se aplica, e que não sofre nenhumas alterações por parte desses objectos, da mesma forma
que a luz do Sol não sofre nenhumas modificações por parte das variadíssimas coisas que ilumina.
Descartes, Regras para a Direcção do Espírito
Para atingir tal objectivo seria necessário satisfazer três condições: dar a todas as ciências o mesmo método; partir do
mesmo princípio; assentar no mesmo fundamento. Só assim se poderiam unificar as ciências.
Quanto ao método, Descartes achava também que só o rigor matemático poderia fazer as ciências dar frutos. Daí que tivesse
dado o nome de mathesis universalis ao seu projecto de unificação das ciências. A matemática deveria, portanto, servir
todas as ciências:
Deve haver uma ciência geral que explica tudo o que se pode investigar respeitante à ordem e à medida, sem as aplicar a
uma matéria especial: esta ciência designa-se (...) pelo vocábulo já antigo e aceite pelo uso de mathesis universalis, porque
encerra tudo o que fez dar a outras ciências a denominação de partes das matemáticas.
Descartes, Regras para a Direcção do Espírito
Relativamente à segunda condição, o princípio de que todo o conhecimento deveria partir, só poderia ser o pensamento ou
razão. Descartes queria tomar como princípio do conhecimento alguma verdade que fosse de tal forma segura, que dela não pudéssemos
sequer duvidar. E a única certeza inabalável que, segundo ele, resistia a qualquer dúvida só podia ser a evidência do próprio
acto de pensar.
Finalmente, em relação ao fundamento do conhecimento, este deveria ser encontrado, segundo Descartes, em Deus. Deus era
a única garantia da veracidade dos dados ¾ racionais e não sensíveis ¾ e,
consequentemente, da verdade do conhecimento. Sem Deus não poderíamos ter a certeza de nada. Ele foi o responsável pelas ideias
inatas que há em nós, tornando-se por isso o fundamento metafísico do conhecimento.
Temos, assim, as diversas ciências da época concebidas como os diferentes ramos de uma mesma árvore, ligados a um tronco
comum e alimentados pelas mesmas raízes. As raízes de que se alimenta a ciência são, como vimos, as ideias inatas colocadas
em nós por Deus. Estamos, neste caso, no domínio da metafísica:
Assim toda a filosofia é como uma árvore, cujas raízes são a metafísica, o tronco é a física, e os ramos que saem deste
tronco são todas as outras ciências, que se reduzem a três principais, a saber, a medicina, a mecânica e a moral.
Descartes, Princípios da Filosofia
Vale a pena salientar duas importantes diferenças em relação a Galileu.
A primeira é a do papel que Descartes atribuiu à experiência. Se o método experimental de Galileu parte da observação sensível,
o mesmo já não acontece com Descartes, cujo ponto de partida é o pensamento, acarretando com isso uma diferença de método.
Não é que, para Descartes, a experiência não tenha qualquer papel, mas este é apenas complementar em relação à razão. Reforça-se,
todavia, a importância da matemática.
A segunda diferença diz respeito ao lugar da metafísica. Enquanto Galileu se demarcou claramente de qualquer pressuposto
metafísico, Descartes achava que a metafísica era o fundamento de todo o conhecimento verdadeiro. Mas se Descartes via em
Deus o fundamento do conhecimento, não achava necessário, todavia, fazer intervir a metafísica na investigação e descrição
dos fenómenos naturais.
Entretanto, a ciência moderna ia dando os seus frutos e a nova concepção do mundo, o mecanicismo, ganhando cada vez mais
adeptos. Novas ciências surgiram, como é o caso da biologia, cuja paternidade se atribuiu a Harvey (1578-1657), com a descoberta
da circulação do sangue. E assim se chegou àquele que é uma das maiores figuras da história da ciência, que nasceu precisamente
no ano em que Galileu morreu: o inglês Isaac Newton (1642-1727).
Ao publicar o seu livro Princípios Matemáticos de Filosofia da Natureza, Newton foi responsável pela grande síntese
mecanicista. Este livro tornou-se numa espécie de Bíblia da ciência moderna. Aí completou o que restava por fazer aos seus
antecessores e unificou as anteriores descobertas sob uma única teoria que servia de explicação a todos os fenómenos físicos,
quer ocorressem na Terra ou nos céus. Teoria que tem como princípio fundamental a lei da gravitação universal, na qual se
afirmava que «cada corpo, cada partícula de matéria do universo, exerce sobre qualquer outro corpo ou partícula uma força
atractiva proporcional às respectivas massas e ao inverso do quadrado da distância entre ambos».
Partindo deste princípio de aplicação geral, todos os fenómenos naturais poderiam, recorrendo ao cálculo matemático ¾ o cálculo infinitesimal, também inventado por Newton ¾ , ser derivados. Vejamos
o que, a esse propósito, escreveu:
Proponho este trabalho como princípios matemáticos da filosofia, já que o principal problema da filosofia parece ser este:
investigar as forças da natureza a partir dos fenómenos do movimento, e depois, a partir dessas forças, demonstrar os outros
fenómenos; (...) Gostaria que pudéssemos derivar o resto dos fenómenos da natureza pela mesma espécie de raciocínio a partir
de princípios mecânicos, pois sou levado por muitas razões a suspeitar que todos eles podem depender de certas forças pelas
quais as partículas dos corpos, por causas até aqui desconhecidas, são ou mutuamente impelidas umas para as outras, e convergem
em figuras regulares, ou são repelidas, e afastam-se umas das outras.
Newton, Princípios Matemáticos de Filosofia da Natureza
O universo era, portanto, um conjunto de corpos ligados entre si e regidos por leis rígidas. Massa, posição e extensão,
eis os únicos atributos da matéria. No funcionamento da grande máquina do universo não havia, pois, lugar para qualquer outra
força exterior ou divina. E, como qualquer máquina, o movimento é o seu estado natural. Por isso o mecanicismo apresentava
uma concepção dinâmica do universo e não estática como pensavam os antigos.
Os fundamentos da ciência: Hume e Kant
Entretanto, os resultados proporcionados pela física newtoniana iam fazendo desaparecer as dúvidas que ainda poderiam subsistir
em relação ao ponto de vista mecanicista e determinista da natureza. Os progressos foram imensos, o que parecia confirmar
a justeza de tal ponto de vista.
A velha questão acerca do que deveria ser a ciência estava, portanto, ultrapassada. Interessava, sim, explicar a íntima
articulação entre matemática e ciência, bem como os fundamentos do método experimental. Mas tais problemas imediatamente iriam
dar origem a outro mais profundo: se o que caracteriza o conhecimento científico é o facto de produzir verdades universais
e necessárias, então em que se baseiam a universalidade e necessidade de tais conhecimentos?
Este problema compreende-se melhor se pensarmos que a inferência válida que se usa na matemática e na lógica tem uma característica
fundamental que a diferencia da inferência que se usa na ciência e a que geralmente se chama "indução", apesar de este nome
referir muitos tipos diferentes de inferências. Na inferência válida da matemática e da lógica, é logicamente impossível que
a conclusão seja falsa e as premissas sejam verdadeiras. Mas o mesmo não acontece na inferência indutiva: neste caso, podemos
ter uma boa inferência com premissas verdadeiras, mas a sua conclusão pode ser falsa. Isto levanta um problema de justificação:
como podemos justificar que as conclusões das inferências são realmente verdadeiras? Na inferência válida, é logicamente impossível
que as premissas sejam verdadeiras e a conclusão falsa; mas como podemos justificar que, na boa inferência indutiva seja impossível
que as conclusões sejam falsas se as premissas forem verdadeiras? É que essa impossibilidade não é fácil de compreender, dado
que não é uma impossibilidade lógica. E apesar de as ciências da natureza usarem também muitas inferências válidas, não podem
avançar sem inferências indutivas.
O filósofo empirista escocês David Hume (1711-1776) no seu Ensaio sobre o Entendimento Humano defendia que tudo
o que sabemos procede da experiência, mas que esta só nos mostra como as coisas acontecem e não que é impossível que acontecem
de outra maneira. É um facto que hoje o Sol nasceu, o que também sucedeu ontem, anteontem e nos outros dias anteriores. Mas
isso é tudo o que os sentidos nos autorizam a afirmar e não podemos concluir daí que é impossível o Sol não nascer amanhã.
Ao fazê-lo estaríamos a ir além do que nos é dado pelos sentidos. Os sentidos também não nos permitem formular juízos universais,
mas apenas particulares. Ainda que um aluno só tenha tido até agora professores de filosofia excêntricos, ele não pode, mesmo
assim, afirmar que todos os professores de filosofia são excêntricos. Nem a mais completa colecção de casos idênticos observados
nos permite tirar alguma conclusão que possa tomar-se como universal e necessária. O facto de termos visto muitas folhas cair
em nada nos autoriza a concluir que todas as folhas caem necessariamente, assim como o termos visto o Sol nascer muitas vezes
não nos garante que ele nasça no dia seguinte, pois isso não constitui um facto empírico. Mas não é precisamente isso que
fazemos quando raciocinamos por indução? E as leis científicas não se apoiam nesse tipo de raciocínio ou inferência? Logo,
se algo de errado se passa com a indução, algo de errado se passa com a ciência.
Mas se as coisas na natureza sempre aconteceram de uma determinada maneira (se o Sol tem nascido todos os dias), não será
de esperar que aconteçam do mesmo modo no futuro (que o Sol nasça amanhã)? Para Hume só é possível defender tal coisa se introduzirmos
uma premissa adicional, isto é, se admitirmos que a natureza se comporta de maneira uniforme. A crença de que a natureza funciona
sempre da mesma maneira é conhecida como o «princípio da uniformidade da natureza». Mas, interroga-se Hume, em que se fundamenta
por sua vez o princípio da uniformidade da natureza? A resposta é que tal princípio se apoia na observação repetida
dos mesmos fenómenos, o que nos leva a acreditar que a natureza se irá comportar amanhã como se comportou hoje, ontem e em
todos os dias anteriores. Mas assim estamos a cair num raciocínio circular que é o seguinte: a indução só pode funcionar se
tivermos antes estabelecido o princípio da uniformidade da natureza; mas estabelecemos o princípio da uniformidade
da natureza por meio do raciocínio indutivo.
Por que razão insistimos, então, em fazer induções? A razão ou melhor, o motivo é inesperadamente simples: porque
somos impelidos pelo hábito de observarmos muitas vezes a mesma coisa acontecer. Ora, isso não é do domínio lógico, mas antes
do psicológico.
O que Hume fez foi uma crítica da lógica da indução. Esta apoia-se mais na crença do que na lógica do raciocínio. O mesmo
tipo de crítica levou também Hume a questionar a relação de causa-efeito entre diferentes fenómenos. Como tal, para
Hume, o conhecimento científico, enquanto conhecimento que produz verdades universais e necessárias, não é logicamente possível,
assumindo, por isso, uma posição céptica.
Seria o cepticismo de Hume que iria levar Kant (1724-1804) a tentar encontrar uma resposta para tal problema.
Depois de uma crítica completa, na sua obra Crítica da Razão Pura, à forma como, em nós, se constituía o conhecimento,
Kant concluiu que aquilo que conferia necessidade e universalidade ao conhecimento residia no próprio sujeito que conhece.
Para Kant, o entendimento humano não se limitava a receber o que os sentidos captavam do exterior; ele era activo e continha
em si as formas a priori ¾ que não dependem da experiência ¾ às quais
todos os dados empíricos se teriam que submeter.
Era, pois, nessas formas a priori do entendimento que se devia encontrar a necessidade e universalidade do conhecimento:
Necessitamos agora de um critério pelo qual possamos distinguir seguramente um conhecimento puro de um conhecimento empírico.
É verdade que a experiência nos ensina que algo é constituído desta ou daquela maneira, mas não que não possa sê-lo diferentemente.
Em primeiro lugar, se encontrarmos uma proposição que apenas se possa pensar como necessária, estamos em presença de um juízo
a priori (...). Em segundo lugar, a experiência não concede nunca aos seus juízos uma universalidade verdadeira e rigorosa,
apenas universalidade suposta e comparativa (por indução), de tal modo que, em verdade, antes se deveria dizer: tanto quanto
até agora nos foi dado verificar, não se encontram excepções a esta ou àquela regra. Portanto, se um juízo é pensado com rigorosa
universalidade, quer dizer, de tal modo que nenhuma excepção se admite como possível, não é derivado da experiência, mas é
absolutamente válido a priori. (...)
(...) Pois onde iria a própria experiência buscar a certeza se todas as regras, segundo as quais progride, fossem continuamente
empíricas e, portanto, contingentes?
Kant, Crítica da Razão Pura
Verificando que os conhecimentos científicos se referiam a factos observáveis, mas que se apresentavam de uma forma universal
e necessária, Kant caracterizou as verdades científicas como juízos sintéticos a priori. Sintéticos porque não dependiam
unicamente da análise de conceitos; a priori porque se fundamentavam, não na experiência empírica, mas nas formas a
priori do entendimento, as quais lhes conferiam necessidade e universalidade.
Restava, para este filósofo, uma questão: saber se a metafísica poderia ser considerada uma ciência. Mas a resposta foi
negativa porque, em metafísica, não era possível formular juízos sintéticos a priori. As questões metafísicas
¾ a existência de Deus e a imortalidade da alma ¾ caíam fora do âmbito da
ciência, ao contrário da ciência medieval em que o estatuto de cada ciência dependia, sobretudo, da dignidade do seu objecto,
sendo a teologia e a metafísica as mais importantes das ciências.
A «solução» de Kant dificilmente é satisfatória. Ao explicar o carácter necessário e universal das leis científicas, Kant
tornou-as inter-subjectivas: algo que resulta da nossa capacidade de conhecer e não do mundo em si. Quando um cientista afirma
que nenhum objecto pode viajar mais depressa do que a luz, está para Kant a formular uma proposição necessária e universal,
mas que se refere não à natureza íntima do mundo, mas antes ao modo como nós, seres humanos, conhecemos o mundo. Estavam abertas
as portas ao idealismo alemão, que teria efeitos terríveis na história da filosofia. Nos anos 70 do século XX, o filósofo
americano Saul Kripke (1940- ) iria apresentar uma solução parcial ao problema levantado por Hume que é muito mais satisfatória
do que a de Kant. Kripke mostrou, efectivamente, como podemos inferir conclusões necessárias a partir de premissas empíricas,
de modo que a necessidade das leis científicas não deriva do seu carácter sintético a priori, como Kant dizia, mas
antes do seu carácter necessário a posteriori.
4. O positivismo do século xix
Comte
No século XIX, o ritmo do desenvolvimento científico e tecnológico cresceu imenso. Em consequência disso, a vida das pessoas
sofreu alterações substanciais. Era a ciência que dava origem a novas invenções, as quais impulsionavam uma série de transformações
na sociedade. Com efeito, estabeleceu-se uma relação entre os seres humanos e a ciência, de tal maneira que esta passou a
fazer parte das suas próprias vidas.
Apareceram muitas outras ciências ao longo do século XIX, onde se contavam, por exemplo, a psicologia. O clima era de confiança
em relação à ciência, na medida em que ela explicava e solucionava cada vez mais problemas. A física era o exemplo de uma
ciência que apresentava imensos resultados e que nos ajudava a compreender o mundo como nunca antes tinha sido possível. A
religião ia, assim, perdendo terreno no domínio do conhecimento e até a própria filosofia era frequentemente acusada de se
perder em estéreis discussões metafísicas. A ciência não tinha, pois, rival.
É neste contexto que surge uma nova filosofia, apresentada no livro Curso de Filosofia Positiva, com o francês Auguste
Comte (1798-1857): o positivismo.
O positivismo considera a ciência como o estado de desenvolvimento do conhecimento humano que superou, quer o estado das
primitivas concepções mítico-religiosas, as quais apelavam à intervenção de seres sobrenaturais, quer o da substituição desses
seres por forças abstractas. Comte pensa mesmo ter descoberto uma lei fundamental acerca do desenvolvimento do conhecimento,
seja em que domínio for. Essa lei é a de que as nossas principais concepções passam sempre por três estados sucessivos: «o
estado teológico ou fictício, o estado metafísico ou abstracto e o estado científico ou positivo». A cada estado corresponde
um método de filosofar próprio. Trata-se, respectivamente, do método teológico, do método metafísico e do método positivo.
Assim, a ciência corresponde ao estado positivo do conhecimento, que é, para Comte, o seu estado definitivo:
Estudando assim o desenvolvimento total da inteligência humana nas suas diversas esferas de actividade, desde o seu primeiro
e mais simples desenvolvimento até aos nossos dias, penso ter descoberto uma grande lei fundamental, à qual ele se encontra
submetido por uma necessidade invariável, e que me parece poder estabelecer-se solidamente, quer pelas provas racionais que
o conhecimento da nossa organização nos fornece, quer pelas verificações históricas que resultam de um atento exame do passado.
Esta lei consiste em que cada uma das nossas principais concepções, cada ramo dos nossos conhecimentos, passa sucessivamente
por três estados teóricos diferentes: o estado teológico ou fictício, o estado metafísico ou abstracto, o estado científico
ou positivo. Noutros termos, o espírito humano, dada a sua natureza, emprega sucessivamente, em cada uma das suas pesquisas,
três métodos de filosofar, de características essencialmente diferentes e mesmo radicalmente opostos: primeiro o método teológico,
depois o método metafísico e, por fim, o método positivo. Donde decorre a existência de três tipos de filosofia ou de sistemas
gerais de concepções sobre o conjunto dos fenómenos que mutuamente se excluem: a primeira é o ponto de partida necessário
da inteligência humana; a terceira o seu estado fixo e definitivo; a segunda destina-se unicamente a servir de transição.
Comte, Curso de Filosofia Positiva
Comte prossegue, caracterizando cada um dos estados, de modo a concluir que os primeiros dois estados foram necessários
apenas como degraus para chegar ao seu estado perfeito, o estado positivo:
No estado teológico, o espírito humano, dirigindo essencialmente as suas pesquisas para a natureza íntima dos seres, as
causas primeiras e finais de todos os fenómenos que o atingem, numa palavra, para os conhecimentos absolutos, concebe os fenómenos
como produzidos pela acção directa e contínua de agentes sobrenaturais mais ou menos numerosos, cuja arbitrária intervenção
explicaria todas as aparentes anomalias do universo.
No estado metafísico, que no fundo não é mais que uma modificação geral do primeiro, os agentes sobrenaturais são substituídos
por forças abstractas, verdadeiras entidades (abstracções personificadas) inerentes aos diversos seres do mundo, e concebidas
como capazes de engendrar por si mesmas todos os fenómenos observados, cuja explicação consiste então em referir para cada
um a entidade correspondente.
Por último, no estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia a
procurar a origem e o destino do universo e a conhecer as causas íntimas dos fenómenos, para se dedicar apenas à descoberta,
pelo uso bem combinado do raciocínio e da observação, das suas leis efectivas, isto é, das suas relações invariáveis de sucessão
e similitude. A explicação dos factos, reduzida então aos seus termos reais, não é mais, a partir daqui, do que a ligação
que se estabelece entre os diversos fenómenos particulares e alguns factos gerais cujo número tende, com os progressos da
ciência, a diminuir cada vez mais. (...)
Assim se vê, por este conjunto de considerações, que, se a filosofia positiva é o verdadeiro estado definitivo da inteligência
humana, aquele para o qual ela sempre, e cada vez mais, tendeu, nem por isso ela deixou de utilizar necessariamente, no começo
e durante muitos séculos, a filosofia teológica, quer como método, quer como doutrina provisórios; filosofia cujo carácter
é ela ser espontânea e, por isso mesmo, a única que era possível no princípio, assim como a única que podia satisfazer os
interesses do nosso espírito nos seus primeiros tempos. É agora muito fácil ver que, para passar desta filosofia provisória
à filosofia definitiva, o espírito humano teve, naturalmente, que adoptar, como filosofia transitória, os métodos e as doutrinas
metafísicas. Esta última consideração é indispensável para completar a visão geral da grande lei que indiquei.
Com efeito, concebe-se facilmente que o nosso entendimento, obrigado a percorrer degraus quase insensíveis, não podia passar
bruscamente, e sem intermediários, da filosofia teológica para a filosofia positiva. A teologia e a física são profundamente
incompatíveis, as suas concepções têm características tão radicalmente opostas que, antes de renunciar a umas para utilizar
exclusivamente as outras, a inteligência humana teve de se servir de concepções intermédias, de características mistas, e
por isso mesmo próprias para realizar, gradualmente, a transição. É este o destino natural das concepções metafísicas que
não têm outra utilidade real.»
Comte, Curso de Filosofia Positiva
O pensamento de Comte, mais do que uma filosofia original, era uma filosofia que captou um certo espírito do século XIX
e lhe deu uma espécie de justificação. Este tipo de espírito positivista viria a conhecer uma reacção extrema, anti-positivista:
o romantismo e o irracionalismo, que acabariam por dar o perfil definitivo à filosofia do continente europeu do século XX.
Ao passo que o positivismo exaltava a ciência, o romantismo e o irracionalismo deploravam a ciência. Ambas as ideias parecem
falsas e exageradas. As ideias de Comte são vagas e os argumentos que ele usa para as sustentar são pouco mais do que sugestões.
A própria ideia de ciência que Comte apresenta está errada; não é verdade que a ciência tenha renunciado a explicar as causas
mais profundas dos fenómenos, nem é verdade que na história do pensamento tenhamos assistido a uma passagem de uma fase mais
abstracta para uma fase mais concreta ou positiva. Pelo contrário, a ciência apresenta um grau de abstracção cada vez maior,
e a própria filosofia, com as suas teorias e argumentos extremamente abstractos, conheceu no século XX um desenvolvimento
como nunca antes tinha acontecido.
O positivismo defende que só a ciência pode satisfazer a nossa necessidade de conhecimento, visto que só ela parte dos
factos e aos factos se submete para confirmar as suas verdades, tornando possível a obtenção de «noções absolutas».
Do que dissemos decorre que o traço fundamental da filosofia positiva é considerar todos os fenómenos como sujeitos a leis
naturais invariáveis, sendo o fim de todos os nossos esforços a sua descoberta precisa e a sua redução ao menor número possível,
e considerando como absolutamente inacessível e vazio de sentido a procura daquilo a que se chama as causas, sejam primeiras
ou finais. É inútil insistir muito num princípio que se tornou tão familiar a todos os que estudaram, com alguma profundidade,
as ciências de observação. Com efeito, todos nós sabemos que, nas nossas explicações positivas, mesmo nas mais perfeitas,
não temos a pretensão de expor as causas geradoras dos fenómenos, dado que nesse caso não faríamos senão adiar a dificuldade,
mas apenas de analisar com exactidão as circunstâncias da sua produção e de as ligar umas às outras por normais relações de
sucessão e similitude. (...)
Comte, Curso de Filosofia Positiva
O pressuposto fundamental é, pois, o de que há uma regularidade no funcionamento da natureza, cabendo ao homem descobrir
com exactidão as «leis naturais invariáveis» a que todos os fenómenos estão submetidos. Essas leis devem traduzir com
todo o rigor as condições em que determinados factos são produzidos. Para isso tem de se partir da observação dos próprios
factos e das relações que entre eles se estabelecem de modo a chegar a resultados universais e objectivos. Qualquer facto
observado é o resultado necessário de causas bem precisas que é importante investigar. Até porque as mesmas causas produzem
sempre os mesmos efeitos, não havendo na natureza lugar para a fantasia e o improviso, tal como, de resto, acontece com uma
máquina que se comporta sempre como previsto. A isto se chama determinismo. O determinismo é, então, uma consequência
do mecanicismo moderno e teve inúmeros defensores, entre os quais se tornou famoso Laplace (1749-1827). Escreve ele:
Devemos considerar o estado presente do universo como um efeito do seu estado anterior e como causa daquele que se há-de
seguir. Uma inteligência que pudesse compreender todas as forças que animam a natureza e a situação respectiva dos seres que
a compõem ¾ uma inteligência suficientemente vasta para submeter todos esses dados a uma análise
¾ englobaria na mesma fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e os do mais pequeno átomo;
para ela, nada seria incerto e o futuro, tal como o passado, seriam presente aos seus olhos.
LAPLACE, Ensaio Filosófico sobre as Probabilidades
Com efeito, a natureza ainda apresenta muitos mistérios, mas apenas porque não temos a capacidade de conhecer integralmente
as circunstâncias que a cada momento se conjugam para o desencadear de todos os fenómenos observados. É, contudo, possível
prever muitos deles.
Esta é uma perspectiva que, no fundo, acaba por desenvolver e sistematizar em termos teóricos a concepção mecanicista própria
da ciência moderna. Concepção essa que, por sua vez, assenta numa determinada filosofia acerca da natureza do conhecimento:
o realismo crítico. Realismo porque defende a existência de uma realidade objectiva exterior ao sujeito, e crítico porque
nem tudo o que é percepcionado nos fenómenos naturais tem valor objectivo. É por isso que o cientista precisa de um método
de investigação que lhe permita eliminar todos os aspectos subjectivos acerca dos fenómenos estudados e encontrar, por entre
as aparências, as propriedades verdadeiramente objectivas. Tal método continua a ser o método experimental.
Os grandes princípios nos quais se apoiava a ciência pareciam, então, definitivamente assentes. As discussões sobre o estatuto
ou os fundamentos do conhecimento científico consideravam-se arrumadas e a linguagem utilizada, a matemática, estava também
ela assente em princípios sólidos. Restava prosseguir com cada vez mais descobertas, de modo a acrescentar ao que já se sabia
novos conhecimentos.
Que a ciência desse respostas definitivas às nossas perguntas, de modo a ampliar cada vez mais o conhecimento humano, e
que tal conhecimento pudesse ser aplicado na satisfação de necessidades concretas do homem, era o que cada vez mais pessoas
esperavam. Assim, a ciência foi conquistando cada vez mais adeptos, tornando-se objecto de uma confiança ilimitada. Isto é,
surge um verdadeiro culto da ciência, o cientismo. O cientismo é, pois, a ciência transformada em ideologia. Ele assenta,
afinal, numa atitude dogmática perante a ciência, esperando que esta consiga responder a todas as perguntas e resolver todos
os nossos problemas. Em grande medida, o cientismo resulta de uma compreensão errada da própria ciência. A ciência não é a
caricatura que Comte apresentou e que o cientismo de alguma forma adoptou.
O sucessor moderno do mecanicismo, como vimos, é o fisicalismo. A ideia geral é a de que podemos reduzir todos os fenómenos
a fenómenos físicos. Hoje em dia, uma parte substancial da investigação em filosofia e em algumas ciências, procura reduzir
fenómenos que à primeira vista não parecem susceptíveis de serem reduzidos: é o caso, por exemplo, dos fenómenos mentais (de
que se ocupa a filosofia da mente e as ciências cognitivas) e dos fenómenos semânticos (de que se ocupa a filosofia da linguagem
e a linguística). Esta ideia não é nova; já Comte tinha apresentado uma classificação das ciências em que, de maneiras diferentes,
todas as ciências acabavam por se reduzir à física. Até à mais recente das ciências, a sociologia, Comte dava o nome de física
social. Havia, assim, a física celeste, a física terrestre, a física orgânica e a física social nas quais se incluíam
as cinco grandes categorias de fenómenos, os fenómenos astronómicos, físicos, químicos, fisiológicos e sociais.
Assim, é preciso começar por considerar que os diferentes ramos dos nossos conhecimentos não puderam percorrer com igual
velocidade as três grandes fases do seu desenvolvimento atrás referidas nem, portanto, chegar simultaneamente ao estado positivo.
(...)
É impossível determinar com rigor a origem desta revolução (...). Contudo, dado que é conveniente fixar uma época para
impedir a divagação de ideias, indicarei a do grande movimento imprimido há dois séculos ao espírito humano pela acção combinada
dos preceitos de Bacon, das concepções de Descartes e das descobertas de Galileu, como o momento em que o espírito da filosofia
positiva começou a pronunciar-se no mundo, em clara oposição aos espíritos teológico e metafísico. (...)
Eis então a grande mas evidentemente única lacuna que é preciso colmatar para se concluir a constituição da filosofia positiva.
Agora que o espírito humano fundou a física celeste, a física terrestre quer mecânica quer química , a física orgânica quer
vegetal quer animal , falta-lhe terminar o sistema das ciências de observação fundando a física social. (...)
Uma vez preenchida esta condição, encontrar-se-á finalmente fundado, no seu conjunto, o sistema filosófico dos modernos,
pois todos os fenómenos observáveis integrarão uma das cinco grandes categorias desde então estabelecidas: fenómenos astronómicos,
físicos, químicos, fisiológicos e sociais. Tornando-se homogéneas todas as nossas concepções fundamentais, a filosofia constituir-se-á
definitivamente no estado positivo; não podendo nunca mudar de carácter, resta-lhe desenvolver-se indefinidamente através
das aquisições sempre crescentes que inevitavelmente resultarão de novas observações ou de meditações mais profundas. (...)
Com efeito, completando enfim, com a fundação da física social, o sistema das ciências naturais, torna-se possível, e mesmo
necessário, resumir os diversos conhecimentos adquiridos, então chegados a um estado fixo e homogéneo, para os coordenar,
apresentando-os como outros tantos ramos de um único tronco, em vez de continuar a concebê-los apenas como outros tantos corpos
isolados.»
Comte, Curso de Filosofia Positiva
Mas não é com classificações vagas que se conseguem realmente reduzir as ciências à física esta é a forma errada de colocar
o problema. Trata-se, antes, de mostrar que os fenómenos estudados pela química ou pela sociologia ou pela psicologia são,
no fundo, fenómenos físicos. Mas isto é um projecto que, apesar de alimentar hoje em dia grande parte da investigação científica
e filosófica, está longe de ter alcançado bons resultados. E alguns filósofos contemporâneos duvidam que tal reducionismo
seja possível.
A distinção entre ciências da natureza e ciências sociais ou humanas tornou-se, progressivamente, mais importante. Apesar
dos devaneios de Comte, não era fácil ver como se poderiam reduzir os fenómenos sociais, por exemplo, a fenómenos físicos.
A reacção contrária a Comte resultou em doutrinas que traçam uma distinção entre os dois tipos de ciências, alegando que os
fenómenos sociais não podem ser reduzidos a fenómenos físicos. Dilthey (1833-1911) dividia as ciências em ciências do homem,
ou do espírito, entre as quais se encontravam a história, a psicologia, etc., e as ciências da natureza, como a física, a
química, a biologia, etc. Aquelas tinham como finalidade compreender os fenómenos que lhes diziam respeito, enquanto
que estas procuravam explicar os seus. Esta forma de encarar a diferença entre as ciências humanas e as ciências da
natureza é de algum modo simplista. Mas os grandes filósofos das ciências sociais actuais, como Alan Ryan e outros, procuram
ainda encontrar modelos de explicação satisfatórios para as ciências humanas. Apesar de admitirem que o tipo de explicação
das ciências da natureza é diferente do tipo de explicação das ciências humanas, o verdadeiro problema é saber que tipo de
explicação é a explicação fornecido pelas ciências humanas.
As ciências da natureza e as ciências formais do século XIX e XX conheceram desenvolvimentos sem precedentes. Mas porque
o espírito científico é um espírito crítico e não dogmático, apesar do enorme desenvolvimento alcançado pela ciência no século
XIX, os cientistas continuavam a procurar responder a mais e mais perguntas, perguntas cada vez mais gerais, fundamentais
e exactas. E a resposta a essas perguntas conduziu a desenvolvimentos científicos que mostraram os limites de algumas leis
e princípios antes tomados como verdadeiros. A geometria, durante séculos considerada uma ciência acabada e perfeita, foi
revista. Apesar de a geometria euclidiana ser a geometria correcta para descrever o espaço não curvo, levantou-se a questão
de saber se não poderíamos construir outras geometrias, que dessem conta das relações geométricas em espaços não curvos: nasciam
as geometrias não euclidianas. A existência de geometrias não euclidianas conduz à questão de saber se o nosso universo será
euclidiano ou não. E a teoria da relatividade mostra que o espaço é afinal curvo e não plano, como antes se pensava.
O desenvolvimento alucinante das ciências dos séculos XIX e XX, juntamente com o cientismo provinciano defendido por Comte,
conduziu ao clima anti-científico que caracteriza algumas correntes da filosofia do final do século XX. Mas isso fica para
depois.
Aires Almeida
Nota
Agradeço a Desidério Murcho a revisão do texto, assim como as variadíssimas imprecisões que me ajudou a eliminar.
Sem ele, este texto seria muito diferente.